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A vida breve de Olga Tereza
A vida breve de Olga Tereza
A vida breve de Olga Tereza
E-book468 páginas6 horas

A vida breve de Olga Tereza

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Sobre este e-book

De sob a galinha refestelada no ninho,
surgem aqui e acolá as cabeças
de pintinhos recém nascidos com os
seus olhinhos curiosos e ao mesmo
tempo temerosos diante do restrito
mundo penumbroso e estranho.
Hans, acocorado, enche as suas mãos
em concha com os pintinhos sob a
galinha que bica os seus braços com
toda a valentia de uma mãe protetora;
nesse instante, Olga surge diante
dele, tem noolhar um jeito alheio,
frio e distante. Esse olhar incomum
de Olga faz eriçar os pelos ruivos do
braço de Hans. Num ato reflexo, ele
levanta até a altura do rosto as mãos
com os pintinhos e diz:
— Já nasceram. Veja Olga, como são
bonitos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de set. de 2021
ISBN9786558594604
A vida breve de Olga Tereza

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    A vida breve de Olga Tereza - Hugo Brockes

    1

    Hans sente, sem o definir, que há algo ruim no ar. Ele é adolescente, quase criança, sonhador e também, apesar das agruras em que vive e dos espectros de conflitos e desgraças indeléveis que sempre infelicitaram a família, otimista sem ser ingênuo ou bobo alegre. Para espantar o mau presságio, com pés descalços, calça curta de menino, ele cruza a rodovia de chão batido coberto de lama e vai da casa nova até o casebre recém-abandonado, onde ficaram algumas galinhas chocando ovos. Tem pressa, pois logo irá à tapera, antiga sede da fazenda, distante uns três quilômetros em sentido perpendicular à estrada, ajudar o irmão a ordenhar algumas vacas curraleiras de escasso e delicioso leite, um dos principais sustentos da família.

    De sob a galinha refestelada no ninho, surgem aqui e acolá as cabeças de pintinhos recém-nascidos com os seus olhinhos curiosos e ao mesmo tempo temerosos diante do restrito mundo penumbroso e estranho. Hans, acocorado, enche as suas mãos em concha com os pintinhos sob a galinha que bica os seus braços com toda a valentia de uma mãe protetora; neste instante, Olga surge diante dele, tem no olhar um jeito alheio, frio e distante. Esse olhar incomum de Olga faz eriçar os pelos ruivos dos braços de Hans. Num ato reflexo, ele levanta até a altura do rosto as mãos com os pintinhos e diz:

    – Já nasceram. Veja, Olga, como são bonitos.

    Olga, no entanto, desvia o olhar e, sem dizer palavra, sai furtiva como a sombra fugaz de uma nuvem passageira. Parece que anda à procura de algo na penumbra do casebre.

    Mesmo estranhando a atitude de Olga, Hans esquece a irmã e se entretém com os pintinhos. Ele é, entre todos os irmãos, o mais próximo a ela. O mais solidário com os seus sofrimentos e infortúnios. Com os dois nunca houve um momento sequer de atrito; ele carrega o trauma de ter sido a testemunha solitária do momento mais dramático da vida de Olga. Da humilhação do espancamento e do desespero do seu extremado ato impensado. Hans sabe que Olga está aborrecida por ter perdido o ônibus que a levaria a Anápolis para pegar o trem, com algumas baldeações, até o destino final, no Paraná. A viagem que talvez a libertasse dos seus traumas e sofrimentos. Uma nova vida junto às suas irmãs mais velhas e num ambiente urbano, longe das humilhações e dos equívocos de uma paixão desfeita. Mas, na casa, ninguém dormiu durante a maior parte da noite, não dormiu com os vociferantes lamentos e impropérios do irmão Sigmund, acometido de insônia, insônia que o acompanha desde a mais tenra idade. Os galos já amiudavam o canto, quando se fez silêncio.

    O único ônibus do dia passa e a casa dorme.

    Não pense, mesmo a despeito da sua vida atribulada e trágica, que Olga seja uma moça triste e rabugenta; ao contrário, ela afugenta a tristeza com a sua voz personalíssima, fantástica e harmoniosa, tão harmoniosa que as aves e os pássaros se emudecem para ouvi-la cantar. No intervalo de uma canção para a outra, aves e pássaros fazem refrão alegre com o cantar de Olga. Até as aves domésticas como os galos, as galinhas e as angolas participam da mudez e dessa opereta campestre. Das suas idas a Anápolis, para visitar o noivo, ela sempre voltava com um novo repertório de músicas populares da mais recente voga. A todas as músicas ela dá uma nova interpretação, harmonia e encanto. O seu cantar é o bálsamo que lhe dá coragem e ânimo para continuar vivendo. Não se pode dizer que Olga seja belíssima. Não, não se pode. O que se deve dizer é que ela é bonita, de uma beleza singela, com a sua pele dourada, os cabelos de um ruivo incomparável e de tonalidade quase choque, os olhos verdes-escuros de intenso brilho, a boca, nem grande nem pequena, de lábios finos num rosto levemente oval e o nariz em perfeita harmonia com o todo. Mas a principal beleza de Olga vem da sua simpatia, vem do mais recôndito do seu intelecto, da sua alma. Na verdade, ela nunca provocou atritos nem procura rixas. As agressões a ela vinham e vêm de modo gratuito, como se ela fosse o bode expiatório, o repositório das fúrias e dos descontroles de toda a família.

    Hans e o seu irmão Rolf são os primeiros a tomar o café da manhã, pois já está passada a hora de ordenhar as vacas. Ambos têm às mãos uma caneca esmaltada já com uma boa quantidade de farinha de milho, pedacinhos de queijo curado e rapadura raspada. A mãe, Maria Geny, vem com a chaleira fumegante e despeja água fervente na caneca de cada um deles. Hans e Rolf misturam com uma colher de sopa o conteúdo seco com a água quente. E comem aquilo que chamam de Peitudo. Bolinhos fritos de trigo completam o repasto. Quase todos já se encontram na cozinha: o pai, Sigmund, e o irmão Sigmund Júnior, menos Olga. Mas ninguém percebe a ausência dela.

    Lá vão eles rumo à tapera da antiga sede da fazenda. Seguem em silêncio, pois Hans, como sempre, está absorto, formando frases no seu pensamento, frases que ele não sabe o porquê nem pra quê, como se fosse o jogo do cérebro, o jogo do semianalfabeto, um jogo qualquer. Param junto de um pé de gabiroba amarela e devoram as frutinhas que cobrem o arbusto. Então notam que há algo diferente no ar. Há um silêncio profundo e exasperante. Nenhum canto de pássaros ou de aves. Nada. Apenas o leve sussurro da brisa a farfalhar as folhas das árvores. Encafifados, retornam à caminhada pela estradinha tortuosa, caminham em fila indiana. O sol do início de março, já alto, faz reverberar a atmosfera cujos raios queimam a pele exposta, branca e sensível de ambos. O silêncio perdura renitente como a dor latente de uma ferida exposta.

    Já avistam o velho curral de aroeiras carcomidas pela era e pelas intempéries e, ao mesmo tempo, vislumbram algo semelhante a um corpo humano tombado junto à cerca de arame farpado que contorna a tapera, formando extenso pasto para bezerros. Ao se aproximar, com horror, reconhecem Olga que está caída de bruços, imóvel, uma espuma branca escorre-lhe da boca aberta. Hans grita, apavorado:

    – É Olga! É Olga!

    – Parece morta, mas pode ser que esteja viva. Vamos levá-la pra casa, correndo. Vamos! Vamos! – diz Rolf na afobação dos aflitos.

    Rolf agacha-se de costas para o corpo de Olga e, com a ajuda de Hans, coloca o ombro esquerdo dela no seu ombro esquerdo, o ombro direito sobre as costas, os braços da desfalecida entrelaçados na altura do peito e seguros com firmeza por ele. O braço direito passando pelo ombro direito. Rolf levanta-se e Hans coloca as pernas de Olga, na altura dos joelhos, sobre os seus ombros. E eles saem disparados numa carreira doida, rumo à rodovia e à casa nova. O rosto de Olga, pendido ao lado e abaixo do rosto de Rolf, exala o odor característico de formicida que ele identifica muito bem. Enquanto corre, soluça, chora e diz num lamento:

    – Ela está morta. Ela está morta.

    Os olhos de Hans estão secos, o peito vazio e a garganta muda, sem choro, sem lágrimas e sem soluços. Ele, agora, só pensa na reação da mãe. Como ela irá reagir e se comportar diante de mais uma tragédia? Mais uma desgraça, mais uma filha morta.

    Mesmo a despeito do inaudito esforço, eles não sentem exaustão. O desespero lhes dá força e ânimo para continuar a marcha forçada. Os três quilômetros parecem uma distância infinita e inatingível. Quando, enfim, chegam à casa nova estão exaustos, sem voz, a língua colada ao céu da boca. A mãe, ao ver a filha inerte, dá um grito lancinante e se joga sobre o corpo estirado no piso de chão batido da sala. Como um refrão, ela repete a mesma palavra:

    – Não! Não! Não!...

    Atraído pelos berros da mulher, Sigmund irrompe esbaforido na sala.

    – O que aconteceu com Olga?

    – Esta morta. Tomou formicida – diz Rolf, com a voz quase inaudível.

    – Deixe-me ver – tenta sentir as pulsações do coração de Olga. Depois grita:

    – Traz um espelho! Traz um espelho.

    Hans chega apressado trazendo o espelho. Sigmund coloca o espelho junto ao nariz e à boca de Olga. Depois o retira, olha para o espelho e diz, desolado:

    – Ela está morta.

    Os gritos e o choro da mãe recrudescem.

    Ainda pela manhã, Sigmund Júnior, que também atende pelo apelido de Nenco, encarrega-se da encomenda do caixão ao carpinteiro morador do Entroncamento, a corruptela mais próxima; penso que é mais correto dizer: o único arraial da região e distante umas boas três léguas.

    Rolf e Hans retornam ao curral da tapera para ordenhar as vacas e para deixar os bezerros soltos com elas, pois, no dia seguinte, não haverá ordenha. Depois de realizado o trabalho, eles descem até a tapera e encontram junto à cisterna uma lata de formicida aberta e uma caneca ainda suja com o veneno. E ficam atinando o que foi que aconteceu: Olga tomou uma caneca cheia de formicida, depois se arrependeu e correu por mais de duzentos metros, passou pela cerca de arame farpado e caiu morta quando ia em direção à casa nova em busca de socorro.

    A mãe, Maria Geny, depois de um naco de tempo, cessa o choro e os lamentos e toma consciência das coisas práticas; é preciso preparar a filha para o sepultamento. Então ordena ao marido e aos filhos que levem o corpo de Olga para o seu quarto.

    Sigmund, que sempre manteve um relacionamento distante e frio com os filhos, agora os abraça, carinhosamente, enquanto caminha com eles em direção à cozinha, até a janela, de onde descortina a paisagem pasmaceira e melancólica do cerrado, ainda mais tristonha com o silêncio, com a mudez que perdura. Então, ele diz:

    – Vamos chorar aqui, juntos, a morte de Olga.

    E se põem a chorar.

    Hans sente uma profunda angústia por não conseguir verter uma lágrima sequer. Ele leva as mãos ao rosto e finge que chora. Um coquetel de sentimentos contraditórios invade o seu cérebro atordoado e confuso Por que não consigo chorar? Logo eu, que sou o mais amigo dela, quem mais a entendia, quem mais chorava por ela. Quem sempre ouviu os seus queixumes. Que vergonha. Será que eu me transformei, de repente, numa pessoa má, sem sentimento? Será? O que é esse imenso vazio no meu peito? O que é essa coisa estranha na cabeça? Estou ficando louco?. Envergonhado, Hans guarda só para si e para sempre o seu drama íntimo.

    Em seguida, refeito do choro e dos lamentos, Sigmund diz aos filhos:

    – É preciso cavar a sepultura antes que a chuva venha. Eu escolho o local, demarco a cova e vocês dois cavam. Vamos lá.

    Sigmund é ancião de 72 anos; ele sempre foi inapto aos serviços braçais, às atividades físicas. Ocupa todo o seu tempo com digressões filosóficas, com a produção de textos e de poemas em alemão.

    Hans e Rolf estão cavando a sepultura, quando se aproxima o tio, o único irmão de Sigmund. Ao contrário deste, ele é falante, prático e esperto. E, como dizem que quem fala muito dá bom dia a cavalo, põe-se a falar, tentando consolar e minimizar o impacto e o sofrimento com a morte de Olga.

    – É triste a morte de uma pessoa tão jovem; mas, por outro lado e pensando bem, todos os dias morrem milhares de americanos, chineses e coreanos na guerra da Coreia. E, na sua maioria, são soldados jovens, jovens como Olga.

    Isso talvez seja um consolo. Mas ele não fica só nisso, continua falando da guerra, tomando o partido dos americanos.

    No íntimo, todos estão indignados com a inconveniência do parente. A indignação de Hans extrapola o bom senso e ele sente uma vontade, um ímpeto, de retrucar ao tio, dizer a ele que Olga não estava na guerra e não era um soldado qualquer. Na verdade, o tio parece não dar um pingo de importância à morte da sobrinha. Não demora nada (talvez cansado de tanto falar e de não ser ouvido). Logo que consegue carona se escafede para a sua casa em Ceres e só volta na manhã seguinte.

    Às três horas da tarde, as aves e os pássaros saem da mudez prolongada e voltam a cantar. É um canto triste, uma sinfonia dolente como um réquiem. Todos participam, mesmo as aves notívagas, como o curiango e a coruja. Até o urutau, que só canta o seu triste e agourento canto no entardecer. Os galos, as galinhas e as angolas, que também emudeceram, retomam o canto e o cacarejar, agora com notas, bemóis e sustenidos lastimosos.

    É quase noite quando chega o caixão. Um caixote retangular de tábuas rústicas e ásperas. Maria forra o fundo do caixão com um cobertor sapeca-negrinho, o mesmo que a filha se cobria nas noites frias de junho e julho. Olga, toda paramentada e vestida com o seu único vestido que não era de chita, é colocada no caixão que lembra mais uma descomunal caixa de bacalhau norueguês. Depois de preparada pela mãe, ela tem o semblante sereno e parece que dorme sono tranquilo com sonhos alegres e belos.

    A noite envolve tudo com a sua tétrica escuridão. No horizonte norte, nuvens escuras enegrecem ainda mais a noite, relâmpagos espocam numa sequência alucinante, como um insano flamejar de bombas. Ninguém aparece para velar o corpo. Os vizinhos próximos e os não tão próximos são inimigos declarados; o isolamento do sertão torna impossível avisar, em tempo, aos parentes e às pessoas amigas.

    Todos estão consternados e mudos em torno do caixão, quando Sigmund, então, diz com determinação:

    – Ficar aqui a noite toda não vai ressuscitar Olga. A gente fecha as portas e as janelas, apaga a lamparina e a vela, depois é cair na cama. Amanhã é outro dia.

    Não há quem fique chocado com essa determinação. No fundo, sente-se até uma espécie de alívio. O ambiente é extremamente mórbido, exasperante e desolador; além disso, a não ser a mãe, ninguém tem formação mística ou religiosa. Rolf e Hans não foram batizados por imposição do pai, que se declara livre pensador.

    Logo depois, a tempestade chega com tremenda fúria. A ventania uiva, assovia, quebra, arranca e arremessa para longe os galhos mais frágeis das árvores, raios caem para todos os lados e desaba aguaceiro doido. Granizo produz ruído de algo que se quebra ao se chocar com as telhas de barro. A ventania e os raios cessam e fica apenas a chuva torrencial, como se o céu também prateasse a morte de Olga.

    No catre onde dormiam Rolf, Hans e Olga, Hans não consegue conciliar o sono; ele sente o vazio ao seu lado com a ausência da irmã. O catre é uma cama improvisada, feita de tábuas sustentadas com pilhas de tijolos e coberta com três colchões de capim. Na beirada, dorme Rolf, no meio Hans e, antes, junto da parede, dormia Olga. Hans sente uma profunda tristeza, tristeza seca, sem lágrimas. A sua cabeça é cadinho de dúvidas, de suplício, de solidão e de tormentos abrasadores.

    Mesmo com os relâmpagos e os trovões amenizados, de instante em instante, a sala recebe leve e difusa claridade das descargas elétricas que iluminam lá fora a paisagem fantasmagórica do cerrado envolta na espessa, contínua e brumosa bátega. Na densa escuridão da sala, a luz fraca e intermitente dos coriscos alumia o semblante de Olga, que parece dormir o mesmo sono suave e tranquilo de Julieta antes do desencadear da tragédia. O barulho monótono da chuva não realça o ambiente mórbido, ao contrário, dá a ele um quê de sossego e de etéreo otimismo. Mas deixemos em paz os que dormem, pois, urge retroceder no tempo para entender a vida efêmera e trágica de Olga e os dramas e as desgraças da família desde as suas mais remotas raízes. Voltar 52 anos no tempo, precisamente o dia 10 de janeiro de 1900. Uma noite semelhante a esta, de escuridão, de sofrimentos, de solidão e de chuva torrencial.

    2

    Nas ruas desérticas e escuras da pequena Pirenópolis, a segunda maior cidade de Goiás, elo que liga a capital ao longínquo e inóspito norte do Estado, altas horas da noite e no início da madrugada, só transitam os facínoras aventureiros bolivianos, os baianos assassinos, os bandoleiros de diversas origens, os jagunços armados até os dentes e, raramente, algum homem de bem trêmulo de medo, premido por alguma urgência, envolto em algum caso de vida ou morte. Isso porque Pirenópolis é o centro comercial que abastece os rincões mais distantes, principalmente com o sal, mais valioso do que o ouro, levado no lombo dos burros pelas estradas salineiras. Os nativos da cidade – uma comunidade de parentes – protegem-se mutuamente. E olham com profunda desconfiança qualquer forasteiro que se aventure por aqui, mesmo que este tenha uma ótima aparência. Mas hoje, madrugada de 10 de janeiro de 1900, não se vê vivalma nas ruas, pois cai um aguaceiro tremendo. A luz vermelha-pálida da lamparina tremeluz apenas na modesta casa do ourives José Francisco Lopes; a sua mulher Onorina está dando à luz, assistida pela parteira Abadia Onça, uma negra alta e de feições duras. Ela é a especialista mais requisitada na cidade. A sua alta competência jamais foi questionada por quem quer que seja. Precisamente as três horas, quando os galos já começam o canto, ouve-se na casa o choro de uma criança recém-nascida. O choro de Maria Geny, esta que será no futuro a mãe de Olga. Mas, após o parto, Onorina se esvai em sangue e logo em seguida é acometida de convulsões causadas pela eclampse. E, no raiar do dia, ela morre.

    O viúvo derrama-se em lágrimas e maldiz a sorte madrasta. Ao lado dele e em volta da morta, crianças também choram a morte da mãe. O mais velho, Luiz, tem dez anos e a mais nova, Diana, não tem dois anos completos. Ao todo são sete crianças órfãs: Luiz, Délio, Virgínia, Onorina, Minerva, Diana e a recém-nascida.

    A parteira Abadia Onça interfere no pranto. Ela é profissional que sabe que as suas obrigações não acabam na conclusão do parto. Ainda mais neste caso em que terminou com a morte da parturiente, mesmo com todos os seus esforços, conhecimentos e com a destreza das suas mãos experientes.

    – Vosmecê me perdoa, mas eu preciso falar de uma coisa urgente. A criança carece de mamar o quanto antes o leite primeiro, o colostro, pra ela crescer na saúde. Ontem fiz um parto. Se o sinhô permitir eu levo a criança e peço pra mulher dar de mamar pra ela também.

    – Está bem. Faça o que achar melhor.

    José Francisco Lopes, o viúvo, é homem ensimesmado, fechado no seu mundo, sem amigos, longe dos parentes, cheio de manias – provavelmente um esquizofrênico. Mas é um verdadeiro artista, artista requintado na manipulação do ouro. Das suas mãos hábeis, surgem as joias mais intrigantes e belas. Isso sem falar no seu profundo conhecimento em relojoaria. Mas, mesmo assim, ele vive uma vida extremamente modesta. A sua natureza ranzinza e introvertida não permite que ele crie raízes e cultive amizades. Vive de léu em léu como os ciganos. Começou o seu ofício de ourives ainda muito jovem, quase um menino, numa joalheria em Minas Gerais. Em pouco tempo, angariou a admiração de clientes, de colegas e principalmente do patrão (judeu temente a Deus, fanático fiel do judaísmo que levava a sua vida seguindo de modo intransigente as leis e os ensinamentos da Torá). Mas ele, José Francisco, justamente se apaixonou por Onorina, a filha do judeu Simon, o seu patrão. E ela também caiu de amor imorredouro por ele. Paixão tão arrebatadora que, com a proibição da família Simon, eles resolveram fugir para longe, para casar e para dar asas ao amor e à paixão. Vidas de judeus errantes apaixonados, mesmo sendo ele um gentio.

    Onorina adaptou-se, sem nenhuma queixa, sem incriminações, à sofrida vida errante e de trânsfuga. Se, por um lado, José Francisco viu e vê o mundo e as pessoas como estranhos, ou mesmo como inimigos, por outro lado, por incrível que pareça, ele sempre dispensou à mulher o máximo de carinho, de compreensão e de abnegação. Agora, que ela está morta, ele se sente tão órfão como os próprios filhos órfãos.

    Na atroz solidão do pós-sepultamento (cerimônia de tristeza estrema que, fora da família, contou apenas com a presença solitária e solidária da parteira Abadia Onça), José Francisco se sente desnorteado, vencido, acabrunhado, sem saber o que fazer com a recém-nascida. Com tantas crianças pra cuidar, como é que vou cuidar de mais uma? De uma recém-nascida? Como? Mas, no fundo do seu ser, ele sente uma espécie de mágoa e de desprezo pela filha, causadora inocente do seu infortúnio, da sua desgraça. Sem nenhum amigo para se queixar do seu dilema, ele, então, se queixa com a Abadia Onça. Esta, como sempre solidária e sem meias palavras, vai diretamente ao cerne da questão.

    – É... Concordo. Condição de criar a menina, sozinho, o sinhô não tem. Não tem mesmo. Posso dar um palpite? Posso?

    – É claro que pode. Eu, realmente, não sei o que fazer.

    – E por que o sinhô não dá ela pra criar?

    – Dar ela pra criar?

    – Dar a menina pra uma família criar. Se o sinhô decidir, eu posso ajudar. Eu conheço um casal sem filhos, gente boa, gente de confiança. Ele é viúvo e de segundo casamento. Do primeiro casamento, ele tem duas filhas que vivem com a família da finada. Já a mulher dele de agora não pode ter filhos. Eu sei por que ela me falou. Falou que sonha em criar uma criança como se fosse filha dela.

    – Pode falar com eles. Em seguida, eu vou lá e combino tudo.

    No interior do Brasil, neste ano de Um Mil e Novecentos do nascimento do nosso Senhor Jesus Cristo, não se conhece o termo adoção. As crianças órfãs doadas são tratadas, pelas famílias que as recebem, como animais de estimação. Muitas vezes não tão bem assim. Não raro como criadas ou escravas sem nenhum direito. Mesmo sendo conhecedor desses fatos, Francisco Lopes não quer, no íntimo, outra opção que não essa, principalmente sabendo que se ficar com a menina terá que conviver, todas as horas da sua vida, com aquela que, sem querer, causou a sua desgraça. Portanto, livrar-se dela não é a única opção, mas a ideal.

    De modo incoerente, José Francisco Lopes vai até o cartório e registra a menina com o nome de Maria Geny Lopes. Em seguida segue, com ela nos braços, até a casa do casal que aceitou criá-la.

    Ao chegar ao endereço indicado, ele observa o casarão com seis janelões de madeira, três de cada lado, e uma grande porta também de madeira, todas pintadas de azul-marinho; a parede coberta de cal, cuja brancura ofusca os olhos. Deve ser casa de comerciante ou fazendeiro, diz José para si mesmo. Então, bate os dedos com força na madeira da porta. Logo em seguida, a porta se abre e um homem de meia-idade, pele branca avermelhada pelo Sol, sorriso largo e simpático na boca de lábios finos, o convida a entrar. E ambos vão por um longo corredor. À direita, vê-se uma grande sala de móveis coloniais; à esquerda, apenas portas fechadas, provavelmente quartos. O corredor termina numa extensa varanda com vista para o quintal coberto de árvores frutívoras. O dono da casa e a sua esposa não poupam mesuras para com o visitante. Oferecem lhe café, quitanda e doces.

    Sempre sério e distante, José Francisco não faz nenhuma exigência ou recomendação, talvez temendo gerar dificuldades à aceitação por parte do casal. Depois de estar tudo acertado e de acordo, o novo pai de criação de Maria Geny, então, diz de maneira extremamente afável:

    – O senhor poderá visitá-la a hora e o dia que quiser. Fica tranquilo, nós vamos tratar a menina como verdadeira filha. – E a esposa dele completa com muita ternura na voz:

    – Ela será a filha querida que não temos. – Com a criança no braço, ela afasta o pano que cobre o rostinho da recém-nascida e diz:

    – Como ela é linda! – Já com o sentimento materno à flor da pele que vê beleza nos olhos empapuçados e no rosto feio, inchado e cheio de rugas das crianças recém-nascidas.

    Sair dali o mais rápido possível é o que quer José Francisco. Sente rubor no rosto e comichões pelo corpo. Aquela cena de ternura que acabara de assistir em vez de dirimir dúvidas lhe causa profunda e irreprimível irritação. Então diz, de maneira ríspida e abrupta:

    – Já me vou. Passar bem. – E movimenta-se em direção ao corredor e à porta.

    – O senhor não vai se despedir da filha? Pegá-la nos braços? – diz Dona Mariazinha, a nova mãe de Maria Geny.

    Ele para e olha incrédulo para ela, expressão de menino que é pego roubando doce. Refeito do repentino embaraço, retorna e pega a criança nos braços. Não sorri e, ao olhar para o rosto da filha, sente que nunca mais voltará a rever aquele rostinho inocente que traz alguns inconfundíveis traços da mãe morta.

    3

    Nesse mesmo dia, na mesma hora, numa rua próxima, em uma ferraria, um jovem de vinte anos e de estatura fora dos padrões das pessoas que transitam e habitam a cidade de Pirenópolis, mais de um metro e noventa de altura, franzino, pele muito clara e rosto vermelho queimado pelo sol, aguarda a sua vez de ser atendido pelo ferreiro. Ele acabara de comprar um cavalo e uma mula e, como ambos têm os cascos limpos, desprotegidos, é preciso colocar ferraduras neles. Várias pessoas também estão à espera para ser atendidas. Neste lugar se faz de tudo: fabrica ferramentas, ferra animais e amola facas e facões. São apenas dois ferreiros e um aprendiz. O jovem forasteiro não é da cidade, nem facínora boliviano, muito menos baiano assassino, jagunço ou bandoleiro. Ele veio de Blumenau à procura de ouro, de prata, de minérios. Na Alemanha, terminara o curso de mineralogia. Agora está no interior do Brasil, no sertão de Goiás, para pôr em prática os seus conhecimentos teóricos escolares. Ele tenta se aproximar das pessoas de maneira simpática e afável, mas essas não dão a mínima atenção a ele. São seres broncos, rudes, mal-encarados, monossilábicos. Então fica calado, observando o ambiente e as pessoas. Alguns dos que estão ali ostentam bócios avantajados, tributo que pagam por viver longe do litoral, carentes de iodo, pois o sal que consomem vem de jazidas de sal, de salinas, paupérrimo em sais minerais e em iodo. Agora a atenção dele se volta para um personagem que acaba de chegar. Ele é forte, porém baixo e atarracado. Traz na cintura, bem à vista, um revólver de cabo de madrepérola e do outro lado do quadril um longo facão embainhado. Dirige-se aos ferreiros que estão ferrando um animal e diz a eles num tom de voz agressivo, prepotente e retirando o facão da bainha:

    – Eu quero que amole agora esse meu facão.

    O ferreiro dono da ferraria levanta, gira o rosto em direção a ele e, ao notar de quem se trata, diz solícito:

    – É pra já, amigo. – E, dirigindo-se ao aprendiz, Adão amola bem amolado o facão do senhor aqui. Largue o que você está fazendo e faça isso agora.

    O jovem minerador fica observando o prepotente do facão. Ele não inspira nenhuma simpatia, ao contrário, parece que faz questão de se mostrar extremamente antipático; nariz empinado, olhos pequenos e negros de serpente estáticos, fixos à frente, sem se moverem, nem por um instante, para um lado ou para o outro, a boca rija como se estivesse sempre mordendo a parte interna dos lábios. Os braços fortes cruzados no peito musculoso e gordo dão a ele um ar de superioridade e de desprezo por todos aqueles que estão na ferraria. Ele solta um longo suspiro de enfado e impaciência. Sentado num velho tamborete, de vez em quando, muda de posição com gestos bruscos e nervosos.

    Adão, o aprendiz, tem no máximo dezessete anos. Ele dá corte ao facão num esmeril acionado com pedal, depois o leva a uma pedra de afiar, experimenta o corte com o dedo polegar e sente que o trabalho está bem feito. E se dirige ao dono do facão:

    – Pronto, senhor. O seu facão está bem afiado.

    O homem pega o facão, passa o dedo polegar no corte e diz:

    – Você chama isso de bem afiado?

    – Sim, senhor.

    – Está uma merda.

    Levanta-se e, num gesto brusco e violento, quase decepa a cabeça do aprendiz. O gume do facão secciona as carótidas, o esôfago e quase parte as vértebras do pescoço do aprendiz. O sangue jorra longe. O rapaz, num gesto reflexo, leva as mãos ao pescoço e tomba de bruços numa poça de sangue.

    O homem, então, limpando o sangue do facão na própria calça, diz com voz calma:

    – É, tá bom. Tá bem afiado.

    Joga uma moeda de ouro sobre o corpo estrebuchante. Sai sem dizer mais nada, assoviando uma música qualquer. Monta a cavalo e, em passo lento, desaparece na próxima esquina.

    Ninguém move uma palha, como se esse fosse o fato mais natural do mundo. Os ferreiros levantam a cabeça por um instante e continuam com o trabalho de ferrar o animal. O jovem minerador está paralisado com aquela cena brusca, violenta e aterradora. Jamais poderia supor que um dia pudesse presenciar cena tão violenta, gratuita e de maldade extrema como aquela.

    Quando Sigmund, o jovem minerador, sai da ferraria, vai direto para a única loja que vende de tudo, de alimentos a qualquer tipo de arma de fogo. Ele, que não traz consigo nem um canivete, depois da cena violenta que presenciou na ferraria, sente necessidade de andar bem armado, principalmente para impor respeito. Compra um revólver 38, cano longo, da marca Smith & Wesson, e um rifle Winchester. Adquire também uma boa quantidade de munição. Na Alemanha, teve lições básicas de como lidar com armas de fogo. Mas sabe que isso não basta, é preciso ser exímio atirador. Antes de se embrenhar no sertão, tem que se tornar um atirador rápido e preciso. Todos os dias, logo pela manhã, sai da

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