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FORTALEZA DE RAMOS
FORTALEZA DE RAMOS
FORTALEZA DE RAMOS
E-book302 páginas4 horas

FORTALEZA DE RAMOS

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Sobre este e-book

Quando Deus criou o mundo, as plantas e os animais, ele criou também o homem. Ao criar seus filhos, Virmondes Ramos e Geralda de Souza, ele viu que a décima filha seria a herdeira da genética maldita, conhecida por EA.
Essa herdeira vem de uma fortaleza de Ramos, com ela vem também a genética do "HLA-B27"; herdeira da "Espondilite Anquilosante". A herdeira de um mal genético a mim transmitido.
Este é um relato que talvez nem tenha leitores, porém, nem por isso terei deixado de falar das flores, pois esta é uma história real de heranças hereditárias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de ago. de 2021
ISBN9786558594291
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    FORTALEZA DE RAMOS - Jordelina Ramos de Souza

    PARTE 1

    Era o ano de 1822. Século dezenove. Um mar imenso e interminável se desenhava no horizonte, e parecia não haver fim, pois as águas abraçavam o céu, concedendo-nos um longínquo e belo horizonte. Um vento noturno acariciava os cabelos ruivos de uma jovem alta, magra e bem vestida. A pele muito branca, feito as águas do mar, e seus olhos pequenos contrastavam com um nariz bem desenhado (meio arrebitado, fino e delicado, como na maioria dos Ramos). Os lábios daquela jovem eram proeminentes e convidativos. Aquela bonita senhorita atendia pelo nome de Marislei (moderno para a época) e tinha aproximadamente dezoito anos. Ali, sozinha, observava e suspirava saudosa ao lembrar que deixara sua família em Lisboa. Sua pátria amada, Portugal.

    Ela fugia de um casamento encomendado pela família. Procedimento corriqueiro para aquela época tão distante, há exatos três séculos. E havia deixado também um noivo. O noivo, entretanto, deu a ela visíveis sinais de um futuro feito de opressão e violência. Então, naquela noite, a moça relembrava os planos de fugir e chegar ao novo mundo, realizando o sonho de tornar-se independente e trabalhar para seu próprio sustento. Diferentemente de suas amigas, não planejava se casar e nem ter filhos, se identificando muito com a escritora deste livro, tantos séculos depois. Não se casaria, senão com um jovem com ideias mais avançadas. Porém, justamente naquele momento, seus pensamentos foram despertados por uma voz masculina ao seu ouvido. Ela o rejeitou de imediato e manifestou em sua face o asco. Ele lhe parecia familiar, visto que aquele mesmo senhor já a havia procurado outras vezes e ela o havia rejeitado.

    Ciente das consequências, pois aquele senhor era da realeza, ela deixou claro que não queria aproximação. Marislei era ardilosa e repleta de argumentos, pois tinha o hábito da leitura, pouco comum para uma mulher naquele período. A jovem disse que não era conveniente que fossem vistos juntos e que iria se retirar, desculpando-se e fazendo reverência. Ele, prontamente, aceitou e olhou-a de longe com visível desejo. Naquela mesma noite, em seus aposentos, a jovem desperta e é violentada. Assim, ela não mais saiu de seu ambiente, que se tornou sua reclusão , senão, para as refeições. Com facilidade para a escrita, ela registrou em seu diário o amor pela vida e ódio por seu violador.

    Por conta dos costumes, ela sabia que nada podia ser feito pela justiça, pois o poder daquele que a violentou faria com que a punição se voltasse para ela própria, numa época em que as mulheres não tinham nenhum valor moral.

    Depois de muitos dias naquele navio, era possível avistar, enfim, terra firme. Cada vez mais a costa se aproximava e, juntamente com a comitiva, a jovem visivelmente transtornada aproximou-se de uma das freiras que faziam parte do grupo e perguntou para onde ela iria. Ao ser informada sobre o convento de destino ofereceu para instalar-se com ela e fazer votos de clausura e oração. Meses depois de esconder uma gestação, aquela jovem repleta de esperanças deixou seu bebê para a adoção, naquela roda de doação fixada no muro do convento, resguardando assim o nome da família que buscasse aqueles bebês. O bebê foi adotado por uma família de muitas posses, que percorreu o Brasil central, em busca de terras para comprar e cultivar. Desde este período, as mulheres desta família precisam fazer as pazes com o próprio útero e com o sexo oposto. Talvez por isso, sejam as mulheres dessa família mulheres determinadas, de personalidades fortes, que querem um futuro muito além do que o lar as pode oferecer. Mulheres que querem poucos filhos, ou nenhum. Mulheres que procuram companheiros dóceis. Estes são traços passados pelo nosso DNA e se manifestam como comportamento inteligente, corajoso e, ao mesmo tempo, com uma vitalidade incomum.

    Esses traços também foram transmitidos século após século, nesta família, até chegar nos dias atuais, mostrando sermos realmente uma família de mulheres determinadas e inteligentes, que sabem o que realmente querem. A mim coube me identificar perfeitamente com o DNA dessa Marislei do século dezenove, bem como com o DNA de meu biso, também daquele século.

    Mulheres de pulsos fortes, conquistadoras de tudo que querem. Mulheres de raça. Rainhas de nomes marcantes como as Anas, e Leopoldinas Ramos, provando terem existido muitas histórias reais, entre estes três séculos, que a nós são impossíveis de sabermos.

    Esta é uma regressão feita e acompanhada espiritualmente, a pedido de Marislei Espíndola, do século vinte um. Filha de Ana Ramos, esta, por sua vez, filha de Leopoldina Ramos, que foi irmã de Virmondes. Marislei, que não tem vinculado ao seu nome o Ramos, porém, nos acompanha desde os primórdios do século dezoito, através de seus pais, e prova ter existido a mais longa das histórias de nossos antepassados.

    Assim, relata Marislei, escritora, por duas vezes doutora, que acima de tudo é curiosa em relação ao nosso passado, aos nossos antepassados, deixando curiosos os nossos descendentes que venham herdá-las, pois são essências de nós mesmos.

    Marislei de Souza Espindola Brasileiro

    RAMOS DO PASSADO

    Assim chegamos ao século dezenove tendo Marislei, a jovem portuguesa do navio, entremeada aos nossos antepassados deste longínquo período. Ela deixou registrada a nossa história tão intrigante e interessante.

    Era 21 de dezembro, estava entrando o verão e na janela daquela casa grande senzala está a matriarca, minha trisavó, Helena de São José, ouvindo uma roda de prosa daquele patriarca, vosso esposo, reunidos com amigos. Eles, resolveram fazer-se donos de uma grande geração que nasceria ali, naquele berço chamado Fazenda Águas de Emília. Uma geração da qual ainda não haviam filhos, pois as mulheres tinham anseios de não os gerarem, porém de onde seria formada uma grandiosa família, quando se permitissem fazer as pazes com seus úteros?

    Ali sentado, o velho Pedro pediu à sua senhora, com um pito de palha entre os lábios: Minha veia! Traz aí um café, uma brasa para acender meu pito, e traz também uns biscoitos, e vem sentar aqui cunois.

    Minha trisavó paterna, a senhora Helena de São José, serve aos visitantes um café quentinho coado na hora, também ao meu tri savô materno, Leopoldino Maria dos Santos. Este estende a mão à sua esposa Filisbina Pereira de Morais, e oferta-lhe aquele aperitivo preto saboroso. Minha trisavó, Filisbina, terá nesta história uma filha chamada Umbelina Anastácia de Jesus. Filisbina era uma mulher de tez branca, com cabelos longos e levemente encaracolados, olhos de um tom acinzentado, com boca pequena, e olhos espertos como os de uma águia. Enquanto meu trisavô era alto, forte, musculoso, de pele morena clara, com traços fortes e marcantes, se fazendo muito parecer filho de duas raças distintas, como o negro e o branco.

    Leopoldino era também um homem bonito de pele morena, com cabelos de fios finos, lisos e negros como as noites sem luar. Aquela cabeleira negra, misturada ao tom mais claro de sua pele, fazia lembrar os traços indígenas de homens pequenos, porém resistentes e espertos.

    Essas duplas haviam se casado há pouco menos de um ano, sem imaginarem quão grandiosa família formariam com o passar dos tempos, que se transformariam e teriam homens guerreiros.

    Guerreiros que fariam fortuna e levariam seus nomes para muito além do século vinte e um, onde teriam uma herdeira de genética com DNA decodificado com defeito, que transcreveria as histórias de suas vidas de forma singular, mostrando aos seus descendentes o que significa ter em nossas células o DNA de genética recessiva.

    Helena de São José era pequena, de pele branca, olhos negros e levemente repuxados, de nariz bem desenhado, fino, arrebitado, com seios fartos, pernas finas, brincalhona e faladeira de besteiras, o que não era muito próprio do período, fugindo totalmente aos padrões da época.

    Não me permitindo saber com exatidão se Pedro, Leopoldino, Filisbina e Helena foram nossos trisavôs ou nossos tetravôs, permitindo-me, entretanto, navegar por entre estes dois mundos, dos quais nem mesmo a regressão seria capaz de me dizer. O tempo passou. Muitos anos se foram e eles tinham uma dúzia de filhos. Filhos estes que também constituíram famílias, com incontáveis crianças e homens, correndo por aquelas estradas, indo e vindo, sempre à procura de ouvir contarem os causos daqueles velhos pais que amavam reunir suas crias, pois aquela era uma época em que depois que o sol se punha por trás das montanhas, nada mais havia a se fazer.

    Naquela fazenda, feita de senzalas imensas e abarrotadas de gente negra, muitas eram as crianças que andavam por entre avenidas de ipê , com canteiros semeados de rosas, dálias, margaridas, tendo aqui e acolá pequenos pés de jasmins, onde quase sempre passava um carro de bois, cantando sob o peso de suas broxas.

    Crianças não faltavam nessa avenida, chamada casa do vovô. Destacavam-se sempre os campos com muitas flores coloridas, sob um sol de verão recortado, quase sempre, por um céu azul escarlate.

    Daqueles trisavôs nasceram muitos filhos e cada qual, ao seu modo, também constituiu família, e eram muitos os causos a serem contados, passando de geração a geração, sem nunca terem fim. Assim, esta geração chegou aqui, três séculos depois, de onde vos conto estes detalhes. Feitos de cordéis, feitos de metade possibilidade, metade ficção, e de verdades, pois se assim eu não as escrevesse, não teria como mostrar-lhes o que é recessividade, e ainda teria deixado esta geração sem os causos dos Ramos e Souza.

    Nestas páginas antigas, feitas de passado e de futuro, julgo poder lhes descrever a vida da verdadeira família de São José. Páginas nas quais decidi escrever nossa história, feita da minha essência! Decidi colocar como um impossível tema, a vida de Ana Jacinta de São José, por ter ela a mesma assinatura de minha descendência, por vir da mesma região de onde saiu minha trisavó, até chegar em Goiás.

    O impossível, possível

    Sou um ser vivo, portanto, composta por células. Entretanto, ao decodificarem meu código de DNA quando mamãe e papai se entrelaçaram para mais uma noite de amor, lá, muito à frente dessas histórias, fizeram errado. E assim, foi decifrado em mim o HLA-B27, denominado síndrome de Reiter. Um DNA em que minhas células passaram por muitas transformações, num processo difícil de ser explicado, até chegarem onde chegaram, tornando-me um óvulo que foi evoluindo, até se transformar em embrião, e transformar-se nesta mulher que hoje sou. Assim, contarei a história de minha vida.

    Século XVII, em um vilarejo com pouco mais de dois mil habitantes. Precisamente em 02 de janeiro de 1800, nasceu em Formigas, Minas Gerais, Ana Jacinta de São José. Trazia em sua bagagem o mesmo São José de Helena. Ela perdeu a mãe ainda na infância, e não sabia quem era seu pai. Foi criada por seu avô que, em meados de 1800, se mudou para Araxá, Minas Gerais.

    Na adolescência, se viu encantada por Fernando Sampaio, rico fazendeiro pelo qual também se encantou com sua beleza. Aos quinze anos, dona de grande beleza, foi raptada a mando de alguém por ela encantado. Aquele era um período onde as mulheres não tinham de querer. Valiam, antes de tudo, as determinações dos homens. Assim como aconteceu com Marislei, a moçoila que saiu de Lisboa para o Brasil. O ouvidor do imperador foi o mandante de seu rapto. Na tentativa de impedir que seu avô lutasse para salvá-la, mataram-no.

    A jovem, desesperada, foi levada para Paracatu, onde passou a viver como prisioneira, porém em uma vida de luxo, por um período de dois anos. E foi pouco a pouco, acumulando fortuna.

    O imperador exigiu que o ouvidor se mudasse para o Rio de Janeiro. Ana, dona de uma pequena fortuna, se encontrava livre, e retornou para a pacata e saudosa Araxá, com todo o tesouro em brilhantes, ouro e tudo que havia no palácio, acumulando as coisas que seu raptor havia dado a ela.

    Foi atrás de seu verdadeiro amor. Porém, constatou que aquele que tanto amou não a esperou. Desiludida, Ana montou um bordel na Chácara de Jatobá, para mostrar à Fernando a mulher que havia perdido. Para provar ao seu próprio coração que era uma mulher de fibra, forte e determinada, onde o que predominava eram os seus sentimentos. De personalidade marcante, diante de tamanha decepção, passou a selecionar os homens com quem dormiria doravante, e de quem passaria a ganhar pequenas fortunas em dinheiro. Era por ela selecionado um homem a cada dia. Escolhidos a dedo para o acúmulo de sua fortuna, pois somente os ricos e afortunados compartilhariam do calor e da beleza escandalosa de seu corpo.

    Dona Beja se torna cada dia mais rica e sua fama entre as mulheres era a de uma atacadora de homens, pois feria princípios muito arraigados para aquele período do século dezenove. Enquanto as mulheres de bem desfilavam modelitos em pontaletes importados de Paris, de uma luxuosidade extrema, e permitida para poucas, Dona Beja vestia lingeries delicadas, cavadas, transparentes, ousadas, que nada deixavam a desejar em relação aos tempos modernos. Sendo elas escandalosamente agradáveis aos olhos dos homens, que se sentiam entediados diante de suas respeitadas esposas.

    Enquanto as mulheres da sociedade vestiam pontaletes que cobriam as pernas, marcando as cinturas com hastes de ferro, Dona Beja se desnudava, despudoradamente frente aos homens, que enlouqueciam, maravilhados com tanta beleza. Assim, completamente nua e bela, fugia aos preceitos de uma época tão conservadora.

    A fama de Ana Jacinta corria livre de boca em boca, tornando os homens apaixonados, até que Fernando a procura, e eles voltam a se encontrar. Porém, sem mais terem aquele amor, que fazia arder o coração daquela menina mulher. Ele se tornou apenas mais um entre seus lençóis. Até que ela engravidou de sua primeira filha, Tereza, mais tarde da segunda filha, Joana. Não sendo, entretanto, nenhuma delas filhas de Fernando, sua antiga paixão. Assim, decide deixar vida de prostituta de luxo, pois agora seria mãe. Se mudou para a cidade de Bagagem e foi garimpar, ficando ainda mais rica.

    Mudou-se para uma casa imensa, com uma senzala nos fundos, abarrotada de homens negros. Com seus escravos foi ganhando pedras preciosas advindas do garimpo, se tornando mais e mais poderosa, porém não mais cortesã.

    Aquela menina bonita, depois de viver tão grandiosa e intensa vida, com os idos dos anos, foi ficando velha e então morreu, em meados de 1873.

    ESCRAVIDÃO

    Século 19, ano de 1880, focarei minha ficção na história dos negros da Fazenda Águas de Emília, a mesma onde Pedro e Helena viveram recém-casados.

    Este é um relato de uma paciente que, nos primórdios de 1958, cento e trinta e três anos à frente, nasceria com a genética do HLA-B27, e buscando tão longe na história, para mostrar de forma, às vezes até errônea, aos descendentes do futuro, o que os antepassados nos transmitem, provando que uma genética recessiva, nos faz herdar alguns traços. Porém, herdamos também risos, bobagens e herdamos essências de mães. Herdamos ser parte de uma família doce, uma família apimentada, uma família amarga, porém, jamais uma família insossa.

    Este, é um relato de uma paciente, vinda de uma família de Ramos longos, finos, grossos, curtos, ramos cheios de folhas, frutos, sombras e flores. Esta é uma história de genética recessiva, verdadeiramente vivida por mim, na qual quero deixar registrado que eu, a escritora, fui receptora deste DNA duas gerações à frente. A partir de mim, a terceira ou os filhos dos filhos dos filhos dos meus irmãos poderão ter herdeiros dessa dita maldição.

    Melhor será fazer o exame laboratorial, conhecido por HLA-B27, pois, com certeza, aos 26 anos ela surgirá de forma lenta e silenciosa, em algum descendente. Todavia, se descoberta no início, o portador não sofrerá com a fase ativa, tão pouco com a fase sequela. É muito importante a sua busca na forma de prevenção, pois assim é regido o mundo da atualidade. Porém, o fato de se ter no DNA o HLA-B27, não significa necessariamente que seja portador da espondilite anquilosante.

    MELANINA E SUA HISTÓRIA

    Muitos dirão que biografia não se escreve assim, contando ficção. Mas, como não? Se sou cabocla, e tenho raízes vinculadas à escravidão. Pois seria impossível haver uma nação onde só se casavam brancos com brancos, e negros com negros. Sendo assim, sou crioula, sou parda, sou azul, branca, cafuza, verde, amarela. Sou mestiça, filha desta mistureba que transformou nosso país, a partir de seu descobrimento.

    Assim, narro esta história, onde lá à frente houve vó Cecília, negra escravizada que deu suporte ao meu biso, que morreu do mal da espondilite. Aqui, dou início à essas histórias feitas de humilhação, de horror e de desespero para os negros, e toda raça de criaturas escravizadas, naquela era do século dezenove.

    Aquele navio negreiro que atravessou o mar da morte por longos 40 dias e noites, com aquelas águas bravias e profundas, havia acabado de ancorar no porto do Rio de Janeiro, trazendo nos porões nada menos que 300 homens traficados, com odor fétido, doentes, encomendados por alguns homens de peso da aristocracia brasileira, dentre os quais estava Pedro, proprietário da rica Fazenda Águas de Emília, e Sr. Abelardo Souza, proprietário da Fazenda Sombras do Ipê.

    Na Fazenda Águas de Emília, nos arredores do Rio de Janeiro, de propriedade de sinhozinho, existiam instrumentos de tortura de todas as espécies, que contavam histórias de horror. Com um capataz responsável pela captura de negros fujões, e um feitor para espezinhar, açoitar e matar todo aquele que se visse no direito de ir atrás de sua liberdade. Capataz e feitor eram treinados para fazerem valer a lei dos mais endinheirados, a lei dos mais fortes, a lei das patacas.

    Sinhozinho Pedro, escravocrata, conservador, proprietário de muitos alqueires de algodão, café, cana-de-açúcar, mineração, e também proprietário de muitos escravos vindos do Congo, negros yoruba vindos do Sudão, negros malês vindos da Nigéria, e negros bantos, da Angola. Aquele mesmo Pedro que prometeu à sua amada, ser dono de sua própria história, não o permitindo ser como eram os homens daquele período. Negava ser dono de homens negros, escravizados, vendidos e transportados em navios negreiros. Negros jogados aos montes, feito sacas de humanos sem valor. Agora, porém, era dono de muitos.

    Quando aqui chegavam, os negros eram vendidos e seus senhores, mais tarde, os revendiam, emprestavam, alugavam, trocavam-nos por mercadorias baratas como: farinha, rapadura, pinga ou simplesmente colocavam as mulheres para se prostituírem, ou pedirem esmolas nas portas das igrejas e feiras livres, como forma de humilharem-nas.

    Esse costume entre os senhores de engenho, de comprarem animais negros e domesticados, era comum, uma vez que aqueles homens de engenho, ricos proprietários, não trabalhavam, fazendo com que os negros trabalhassem por eles, numa carga horária desumana, sem pagamento, com ração alimentar insuficiente, sem nutrição, e barata.

    Na Fazenda Águas de Emília, os negros pareciam animais acuados por lobos vorazes e famintos por sangue humano, chamados homens. Quando ali chegavam, eram marcados com ferro quente, onde sobre a pele ficariam marcadas para sempre as siglas PL, identificando-os e marcando-os, como propriedades particulares de Pedro Lopes. O ferro com as siglas PL era colocado no fogo e, quando vermelho em brasa, era comprimido no braço direito de cada homem. A pele queimada cheirava a couro torrado. A dor era intensa, muitos desmaiavam. As feridas inflamadas causavam-lhes febre, mal-estar físico, odor fétido, e, às vezes, até a morte, pois aqueles homens estavam mesmo marcados para morrer.

    Os negros, ao serem leiloados, eram considerados peças, e cada peça tinha que ter os dentes lustrados, pois seria avaliada segundo a dentição. Teriam seus cabelos raspados, para não transmitirem piolhos, e passarem a certeza de zelo, cuidado e higiene. Seus corpos tinham que ser lustrados com óleo ou azeite, para reluzirem e, assim, esconderem doenças advindas dos navios negreiros. Tinham que ser engordados, para garantir um bom preço. Colocados lado a lado como peças de arte, trancados pelos pés com chaves, que só se abririam ao público que pagasse mais. Um museu a céu aberto, sob a luz do sol. Homens, vestidos com calças até os joelhos, pois as canelas também passavam por vistoria. Além, claro, de peitos nus, para garantir a beleza física daqueles músculos proeminentes, como forma de chamar mais atenção, na espera que o martelo bata. As mulheres, que sempre estavam com vestes sujas, maltrapilhas e fétidas, se apresentavam limpas, com túnicas na cabeça, lustradas e reluzentes.

    Havia também lotes, aos quais eram reservadas escravas brancas e nuas, para um leilão de mercadorias mais alto valor. Estas peças, tinham que brilhar e garantir um valor que fizesse valer o transporte por tamanha distância. Os homens valiam bem mais que as mulheres, que eram discriminadas desde antes desse período de 1880.

    Negros adultos eram aqueles que tinham mais vigor, maior resistência física e que tivessem de 12 a 30 anos, pois aos 35, não serviam para mais nada, pois seus cabelos estariam brancos, o que era ocasionado pela velhice precoce. Suas peles estariam enrugadas, seus braços já nada podiam fazer, e até seus dentes haviam caído, não chegando nunca aos 60, morrendo por excesso de trabalho, por maus tratos, e por falta de alimento adequado. Ali, mães não afagavam seus filhos, pois eles eram crianças que trabalhavam, pois em fase infantil, eram brinquedos vivos para os sinhozinhos, também crianças.

    Os negros trabalhavam arduamente sob sol e chuva, seu alimento era mandioca cozida, sem sal e, quando tinham açúcar, era porque eles próprios fabricavam e transformavam em rapadura. Os senhores de engenho, em período de muitas colheitas, trocavam a mandioca por um caldo ralo de feijão, que era intercalado com pés de galinha, pois as tuias de seus senhores tinham sempre que estar cheias de café, ou qualquer tipo de grãos advindos daquelas terras.

    Sinhozinhos satisfeitos era sinônimo de produção farta. Os senhores mandavam que fosse servido algo com maior valor nutricional, então, era servido um caldo de feijão com língua, orelha, e pés de porco, formando na panela uma feijoada saborosa, rica em ferro e proteína filamentosa, necessária aos músculos dos homens escravos. Assim teria origem a famosa feijoada.

    Muitos dos instrumentos de tortura daquela fazenda foram produzidos em séculos passados, por descendentes de Pedro, que foram acumulando riquezas e instrumentos apavorantes. E cada descendente, a seu modo, deixando-os como herança aos seus herdeiros.

    Dentre esses instrumentos, havia o esmaga cérebro: um aparelho de aspecto insignificante, todavia, servia para esmagar o cérebro dos homens. Havia a roda alta, que, torcia como um funil os homens, até que morressem. O cavalete, o despertador, o esmaga seios, a roda de despedaçamento e uma série de outros horrores, que chegam a um número de 150 modelos diferentes que causam terror em toda espécie de homem. Eles não sabiam que piores torturas eles teriam, se não existisse nenhuma espécie de consciência humana naquele homem chamado Pedro.

    Noé era um negro de anos na fazenda, e ao ver a chegada de tantos outros irmãos, decidiu aproveitar para fugir. À noite eles celebravam a liberdade noturna e a chegada daqueles que haviam

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