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O Filho Da Rebelião
O Filho Da Rebelião
O Filho Da Rebelião
E-book334 páginas4 horas

O Filho Da Rebelião

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Sobre este e-book

Segundo livro da trilogia. Antes de ser Dantálion, ele era Iago. Órfão, foragido, desajustado, buscando encontrar a si mesmo em meio a um mundo caótico e devastado pela violência. Com a companhia de um rapaz cauteloso e de uma garota indecifrável, ele deve lutar pela própria vida, sem ao menos saber se é isso que realmente quer. Uma história tocante sobre família, amizade, depressão, esperança e revolução.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de dez. de 2020
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    O Filho Da Rebelião - Vivian Cabrelli Mansano

    O FILHO DA REBELIÃO

    (Trilogia Dantálion – Livro II)

    Vivian Cabrelli Mansano

    "Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro.

    Quando se olha muito tempo para um abismo,

    O abismo olha para você."

    Friedrich Nietzsche

    Tempo

    Eu sinto que não tenho muito mais tempo, e, quando a hora chegar, quero estar pronto.

    O tempo sempre foi meu inimigo. Às vezes ele é curto demais, e às vezes é longo demais. Mas ele nunca é da medida certa, nunca é suficiente. O tempo que passei com minha família não foi o bastante, e o tempo que passei sem eles tem sido longo demais, mais longo do que qualquer século ou milênio. A contradição é difícil até mesmo para mim. Como podem aqueles dias, por exemplo, terem sido tão curtos, e, ainda assim, uns dos mais intermináveis de minha vida?

    São algumas poucas lembranças mais marcantes que tenho dela. Seus cabelos compridos, tão lisos e escuros quanto os meus, e seus olhos amendoados...

    - Mamãe, por que meus olhos são estranhos?

    Seu rosto nublado buscou o meu. Ela sempre me causava a impressão de estar presente e ausente. Seu espírito queria me dar toda a atenção, eu sei, mas seu olhar denunciava o pensamento distante. Meu pai dizia que ela era atraída pelo vento. Eu não entendia exatamente o que ele queria dizer com aquilo. Hoje entendo.

    - Quem te disse que você tem olhos estranhos?

    - Alberto.

    Ela franziu as sobrancelhas.

    - Aquele garoto metido dos mineradores?

    Assenti, sem conseguir olhá-la nos olhos, que eram tão esquisitos quanto os meus, e pareciam capazes de perfurar o aço.

    - Por que ele disse isso?

    Eu segurava as lágrimas, ainda desviando o rosto.

    - O que foi? O leão comeu sua língua de novo?

    Um dos defeitos que consigo atribuir à minha mãe era sua mania de me atormentar com o leão. Eu nunca tinha visto um de verdade, logicamente, mas ela tinha me mostrado uma figura num livro. Aquele animal me apavorava, com suas garras enormes e seu pelo dourado. Lembro-me de ter pesadelos com leões constantemente, em que eles saltavam sobre mim e me matavam. Eu não sabia como eles se moviam, mas imaginava que se movessem como os gatos, o que era ainda mais assustador. Um leão parecia um gato gigante.

    Gatos não são permitidos oficialmente na cidade, mas é impossível mantê-los longe, principalmente por causa dos ratos. Eu sempre os via perto de nossa antiga casa, escalando árvores e telhados. Quando era bem pequeno, cheguei a tocar em um. Brinquei com seu pelo extremamente macio durante um minuto, antes de ele se virar repentinamente e cravar as unhas em meu pescoço. Tenho a marca até hoje, mas é muito difícil de ver. Perto das outras cicatrizes, a do gato é consideravelmente insignificante.

    Acho que desde cedo eu estava condenado a ter o mundo todo tentando arrancar meu pescoço.

    - Vamos, Iago, conte logo o que aconteceu! Como é que eu posso te ajudar se você não me disser tudo?

    Eu reprimi as lágrimas o máximo que pude.

    - Ele disse que meus olhos são de gente traiçoeira, e que só pessoas com olhos claros podem ser da alta casta. Ele disse que somos pobres porque meus olhos são pretos.

    Minha mãe riu, mas eu sabia identificar quando ela estava rindo apenas para disfarçar o nervosismo.

    - E desde quando o grupo dos mineradores é da alta casta?! Esse garoto vai passar a vida toda enfiado em buracos, com o rosto cheio de fuligem. Nosso grupo é muito superior ao desse idiota.

    Se tinha uma coisa que me fazia sentir feliz, era quando minha mãe xingava alguém, principalmente se fosse alguém tão idiota quanto Alberto. Os poucos anos de convivência que tive com ela me renderam o mesmo hábito.

    Dessa vez, porém, ela percebeu que as palavras não haviam surtido efeito nenhum em me animar.

    - Você por acaso quer ser da alta casta, Iago?

    Ela se ajoelhou ao meu lado, me envolvendo com os braços, duas rochas em seu rosto.

    - Você quer ir morar no Palácio e nunca mais ver sua mãe e seu pai? É isso que quer? Morar lá com eles, e nunca mais falar comigo?

    Outro defeito de minha mãe era sua capacidade de triturar meu coração com suas palavras.

    A maioria das mães sabe como agradar os filhos: se eles estão tristes, elas fazem qualquer coisa que os distraia. De comida a brinquedos, é fácil fazê-los esquecerem o que os incomoda.

    Minha mãe nunca foi assim.

    Minha mãe era daquelas que, se me visse triste, iria perfurar meu peito até me tirar do labirinto escuro em que eu estava. Doía bastante. E eu ficava triste com uma frequência considerável, o que não ajudava muito em nossa relação.

    Naquele momento não consegui mais aguentar, e chorei como a criança que eu era. Chorei enquanto ela me apertava em seus braços, seu desespero aparente.

    - Pessoas de olhos claros são más. – ela me dizia, me espremendo contra seu peito – Se um dia um homem de olhos claros vier até aqui, eu quero que você corra.

    Ela me afastou um pouco, procurando meus olhos com os seus. Estava falando sério. Sério, e com medo.

    - Você está me entendendo, filho? – agora era ela quem estava chorando - Se eu não estiver aqui, e o homem de olhos claros vier, eu quero que você corra para fora da cidade, sem olhar para trás. Corra, e nunca mais volte. Jure, Iago, jure para mim que você vai correr!

    Eu jurei.

    E se tivesse cumprido meu juramento, hoje minha vida não seria a merda que é.

    Lado errado

    - Ele ainda é muito novo para isso. Começarei quando ele tiver seis anos.

    Do lado de fora, eu podia ouvir a conversa dos dois na cozinha.

    - Quando ele tiver seis talvez seja muito tarde. – minha mãe respondeu – Você sabe que não podemos nos basear no melhor quadro. Sempre pense no pior.

    Sempre pense no pior foi a maior lição que já aprendi com ela.

    Meu pai resmungou alguma coisa e saiu para onde eu estava, olhando-me com irritação. Ele era bastante diferente de minha mãe, tanto no corpo quanto no espírito. Seu rosto suave não me impedia de sentir medo de seu gênio constantemente agressivo. Com aquela idade, eu não podia compreender suas atitudes abruptas e explosivas. Hoje compreendo, mais do que gostaria.

    Ele arrancou um graveto de uma árvore próxima e se sentou ao meu lado com uma faca nas mãos. Começou a esculpir o galho até que ele se tornasse um cilindro, com uma pequena abertura no meio. Usou uma lixa para deixá-lo mais liso, e então fincou um pedaço fino de carvão na abertura central.

    - Você sabe o que é isto, Iago?

    Sacudi a cabeça, sem olhar para seu rosto. As palavras raramente tinham coragem de sair de minha boca para encontrar meu pai.

    - Se chama lápis. E você nunca deve dizer a ninguém que tem um. Entendeu?

    Acenei mais uma vez.

    - Venha, vou te mostrar como funciona.

    Ele me pegou pela mão e me puxou para dentro de casa.

    Sobre a mesa da cozinha, minha mãe havia deixado uma folha de papel. Eu a peguei quase com devoção, sentindo a lâmina delicada entre os dedos. Papel era um item raríssimo e cobiçado entre os Surdos.

    Meu pai se sentou ao meu lado e pegou a folha. Ele traçou algumas letras, me indicando como o objeto deveria ser manuseado. Quando terminou, estendeu o lápis para mim.

    Ergui a mão esquerda para pegá-lo.

    Um tapa acertou minha mão, doendo. Puxei os dedos para perto de meu corpo, olhando com medo para seus olhos severos.

    - Mão direita sempre, Iago.

    Em nossa cidade, ser canhoto era considerado uma imperfeição. Um dia eu poderia acabar morto por esse motivo, e por isso meus pais insistiam que eu me acostumasse a usar a mão direita com mais frequência. Era cansativo e frustrante, e de início me magoava muito.

    Eu sei que os magoava também, porque minha mãe se retirou bruscamente da cozinha, escondendo o rosto entre as mãos para que eu não visse as lágrimas. Sem entender o real motivo de seu choro, eu me encolhi, o peito apertado, julgando que tinha feito algo ruim para ela. Eu me sentia péssimo, e chegava a pensar que a vida de meus pais seria melhor se eu nunca tivesse nascido. Cada respiração era um novo erro. Uma nova vergonha a ser repreendida. Tudo em mim era um defeito, e ser eu mesmo era um crime.

    Com a mão trêmula, risquei letras instáveis no papel, quase o perfurando, mordendo os dentes para concentrar minha habilidade no lado direito, enquanto a mão esquerda em punho apertava o pé da mesa com força.

    Durante toda minha vida eu sentiria o mesmo.

    Aquele tapa me acompanharia todos os dias, me fazendo lembrar que existia um lado meu que deveria ficar escondido. Não era só ser canhoto, eram várias coisas. Várias coisas que eram crimes, e poderiam me levar à guilhotina.

    Mas quando essas coisas fazem parte de sua natureza mais íntima, é muito difícil escondê-las por tanto tempo.

    Em minha cidade natal, todos os acontecimentos eram programados para nos fazer sentir culpa e medo. Absolutamente qualquer coisa poderia ser um crime. E, se você tivesse azar, seu crime seria um dos imperdoáveis.

    Eu era imperdoável desde que nasci. Um intruso. Uma falha ambulante. Uma doença.

    Meu único consolo era saber que meus pais também não se encaixavam com perfeição no sistema. Eles eram Surdos, temidos e odiados por todos.

    Mas digamos que ser um Surdo é um problema simples. É como trocar de roupa. E você pode deixar de ser um Surdo, se for esperto.

    Comigo era uma questão mais complexa. Existem coisas que não podem ser mudadas.

    Existem roupagens que estão por debaixo da pele, dentro dos órgãos, no núcleo dos ossos. Eu poderia me reprimir por quanto tempo desejasse, mas jamais poderia alterar minha natureza. E minha natureza tinha o costume doentio de borbulhar em minhas artérias.

    Foi com muito esforço que tentei caminhar pelo lado que me diziam ser o certo. A cada passo, porém, eu sentia a dor que me puxava para o lado errado.

    Mão direita sempre, Iago.

    No meio do peito

    No terceiro dia em que meu pai não voltou para casa, ela não conseguiu mais esconder seus sentimentos de mim.

    O sol estava quase se pondo, e ela estava arrumando sua mochila.

    Entre seus movimentos apressados, eu pude ver a parte superior de uma garrafa de água, ao lado do cano de um revólver.

    - Eu vou buscar seu pai. – ela me disse, sua voz trêmula.

    Colocando a mochila nos ombros, caminhou até onde eu estava, a dúvida visível em seu olhar. Ela estendeu a mão, um objeto brilhando entre seus dedos.

    Era a nove.

    Ela esfregava a arma nas mãos, provavelmente se questionando se dá-la a uma criança de cinco anos seria algo inteligente ou terrivelmente estúpido de se fazer.

    Ela acabou decidindo que era inteligente.

    - Você lembra como usar, filho?

    Acenei com a cabeça. Apesar de nunca ter disparado de verdade, eu me lembrava das aulas que me deram. Atirar dentro da cidade era perigoso. Os Surdos só praticavam tiro em noites de tempestade, quando o som se confundia com os trovões. E os projéteis tinham que ser cuidadosamente procurados, para que não sobrasse nenhuma evidência. Eles não se arriscariam tanto assim para ensinar tiro a um garoto de minha idade. Foi um grande erro deles, porque eu poderia ter ajudado mais do que imaginavam.

    Ela ajoelhou à minha frente, fechando minhas mãos ao redor da arma. Mesmo pequena, era um monstro perto de meus dedos finos.

    - Eu vou voltar logo. – ela falou, embora eu já soubesse dizer exatamente quando ela estava mentindo, porque ela sabia que estava mentindo – Mas, se eu não voltar até amanhã, eu quero que você corra. Se eu não estiver aqui quando o sol nascer, você deve pegar a mochila que deixei em seu quarto e atravessar a fronteira o mais rápido que puder. Se alguém for atrás de você, não importa quem seja, quero que mire e atire sem pensar duas vezes. Não atire na perna, nem no braço. Atire no meio do peito, está entendendo?

    Ela pressionou minhas mãos com mais força ao redor do metal gelado e se levantou, forçando um sorriso.

    Ela abriu a porta e a fechou atrás de si, sem se despedir.

    Eu permaneci quieto, olhando fixamente para a maçaneta, desejando que ela girasse mais uma vez para que eu pudesse ver de novo o rosto de minha mãe. Eu sabia que era a última vez que eu a veria.

    E eu nunca estive mais enganado.

    Erro

    Meu estômago queria me comer por dentro.

    Aquele pacote de bolachas que ela tinha deixado na dispensa não serviria para me manter vivo por muito tempo. Eu precisava tomar uma atitude.

    A luz dourada do sol começava a entrar pela janela, e a fome não me deixava pensar em mais nada. Então peguei a mochila que ela tinha preparado para mim, sem me preocupar em verificar o que tinha dentro. Talvez tivesse comida. Talvez. Eu teria que verificar depois.

    Peguei a nove nas mãos, correndo os dedos pelo metal. Automaticamente a apoiei na mão esquerda, e a mudei para a direita assim que me dei conta.

    A arma era mais pesada que eu. Aproximei o cano do rosto, olhando diretamente para aquele olho de onde saem as balas. Eu teria coragem para atirar no peito de alguém?

    Batidas na porta.

    Eu tinha jurado à minha mãe que eu correria para a fronteira. Eu tinha o dever de sair pela janela dos fundos e correr. Eu sabia que era o que deveria fazer.

    Mesmo assim, eu errei.

    Ainda com a arma nas mãos, eu cometi o erro de abrir a porta.

    Do outro lado estava o homem dos olhos claros.

    O mais odioso.

    Inquisidor

    A primeira coisa que ele viu, obviamente, foi a nove em minhas mãos.

    - Olá, garoto, você está sozinho?

    Nunca diga a ninguém que está sozinho.

    - Estou.

    - Onde estão seus pais?

    Diga que voltamos logo.

    - Eu não sei.

    - O que é isso em sua mão?

    Atire no meio do peito.

    Eu não atirei. Nem respondi. Idiota!

    Ele se abaixou e pegou minha mão, forçando meu braço para me impedir de usar a arma. Eu não lutei, nem reagi. Deixei que ele a tirasse de mim.

    Idiota!

    - Você sabe que isto veio de fora da cidade, não sabe? Como você conseguiu isto? Foi seu pai quem te deu?

    Corra!

    Minhas pernas congelaram. Minha mente congelou.

    Ele sorriu, percebendo minha insegurança, e estendeu a mão livre para pegar a minha. Alguns minutos depois, estávamos eu e o Auxiliador da Justiça atravessando a floresta em direção ao centro. Eu estava com fome, assustado e sozinho. Em outras condições, teria certamente escapado dele.

    Existem erros que são irreparáveis. O meu foi aquele.

    - Seus pais costumam sair bastante à noite, Iago?

    Inquisidor.

    Inquisidor era uma palavra que meu pai tinha me ensinado. Significava uma pessoa que faz perguntas demais sobre a vida dos outros. Você sabe o que fazer se encontrar um Inquisidor, filho?. Sim, eu sei o que fazer, pai. Devo caminhar tranquilamente com ele pela floresta, respondendo às suas perguntas.

    Claro que nada que eu respondesse ou deixasse de responder mudaria alguma coisa. Ele já sabia de tudo. Ele já sabia que meus pais eram Surdos, já sabia que estavam capturados, já sabia que tinham conexões fora da cidade. Ele já tinha vencido.

    O que ele não sabia, porém, era justamente o motivo pelo qual ele tinha ido me buscar.

    Grito

    Era a primeira vez que eu entrava no Palácio.

    Paredes gigantescas, feitas de rocha pura. Chão brilhante, muito diferente da madeira furada e gasta que era o assoalho de casa. O que mais me assustava ali era o olhar dos Auxiliadores. Nunca os tinha visto tão de perto, com suas túnicas cinza compridas e finas, seus olhos cruéis me encarando como se eu fosse um tipo de animal de zoológico. Apenas um deles me olhou de um jeito diferente. Um olhar de pena que me apavorou mais que os olhares cruéis.

    Descemos uma longa escadaria, suja e empoeirada. Devia ser um caminho pouco usado por eles. Sua mão apertava a minha durante todo o percurso, doendo. Eu não sabia para onde ele estava me levando, e não ousei perguntar.

    Minha intuição já havia me alertado de que, seja lá o que fosse, não seria nem um pouco agradável.

    Tirando uma chave do pescoço, o homem de olhos claros abriu uma porta de madeira, me empurrou para dentro e trancou novamente a porta depois de entrar. O que eu vi nunca vou esquecer.

    Meu pai, com o rosto desfigurado, e minha mãe, com uma crosta de sangue escorrendo da boca, uma porção de dentes caídos à sua frente.

    Eu quis gritar, mas ela gritou primeiro. Gritou de horror ao me ver, debatendo-se contra as cordas que a mantinham amarrada.

    Eu pensei que o Auxiliador fosse mandá-la ficar quieta, mas ele apenas riu.

    Ele riu um riso que eu ouviria em meus pesadelos durante todo o resto de minha vida.

    Sangue

    Não pretendo entrar em detalhes sobre o que aconteceu.

    Só posso dizer que o porão em que fomos mantidos prisioneiros não tinha janelas, o que não nos permitia ter noção do tempo. Poderiam ter se passado horas, dias ou semanas, é impossível dizer, e também é irrelevante.

    De início ele não me tocou, e eu pensei que não poderia existir terror maior que aquele que eu observava. Ingênuo, como sempre...

    O tempo se arrastou lentamente. Meu corpo tremia em espasmos, os nervos saltando como espinhos de minha pele a cada novo grito agudo de minha mãe.

    Anton não queria saber muito. Ele só precisava de uma informação. Ele queria os nomes e grupos de todos os Surdos, e repetia a pergunta um milhão de vezes, mantendo um sorriso leve no rosto.

    Meu pai não emitia um único som. Seus olhos nem mesmo piscavam mais. Se não fosse pelo fraco movimento de seu peito, juraria que estava morto.

    Pensei que sua inércia o salvaria, o colocaria fora de perigo. Pensei até mesmo em imitá-lo e me fingir de morto. Talvez assim o Auxiliador desistisse e procurasse outra pessoa.

    Foi um pensamento tolo.

    Anton se aproveitou mais ainda de sua incapacidade de reagir para cometer as maiores atrocidades que sua imaginação sádica permitia. Ele tentava atingir minha mãe, culpando-a pelas agressões de meu pai. Ela era responsável por ele, afinal, agora que estava inconsciente. E ela devia salvá-lo.

    O fato de ele não gritar não tornava as coisas mais fáceis. Pelo contrário, fazia calafrios e lágrimas percorrerem nossos corpos inteiros.

    Primeiro, ele atingiu seu rosto. Sem reação.

    Depois, arrancou alguns dentes. Sem reação.

    Então ele começou a mutilar seu corpo, cortando pedaços.

    Meu pai não demonstrava qualquer consciência. Nem mesmo tremia.

    Eu sentia que meu coração subiria pelo peito até me afogar em sangue.

    Eu queria que isso acontecesse. E rápido.

    Eu sabia que se mordesse minha língua com força eu poderia morrer antes que ele percebesse. Bastava engolir discretamente o sangue, como dizia aquele livro sobre guerras que minha mãe tinha escondido na última prateleira, para que eu não pudesse ler.

    Eu esfregava os dentes sobre a língua constantemente, ignorando os gritos para resolver se iria ou não fazer.

    Aguardei, com esperança de que, de algum jeito, aquilo acabaria e sairíamos todos com vida para recomeçar em outro lugar. Não conseguia acreditar no que estava vendo. Não conseguia entender. A separação entre realidade e sonho ainda não fazia sentido em minha cabeça, e eu esperava, com todas as forças, que fosse apenas um pesadelo muito, muito ruim, e que minha mãe estivesse lá para me acordar de manhã, limpando o suor de meu rosto com um sorriso nos lábios, seus lábios que ainda estariam intactos, e não desfigurados como estavam agora.

    Eu deveria ter feito. Até hoje me arrependo de ter esperado.

    Não era um pesadelo ruim. E, se era, então eu não acordei ainda.

    Chegou o momento de mudar de estratégia.

    Não era só meu pai que parecia um morto. Minha mãe já não respondia. Não erguia os olhos do chão. Não gritava. Sua resistência a levou a um estado de inércia profunda. Sua mente fechou os olhos internos para não lidar mais com a situação. Já aconteceu comigo algumas vezes.

    Eu os observei, sentindo a maior solidão que já senti em toda minha vida.

    Eles não voltariam mais.

    Eles não tinham como voltar.

    Haviam ultrapassado o limite do que podiam aguentar, e suas mentes já os tinham abandonado. Mesmo se sobrevivessem, seriam como cadáveres ambulantes. Era tarde demais para salvá-los, e seria melhor que morressem. As consequências do trauma seriam piores que a morte.

    Foi assim que olhei para meus pais, ambos à minha frente, e senti a verdade

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