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Dissidências de Género e Sexualidade na Literatura Brasileira: uma antologia (1842-1930) - Volume 1. Desejos
Dissidências de Género e Sexualidade na Literatura Brasileira: uma antologia (1842-1930) - Volume 1. Desejos
Dissidências de Género e Sexualidade na Literatura Brasileira: uma antologia (1842-1930) - Volume 1. Desejos
E-book1.201 páginas6 horas

Dissidências de Género e Sexualidade na Literatura Brasileira: uma antologia (1842-1930) - Volume 1. Desejos

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Sobre este e-book

César Braga-Pinto e Helder Thiago Maia reuniram nos dois abrangentes volumes desta antologia quase cem anos – “um longuíssimo século XIX” – de textos ilustrativos das dissidências de género e sexualidade da literatura brasileira, cruciais para se “compreender o lugar do Brasil na história do género, das sexualidades e das homossexualidades ocidentais.”
Segundo os organizadores, “mais importante do que criar um subcânone LGBT, a contribuição desta antologia será, ao contrário, de ampliação e desestabilização do cânone literário, reconstruindo o contexto em que este se consagrou. Esta antologia “contém inúmeras descobertas, seja de autores esquecidos, como Laurindo Rabelo, Ferreira Leal, Nestor Vitor, João Luso, Vinício da Veiga, Laura Villares e outros, seja de textos menos conhecidos de autores consagrados. Assim, mesmo autores como Machado de Assis, ao serem lidos em companhia de tantos inusitados escritores, poderão ser lidos sob um prisma até agora insuspeito, menos como uma exceção de seu tempo, mas em diálogo com seus contemporâneos e antecessores.”

O primeiro volume, “Desejos”, debruça-se sobre o desejo homoerótico, incluindo o desejo dito “homossocial”, que se alarga num amplo contínuo do qual a misoginia, a homofobia e o “pânico homossexual” não estão excluídos.

O segundo volume, “Performances”, reúne as representações não-normativas de género – homens efeminados, mulheres masculinas, assim como personagens que transitam entre géneros – e que raramente permitem afirmar algo sobre a (homo)sexualidade dos personagens.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de jun. de 2021
ISBN9781005506933
Dissidências de Género e Sexualidade na Literatura Brasileira: uma antologia (1842-1930) - Volume 1. Desejos

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    Dissidências de Género e Sexualidade na Literatura Brasileira - César Braga-Pinto

    Dissidências

    de género e sexualidade

    na literatura brasileira

    uma antologia (1842-1930)

    Volume 1. Desejos

    Organização e Introdução de:

    César Braga-Pinto e

    Helder Thiago Maia.

    INDEX ebooks

    2021

    Ficha técnica

    Título: Dissidências de Género e Sexualidade na Literatura Brasileira: uma antologia (1842–1930) – Volume 1. Desejos.

    Organização e introdução: César Braga-Pinto e Helder Thiago Maia.

    Capa: pormenor de ilustração de O Menino Gouveia (1914), de Capadócio Maluco.

    Revisão e anotação: João Máximo, Luís Chainho e Patrícia Relvas.

    Coleção Clássicos de Literatura Gay: número 14.

    Data de publicação: 21 de junho de 2021

    Edição 1.00 de 21 de junho de 2021

    Copyright © João Máximo e Luís Chainho, 2021

    Todos os direitos reservados.

    Os organizadores e os editores estão gratos aos titulares dos direitos de autor das obras de Benjamin Costallat, José Brito Broca, Vinício da Veiga e Francisco Albernaz pela gentileza da autorização graciosa que concederam para publicação de trechos selecionados das obras.

    Em relação aos restantes textos antologiados, que não se encontram no domínio público, foram empreendidos todos os esforços no sentido de identificar e localizar todos os detentores dos direitos de autor. Dos pouquíssimos autores cujos herdeiros são desconhecidos, tomámos a iniciativa de reproduzir apenas pequenos trechos da obra, de acordo com a legislação em vigor. Contudo, caso se reconheça e identifique como titular de direitos, assumimos a responsabilidade por eventuais omissões involuntárias e ficamos à disposição para regularizar a situação e/ou incluir os devidos créditos em edições futuras desta antologia, para o que bastará contactar a editora através do endereço de e-mail indexebooks.com@gmail.com.

    Esta publicação não poderá ser reproduzida nem transmitida, parcial ou totalmente, de nenhuma forma e por nenhuns meios, eletrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, digitalização, gravação ou qualquer outro suporte de informação ou sistema de reprodução, sem o consentimento escrito prévio dos editores, exceto no caso de citações breves para inclusão em artigos críticos ou estudos.

    INDEX ebooks

    www.indexebooks.com

    indexebooks.com@gmail.com

    www.facebook.com/indexebooks

    Lisboa, Portugal

    ISBN:978-1005506933 (ebook)

    Introdução

    Introdução

    Toda antologia é uma interpretação. Enquanto recorte e construção de um arquivo tem muito de pessoal, e necessariamente envolve escolhas que inevitavelmente estarão sujeitas a questionamentos. No caso de uma antologia organizada a quatro mãos, essas escolhas envolvem também diálogo e negociação.

    A primeira decisão que tivemos de tomar diz respeito à organização cronológica e ao recorte temporal dos volumes. Por um lado, quisemos evitar qualquer noção de sistema literário, em que antecedentes, genealogias ou paternidades fossem estabelecidas de forma evolutiva. No entanto, sem querer ocultar as descontinuidades e ruturas, pareceu-nos inevitável a organização cronológica, já que nossa intenção é também que este livro se torne um subsídio para a história literária das dissidências de género e sexualidade no Brasil.

    Quanto ao recorte temporal (1842–1930), este justifica-se em parte por razões de ordem prática, ou seja, dos direitos autorais. Assim, com poucas exceções, cujas autorizações dos herdeiros foram devidamente obtidas sempre que possível, os textos aqui representados estão todos em domínio público. No âmbito mais conceitual, os quase cem anos cobertos pelos dois volumes, – um longuíssimo século XIX, – representam um período decisivo para se compreender o lugar do Brasil na história do género, das sexualidades e das homossexualidades ocidentais. A ser confirmada, nossa hipótese é que as transformações relativas a género e sexualidade ilustradas nos textos aqui reunidos estão de facto consolidadas a partir de 1930, momento em que talvez se possa dizer que se inicia o novo século XX.

    Quanto à organização em dois volumes – I. Desejos e II. Performances – a divisão foi tornando-se cada vez mais necessária à medida que a pesquisa crescia. Nossa preocupação foi também evitar uma associação fácil entre representações de género e de sexualidade. Ou seja, as representações não-normativas de género reunidas no segundo volume – homens efeminados, mulheres masculinas, assim como personagens que transitam entre géneros – raramente permitem que se afirme algo sobre a (homo)sexualidade das personagens. Na verdade, tais representações estão situadas em um contínuo: em um extremo estão os trânsitos de género, como nos romances O moço loiro (1845) e As mulheres de mantilha (1880), ou na peça Antonica da Silva (1880), todos os três de Manuel Antônio de Almeida, assim como a protagonista de Maria ou A menina roubada (1852), de Teixeira e Sousa, a cena curta do célebre ator e comediógrafo Vasques, O sr. Anselmo, apaixonado pelo Alcazar (1862), ou ainda do capítulo de Macunaíma (1928), A francesa e o gigante, de Mário de Andrade. Tais situações refletem, antes de mais nada, as convenções dos géneros cómico, melodramático ou paródico. O que não quer dizer que a cena do trânsito de género não responda a transformações relativas ao género (masculino/feminino), nem que exclua por inteiro o desejo (homo)erótico. Com efeito, a confusão de géneros pode de facto criar situações ambíguas, como fica claro no caso de A mulheres de mantilha, e mesmo de A menina roubada, cujo protagonista é, na literatura brasileira, o primeiro precursor do Diadorim de Grande Sertão: veredas (1956).

    Já as masculinidades e feminilidades não hegemónicas tampouco refletem necessariamente identidade ou orientação sexual, seja quando a dissidência é de caráter supostamente biológico, como em Impotência (1899), de Paulo Barreto (ainda antes de se tornar João do Rio), seja quando o grau de masculinidade ou feminilidade estejam associados ao comportamento do personagem ou à percepção da sociedade em que vive. Um caso notável é o do personagem do conto O Sinhazinha (1904), de João Luso (pseudónimo do escritor luso-brasileiro Armando Erse), cujos modos são vistos como afeminados mesmo quando se esforça para demonstrar sua macheza. Qualquer conclusão sobre a sua sexualidade refletirá mais o preconceito ou desejo do leitor do que uma relação necessária entre géneros e sexualidades.

    Outro caso de associação do personagem mestiço com afeminação é o do Cabo Machado (1926), célebre poema de Mário de Andrade, mas neste é o olhar erotizado ou erotizante do poeta que introduz possíveis sugestões de homossexualidade. Além destes, a pouca masculinidade de personagens masculinos aparece por vezes implicitamente associada a sugestões de sexualidades não-normativas em textos mais ou menos derrogatórios ou de intenção ridicularizante, como é caso do famoso Albino de O cortiço (1890), de Aluísio de Azevedo, o Maricas de Flor de sangue (1897), ou, entre outros, do poemeto anónimo Fresca Teoria (1903). Por outro lado, menos comum são os personagens hipermasculinizados, como o caso real de Febrônio Índio do Brasil. Apesar do trecho do seu As revelações do príncipe do fogo (1926) não conter referência à dissidência de género ou de sexualidade, optámos por mantê-lo, mesmo se somente pela estranheza do texto em si e da figura do seu autor, lido e admirado pelos modernistas, em particular Mário de Andrade, em cuja biblioteca se encontra um dos raros exemplares do livro. Em termos de personagens mulheres masculinizadas, além da obra já citada de Teixeira e Sousa, não podíamos deixar de incluir as protagonistas de Dona Guidinha do Poço (1892), de Manuel de Oliveira Paiva, e de Luzia-Homem (1903), de Domingos Olímpio, hoje já bastante estudas no contexto das chamadas mulheres guerreiras, além de outras, menos conhecidas, que aparecem de passagem como no Extasis (1927), de Laura Villares. Ao mesmo tempo, em um período em que o papel social da mulher se encontra em grande transformação, há uma enorme gama de personagens que, digamos, fogem ao destino do seu género, que chegámos a considerar, mas acabámos por excluir, tais como a Lenita de A carne (1888), de Júlio Ribeiro, ou a Ladice de Exaltação (1916), de Albertina Bertha, entre muitas outras. Finalmente, o leitor encontrará neste volume também os casos de androginia ou intersexualidade no romance Esfinge (1908) e na peça O patinho torto (1918), ambos de Coelho Neto.

    Se no segundo volume notamos tal heterogeneidade de representações do género, a organização do primeiro volume, em que se trata do desejo homoerótico, é igualmente complexa. Como nos ensina Eve Sedgwick em Between men, os desejos ditos homossociais formam um amplo contínuo do qual a misoginia, a homofobia e o que ela chama de pânico homossexual não estão excluídos. Se fôssemos seguir esse conceito à risca, praticamente toda a literatura do período poderia ser lida sob a lente do desejo homossocial, mas em particular toda a literatura do adultério, em que a tensão no triângulo amoroso quase sempre se localiza menos na relação com a mulher adúltera do que entre marido e amante. Entre os casos mais célebres estaria o de Bentinho e Escobar em Dom Casmurro (1899), como se tem sugerido.  Se por um lado julgámos desnecessário incluí-lo, por outro pareceu-nos inevitável incluir um texto como Pílades e Orestes (1903), não porque exista consenso (talvez nem mesmo entre os organizadores) quanto ao homoerotismo da história dos dois personagens, chamados por uma senhora de casadinhos de fresco, mas senão pelo facto de que, tendo sido incluído em outras antologias gay, e frequentemente interpretado como homoerótico, o conto já faz parte do repertório. Semelhante é o caso de Vertigem (1926), de Laura Villares, cujo homoerotismo, se há de facto algum, é muito ténue, mas que, desde que foi incluído no estudo de Luiz Mott, Lesbianismo no Brasil (1987), tem sido repetidamente incluído na historiografia da literatura da lesbianidade, ainda que muitas vezes se note que os críticos que citam a obra provavelmente não tiveram acesso ao original. Considerando a raridade do livro, do qual se conhece apenas um exemplar na Academia Paulista de Letras, achámos importante incluir o trecho em questão, além do já citado Extasis (1927). Incluímos ainda outros textos que parecerão ao leitor só potencialmente homoeróticos, situados no extremo do desejo homossocial, onde sobressaem temas como o da rivalidade e do duplo, como seria o caso de O coruja (1899), de Aluísio de Azevedo – uma história de uma amizade governada pela competição, inveja e alguma hierarquia – ou O outro (1901), de Arthur Lobo.

    No outro extremo, o do homoerotismo (masculino) propriamente dito – mais próximo do sexual – incluem-se textos como o episódio de Serões do convento (1862), de José Feliciano de Castilho, o clássico Bom crioulo (1895), de Adolfo Caminha, e o capítulo do pouquíssimo conhecido folhetim A casadinha (1902), assinado com o provável pseudónimo Symphrônio Perillo. Entre os dois extremos encontram-se as histórias de afetos e desejos mais ou menos confessados, geralmente não consumados, como a relação entre Sérgio e Sanches em O Ateneu (1888), de Raul Pompeia; entre Bruce e Ernesto em Sapo (1898), de Nestor Vítor; o desejo expresso nas crónicas de Brito Broca escritas na década de 1920; ou os bem conhecidos e estudados contos de Mário de Andrade, Frederico Paciência (1924/1942) e Túmulo, túmulo, túmulo (1923–1926). A diferenciação que se propõe aqui fica clara em um caso clássico, como o de O cortiço (1890), de Aluísio de Azevedo, um dos primeiros textos literários estudados sob o ponto de vista de homossexualidade no Brasil. Se, por um lado, a cena de sexo entre Léonie e Pombinha é explicitamente sexual, não há contudo qualquer sugestão de inversão de géneros. Já em relação a Albino, no mesmo romance, apesar de se comentar que não conhece mulher, é menos sua sexualidade do que sua performance de género, estranha às normas do masculino, que é posta em questão. Finalmente, o assédio do velho Botelho sobre o jovem Henrique nada afeta a presunção de masculinidade de ambos. Ou seja, tal heterogeneidade entre representações de género e sexualidade é o que justifica que diferentes trechos do romance, assim como de O Ateneu (1888), apareçam em ambos os volumes.

    É necessário enfatizar ainda que a representação literária do erotismo entre mulheres, além de muito mais rara, não só difere muito da do erotismo entre homens, mas também varia segundo o género do autor.  Assim, há momentos explicitamente homoeróticos seja em Saturnino, porteiro dos frades bentos (1842), Serões do Convento (1862) e Mademoiselle Cinema (1920), além do citado O cortiço (1890). Mas se em outros casos a leitura do contínuo lésbico exige um olhar muito específico, e mesmo interessado, acreditamos que ao destacá-los, a antologia oferece uma contribuição por vezes surpreendente para o arquivo a que nos propomos, como são os casos de Acauã (1892), de Inglês de Souza, ou de Nizia Figueira, sua criada (1925–1934), de Mário de Andrade, em que o desejo e o afeto entre as mulheres transitam no limite do erótico. Já nos textos de autoria feminina, a intersecção entre amor e amizade aparece sobretudo em poemas como o A uma amiga (1871), de Maria Firmina dos Reis, ou os poemas escritos pela Baronesa de Mamanguape, pseudónimo de Carmen Freire, em 1897, e a Dança de Centauras (1903), de Francisca Júlia. No geral, nas obras escritas por homens, a lesbianidade aparece como extravagância que por vezes beira ao histerismo. Aliás, se estamos conscientes de que em muitos dos textos reunidos nos dois volumes as dissidências sexuais e de género eram vistas de forma inegavelmente discriminatória, dentro de um universo classificatório de perversões que incluíam sadomasoquismo, vampirismo, ninfomania, alcoolismo e outros vícios (éter, cocaína, etc.), acreditamos que ainda assim o arquivo que aqui propomos é uma contribuição tanto para a história das dissidências de género e sexualidade quanto para a história da violência lgbtfóbica no Brasil, histórias que não se identificam, mas que por vezes se intersetam.

    Finalmente, mais importante do que criar um subcânone LGBT, a contribuição desta antologia será, ao contrário, de ampliação e desestabilização do cânone literário, reconstruindo o contexto em que este se consagrou. Assim, por um lado, a antologia contém inúmeras descobertas, seja de autores esquecidos, como Laurindo Rabelo, Ferreira Leal, Nestor Vitor, João Luso, Vinício da Veiga, Laura Villares e outros, seja de textos menos conhecidos de autores consagrados. Assim, mesmo autores como Machado de Assis, ao serem lidos em companhia de tantos inusitados escritores, poderão ser lidos sob um prisma até agora insuspeito, menos como uma exceção de seu tempo, mas em diálogo com seus contemporâneos e antecessores. Em termos de contextualização, quisemos indicar também a sombra de Oscar Wilde nas primeiras décadas do século XX, desde os textos de João do Rio e Elísio de Carvalho, até ao folhetim do Rio nu e às crónicas de Brito Broca. Por isso, apesar de não ser propriamente homoerótico, o texto de José Geraldo Vieira, intitulado exatamente de Oscar Wilde (1921), merece o espaço a ele dedicado.

    Uma nota sobre os títulos. Como muitos dos trechos são extraídos de romances e contos, demos, no primeiro volume, títulos que ressaltam o desejo homoerótico entre duas (ou mais) personagens, enquanto, no segundo volume, o que ressaltamos é o nome da personagem cuja identidade ou performance de género está em questão.

    A ideia deste projeto surgiu em meados de março de 2020. Tendo apenas nos comunicado alguma vezes por meio de redes sociais, encontrámo-nos pela primeira vez no Café Modernista, no centro de São Paulo, onde trocámos nossos livros, tomámos café, fofocámos e demos algumas risadas. Nossa colaboração nasceu, assim, junto com nossa amizade. Mas também sob o espectro da pandemia COVID–19 que, naquele momento, apenas começava, sem que imaginássemos que tomaria as dimensões que tomou. Entre março e dezembro, dedicámos a maior parte do trabalho à pesquisa, digitação e sobretudo diálogo, em que, entre excessos e recatos, nos ajudámos um a outro a fazer as escolhas necessárias, às vezes difíceis, e por fim, a definir os critérios. Importante também notar que, com algumas exceções de acervos digitalizados, como a Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, a pandemia tornou o acesso a arquivos, normalmente já bastante complicado no Brasil, ainda mais difícil. Sem poder acessar bibliotecas físicas, tivemos de deixar de fora alguns (surpreendentemente poucos) textos importantes, como O terceiro sexo (1930) de Odilon Azevedo, que entre outras coisas narra a relação entre Inácia/Alemão e Sônia, e que esperamos incluir em uma futura edição.

    É importante mencionar também que durante o processo de pesquisa de arquivos digitais se evidenciou uma notável assimetria geopolítica, em que o pesquisador situado em uma instituição universitária norte-americana de elite desfruta de certas facilidades, privilégios e vantagens institucionais e económicas dos quais em geral está privado o pesquisador do hemisfério sul. Por exemplo, a pesquisa foi grandemente facilitada graças ao acesso, através da biblioteca da Northwestern University, a acordos entre bibliotecas norte-americanas e acervos digitais, como o Hathitrust Digital Library e a Biblioteca Oliveira Lima de Washington D.C.. De modo que o trabalho de colaboração não deixa de ser, assim esperamos, um gesto político, na medida em que promove a circulação e redistribuição do arquivo, disponibilizado para novas leituras, interpretações, apropriações e redirecionamentos, para além dos meios universitários. E se, por um lado, o resultado superou em muito as nossas expectativas iniciais, com descobertas surpreendentes nos arquivos, temos consciência de que deve haver ainda muito material a ser explorado. Aliás, até aos últimos momentos, antes de entregar o manuscrito, continuámos a descobrir novas fontes. Em particular, esperamos que pesquisas futuras revelem uma quantidade maior de textos de autoria feminina.

    Um trabalho de investigação como este que se apresenta não seria possível sem muito diálogo e a colaboração de uma ampla comunidade de pesquisadores. Não podemos deixar de expressar o nosso agradecimento e dívida aos inúmeros amigos e colegas que, de uma maneira ou de outra, participaram no projeto, entre eles: Marta Garcia, pelo diálogo intenso e estimulante, além do auxílio em localizar originais; Leonardo Mendes, pela generosidade em compartilhar originais, além do seu incansável esforço em redescobrir autores e obras esquecidos, sobretudo os naturalistas do século XIX; Paulo Donadio Baptista, pelas informações preciosas sobre Théo Filho; Camilo Prado, por compartilhar seu conhecimento sobre César de Castro; João Silvério Trevisan, pela amizade, pelos bate-papos e sobretudo pelo trabalho pioneiro de historiografia da literatura LGBTQIA+; às famílias e herdeiros dos escritores cujas obras ainda não se encontram em domínio público, em particular, os herdeiros de Théo Filho, Vinício da Veiga, Brito Borca, Couto de Magalhães, Benjamin Costallat, José Geraldo Vieira e Francisco Albernaz; e às editoras INDEX e Devires, por se entusiasmarem com o nossos projeto e pelo esforço que ambas fazem para publicar autores LGBTQIA+.

    Concluímos o trabalho em um momento de otimismo, já que tudo indica que, quando o livro vier à luz, a vacinação e o controle da epidemia terão se tornado realidade, e teremos superado um dos períodos mais extraordinariamente difíceis de nossa história. Que a derrota de Trump seja mais um auspício do início de um novo tempo de maior liberdade, tolerância e solidariedade. É nesse contexto de luto, de luta e de esperança, e com enorme prazer, que oferecemos os dois volumes de Dissidências de gênero e sexualidade.

    César Braga-Pinto

    Helder Thiago Maia

    Dissidências

    de Género e Sexualidade na Literatura Brasileira

    Volume I:

    Desejos

    1.

    Soror Mónica e Susana

    (Saturnino, Porteiro dos Frades Bentos, 1842)

    Anónimo

    Uma noite, em que eu dormia a sono solto na minha cela, fui acordada repentinamente por um vulto que pretendia meter-se na cama comigo. Assustei-me e quis gritar, porém, pondo-se-me a mão na boca, me disseram com uma voz baixa e terna:

    – Cala-te, Susana, eu não venho aqui para fazer-te dano, sou a tua irmã Mónica, sossega.

    Esta irmã tinha acabado de tomar o véu de noviça e era a minha melhor amiga.

    – Que motivo, minha Mónica, te obrigou a levantares-te a estas horas. Sucedeu-te algum desastre? lhe perguntei eu.

    – Não, respondeu ela, é porque te estimo muito.

    – E porque estás nua? tornei eu.

    – Porque o calor é tão forte que mesmo a camisa me faz suar, diz ela. Não sentes os trovões? Que noite tão medonha! Parece revoltar-se o abismo! Meu Deus, que relâmpago penetrou os frisos daquela janela! Ah! minha cara Susana, eu gelo de susto! Cobre-me a cabeça com o lençol, une-te, une-te bastante a mim.

    Eu, que me persuadi da sua sinceridade, fiz tudo quanto me pedia Mónica, que realmente estava convulsa. Suas pernas enlaçavam-se com as minhas e, nesta postura, ela se esfregava comigo, metendo-me a língua na boca e dando-me pequenas palmadas nas nádegas. Passados poucos instantes, eu vi que ela se agitava com violência e me senti molhada. Todos esses momentos, e seus convulsos suspiros, mais me faziam persuadir do pavor que a dominava e lastimei sua fraqueza. Porém, parecendo-me que sossegava e queria dormir, por a ver tomar uma postura natural, diligenciei fazer o mesmo, o que me foi impossível. Mónica, vendo a minha determinação, me diz:

    – Não durmas, Susana, se me desamparas morrerei de susto, dá-me a tua mão, dá-me, minha adorável Susana.

    Dei-lha imediatamente. Ela a levou sobre a sua greta e me pediu que lhe fizesse cócegas na parte superior. Executei o que ela me pedia e observei que, sem pronunciar palavras, alargava as pernas, respirava com velocidade e lançava, a tempo, alguns suspiros, remexendo-se toda. Novamente persuadida de que não estava boa, deixei de continuar no meu exercício.

    – Ah! exclamava ela, continua, minha joia, mais depressa, continua, eu morro, eu morro.

    Ao mesmo momento em que ela dizia isto, seu corpo se entesava e me senti novamente alagada. Finalmente, lançou um grande suspiro e ficou sem movimento. Eu percebi então que tudo o que acabava de fazer a Mónica lhe causava um excessivo prazer e que se ela me quisesse fazer outro tanto eu sentiria o mesmo, porém, não me atrevia a rogar-lho. O meu estado era bem crítico, desejava e não me resolvia a declarar meu desejo. Minha mão animava sua greta, eu pegava na sua e corria com ela diferentes partes do meu corpo, sem ousar passar sobre aquele onde só desejava que ela estivesse. Mónica, que conhecia muito bem o que eu queria, e que disfarçava maliciosamente, teve por fim piedade de mim e me disse, abraçando-me:

    – Eu bem vejo o que tu queres, velhaquinha, e vou satisfazer-te.

    Lança-se sobre mim, manda-me alargar as pernas e me introduz o dedo pela minha greta. O prazer me ia alucinando, gradualmente. Retribuía-lhe com o mesmo serviço. Uniu depois as minhas coxas, ordenou que rebolasse sobre a cama à proporção que ela me apertava. Ah! que delícia, que prazeres ela semeava nestes encantadores movimentos! Arrebatei-me de tal modo que fiquei sem acordo nos braços de Mónica, ela desmaia ao mesmo tempo e ambas ficamos amortecidas.

    Recobrando os sentidos, achei-me toda alagada e igualmente Mónica, e, não sabendo a que atribuísse esse prodígio, tive a simplicidade de acreditar que seria sangue que eu tinha vertido, o que, devendo naturalmente afligir-me, nem me causou o menor abalo. Antes, arrebatada pelo gosto que acabava de experimentar, meus desejos eram só de começar no mesmo instante, porém, rogando Mónica, ela se me escusou dizendo que estava fatigada e que era preciso demorar um pouco. Quis satisfazê-la, mas, faltando-me o sofrimento, lancei-me sobre ela, do mesmo modo que ela se tinha posto sobre mim. Entrelacei as coxas e, esfregando-me por ela, cai num êxtase de prazer.

    – Belo, me diz Mónica, encantada do testemunho que lhe acabo de dar do prazer que sentia, estás ainda mortificada pela minha visita a estas horas?

    – Antes pelo contrário, respondi eu vivamente.

    – Confessa-me, Susana, nunca pensaste no prazer que acabámos de desfrutar?

    – Nunca, respondi eu.

    – Pois que, continua ela, é esta a primeira vez que metes o dedo em teu mimoso coninho?

    – Que quer dizer essa palavra? interrompi-a.

    – É esta greta, diz ela, em que nós temos coçado e de onde temos alcançado um prazer tão deleitoso. Ah! Susana, na tua idade eu já sabia muito mais que tu.

    – Sem dúvida, digo eu, é esta a primeira vez que tal me sucede.

    2.

    Padre Casimiro e Saturnino

    (Saturnino, Porteiro dos Frades Bentos, 1842)

    Anónimo

    – Ah! padres, exclamou ela, tendo a porra na mão, dura como um corno, vede, e lhas mostrou, deitando-lhe a cabeça sobre a mesa, isto é que é um verdadeiro caralho, os vossos não são mais do que piquinhas, vulgo, bicos de testo.

    Houve algum rumor de admiração e todos felicitaram Mariana do bom bocado que ia gramar. Então, o padre Casimiro, o honradíssimo tio, impondo silêncio, assim me disse:

    – Padre Saturnino, podeis dispor de Mariana, eu não vos embaraço, gozai com ela os mais encantadores prazeres, porém, com uma condição, a que têm cedido todos estes padres que vedes presentes e muitos outros ingratos que me têm abandonado.

    – Que será essa condição para que eu lhe resista, respondo eu, todo cheio de luxúria, é preciso dar meu sangue?

    – Não, responde ele com viveza, basta que entregues o cu.

    – Meu cu, replico eu, e para quê?

    – É para mim, e para todos os homens de gosto, o manjar mais saboroso.

    Ao caso, novo para mim, meu espanto foi extraordinário. Porém, o frade, avezado aos petiscos do cu, me contou mil casos sucedidos, não lhe escapando o mais recente e nos nossos tempos, no convento de Santo António.

    – Esse frade, me dizia ele, possuía em mais alto grau o apetite do sesso, porque não se podia satisfazer sem que também lhe fossem a ele. Era nisso que fazia consistir o seu maior prazer (parece que este sistema é muito antigo naquela religião). Um dia, porém, em que frei Barnabé, assim se chamava, arreitado em excesso, corria inutilmente os claustros, a igreja e a cerca do convento em busca de um cu sobre o qual pudesse descarregar a furiosa apojadura, o acaso, ou antes sua desgraça, lhe deparou um soldado, por nome Jacinto, que, por gosto ou interesse, cedeu a todas as suas rogativas, entrando no ajuste que Jacinto, depois de ser enrabado pelo frade, o havia também de foder pela mesma parte, ajuste que agradou a ambas as partes. Nunca frei Barnabé encontrou um cu mais saboroso do que o do soldado! Seu prazer foi de tal modo que, no momento das maiores delícias, caiu desmaiado, exclamando a Jacinto que, sem perder tempo, lhe fosse ao cu, para desse modo dilatar seus prazeres e transportar-se além dos Céus, entre êxtases de gosto. Que expressões, que religioso, que discípulo de Santo António, que homem santificado! Jacinto, que a não ser soldado deveria ter sido frade, Jacinto, que sem dúvida provinha dos mesmos pais que eu, com uma porra maior e mais rija que uma baioneta, investe ao cu do reverendíssimo e, malhando nele com mais força do que um pesado ariete sobre as portas de uma fortaleza, arromba o cu ao miserável frei Barnabé que, ferido da dor e alagado em sangue, grita por socorro, não podendo livrar-se das mãos do soldado que, tendo aberto brecha e achando-a praticável, dirigia o seu ataque com todo o vigor. Jacinto dava a sua última descarga quando entrou de chusma toda a comunidade! O espanto do guardião e mais padres foi extremo e, sem que nada pudessem dirigir com acerto, fizeram público o caso vergonhoso, reclamando justiça contra um soldado por ter ferido um frade. Porém, mandando-se-lhe que acusassem o lugar da ferida e a arma com que tinha sido feita, calaram a boca, deixando ficar aberto o cu do miserável frei Barnabé, cu que foi manchar toda a congregação, ficando-lhe o epiteto dos frades do cu rachado, e a este respeito já os rapazes cantam esta e outras muitas letras:

    Aos frades de Santo António

    Mudou o nome um soldado

    Pois os crismou com a porra

    Os frades de cu rachado.

    Esta sua narração me desanimou. Eu deixaria de consentir se me não tivessem mostrado a pica (e com efeito era de pica pequena), ou, o que é mais certo, se eu não estivesse tão arreitado e se o desejo de foder Mariana não fosse superior a todo o risco.

    Assim, eu me ofereci para a operação, lançando-me sobre Mariana e oferecendo o cu ao tio. Ao princípio, não me foi muito agradável, muito mais por estar indisposto com a lembrança do que tinha sucedido a frei Barnabé. Porém, depois de engolfado nos prazeres, esquecido de tudo o mais, só encontrava um caminho juncado de flores. Algumas vezes o deleite me suspendia no meio da minha obra, porém, o frade, reanimando meu valor, me animava a fazer o mesmo que ele me fazia. Assim, fodendo e fodido, os baques que me dava o tio iam, por uma espécie de eco, retinir no cono da sobrinha. Teimosos em nossos exercícios, havia já muito tempo que tínhamos deixado coberto de fadigas ao padre Casimiro que, surpreso da pertinácia, que tinha custado já bastante aos gladiadores, uniu seu pasmo ao da companhia, que, formada em círculo, espera com respeitoso silêncio o fim de tão violenta batalha. Eu estava raivoso por ver que Mariana me queria fazer frente, a mim, que não fodia havia mais de oito anos; a mim, que julgava ter reunido naquele momento todos os desejos e todas as forças que tivesse podido adquirir em tão dilatado tempo. Mariana, da sua parte, estava furiosa por encontrar um noviço que se lhe opusesse sem esmorecer; ela, que tinha a glória de fazer perder as estribeiras e lançar por terra ainda ao mais potente. Tinha-se concluído a quarta vez quando Mariana, fechando os olhos, tombando a cabeça e amortecendo os braços, me anunciou que esperava pela quinta, como selo à obra ou como a dama (termo de jogador da espada). Pus-me logo no reto e, investindo com ela, em breve espaço lhe fiz conhecer o meu valor e destreza, obrigando-a a confessar que se dava por vencida.

    3.

    A um Moçoilo

    (Poesias Completas, 1850)

    Junqueira Freire

    Eu que te amo tão deveras,

    A quem tu, louro moçoilo,

    Me fazes chiar e amolas,

    Qual canivete em rebolo;

    Eu que, qual anjo, te adoro,

    Então, menino, eu sou tolo?

    Quem te venera e te serve,

    Te serve de coração;

    Quem a nada mais atende,

    Senão à sua paixão;

    Quem sustém por ti a vida,

    Tolo não pode ser, não.

    Quem te olhando a áurea face,

    Lá se queda enamorado,

    Te olhando os olhos ferventes,

    Permanece endeusado;

    Esse que chame-lo tolo,

    Esse sim, vai enganado.

    Quem tanto por um só perde,

    Que a ninguém quer antepô-lo,

    Que vê-lo só quer num trono,

    Num trono só de ouro pô-lo;

    Esse que tolo xinga-o,

    Esse sim – esse é que é tolo.

    Quem já em ver seu queixinho

    Bipartido se mantém;

    Quem embebido em seu todo

    Horas, dias gasto tem;

    Quem no cárcere do corpo

    A alma por ele sustém;

    Avanço axioma certo,

    – Que esse não é tolo, não;

    Que esse ama angelicamente

    Fora da contagião;

    Que esse que tolo xinga-o,

    Esse sim – é toleirão.

    E tu me xingaste tolo,

    Meu moço, anjinho feliz!

    Só́ porque amar-te deveras

    Meu Deus, minha sina quis.

    Só́ porque certo bem maus

    Dous versos te dei que fiz.

    Meu anjo me olha e despreza

    Com mirar tão furibundo!

    Já́ não hei mais esperança

    De ter serafim jucundo,

    Que aos Céus me leve risonho,

    Quando me for deste mundo.

    Mas se tolo é admirá-lo,

    A todo o mundo antepô-lo,

    Querer lá́ vê-lo num trono,

    Num leito dourado pô-lo,

    Alfim beijá-lo e gozá-lo,

    Então, sim, quero ser tolo!

    4.

    Macário

    (Obras, 1855)

    Álvares de Azevedo

    SEGUNDO EPISÓDIO

    [...]

    PENSEROSO.

    Que tens? Estás fraco. Senta-te junto de mim. Repousa tua cabeça no meu ombro. O luar está belo e passaremos a noite conversando em nossos sonhos e nos nossos amores...

    MACÁRIO, desfalecendo.

    Tudo se escurece... Não sentes que tudo anda à roda?... Que vertigem!... Dá-me tua mão!... Sim. Enxuga minha fronte. Que suor!

    PENSEROSO.

    Como estás abatido... Como empalideces! Ah! Como resvalas... Que tens, meu amigo?

    MACÁRIO.

    Se eu pudesse morrer! (Desmaia.)

    Satan entra.

    SATAN.

    Que loucura! Esse desmaio veio a tempo; seria capaz de lançar-se à torrente. Porque amou, e uma bela mulher o embriagou no seu seio, querer morrer!

    (Carrega-o nos braços.)

    Vamos... E como é belo descorado assim! com seus cabelos castanhos em desordem, seus olhos entreabertos e munidos e seus lábios feminis! Se eu não fora Satan, eu te amaria, mancebo... (Vai levá-lo.)

    PENSEROSO.

    Quem és tu? Deixa-o... eu o levarei.

    SATAN.

    Quem eu sou? que te importa? Vou deitá-lo num leito macio. Daqui a pouco seu desmaio passará. É um efeito do ar frio da noite sobre uma cabeça infantil ardente de febre. Adeus, Penseroso.

    PENSEROSO.

    Quem és tu, desconhecido, que sabes o meu nome?

    ***

    MACÁRIO E SATAN.

    MACÁRIO.

    Tenho tédio, Satan! Aborreces-me como se aborrecem as amantes esquecidas.

    SATAN.

    Tens cartas aí? Joguemos. Que queres? a ronda, a barca, o lansquenet?

    MACÁRIO.

    Sou infeliz no jogo. Queimo-me e perco. Quando aposto e perco, tenho uns desejos de atirar com as cartas à cara do banqueiro.

    SATAN.

    Pois eu jogo, perco e gosto de jogar. É que somos como Adão e Eva, os ex ossibus, caro ex carne. A propósito de jogo, queres que te conte uma história?

    [...]

    5.

    Um Italiano que Vive da sua Prenda

    (Os Serões do Convento, 1862)

    M. L.

    (José Feliciano De Castilho)

    O Sr. Teodoro, que era negociante e ia todos os dias muito cedo para o seu escritório, costumava, para não incomodar a família, de quem era muito amante, ir almoçar a um botequim que lhe ficava no caminho; ali se encontrava regularmente com um estrangeiro, desconhecido seu, homem de magnífica presença, frisado desde manhã, rescendendo às mais delicadas perfumarias, soberbos anéis de brilhantes em quase todos os dedos, grilhão de ouro ao pescoço de que pendia um relógio de preço, e de idade os seus 25 a 30 anos. A todas estas vantagens, e mesmo à última, dava realce um rosto dos mais varonis e simpáticos; olhos de uns que nós sabemos, a que nada se recusa, e uma boca feita de propósito para muita coisa, por quem inventou – as declarações de amor, as rosas e os beijos. – A sua barba cerrada e espessa, e um não sei do quê do seu todo, anunciavam um atleta. Comia três vezes mais que o Sr. Teodoro; abrindo a bolsa para pagar, mostrava-a cheia de ouro; falava entre si e sorria misteriosamente; era indubitavelmente um homem feliz. Adivinhava-se que andava nele um grande romance, mas tão fechado, tão fechado, que o Sr. Teodoro, apesar de não ser mulher, daria muito por o descobrir. Cresceu a ponto a curiosidade que se atreveu enfim a travar com ele conversação. Ofereceu-lhe um charuto da Havana, que ele lhe aceitou com uma benévola reverência e lhe tornou a agradecer complacente depois de lhe ter chupado a primeira fumaça. O Sr. Teodoro prometeu-lhe uma caixa deles; estava travada a amizade.

    – O Senhor, pelo que vejo, não é de Lisboa.

    – De Itália; florentino.

    – Tem aqui família?

    – Nenhuma e muitíssima.

    – É artista? Chama talvez sua família às das comédias e à companhia do teatro.

    – Não é bem isso; ainda que realmente represento.

    – É casado?

    – Imensamente, inumeravelmente, excessivamente.

    – E tem filhos?

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