Que Horas Ela Volta?
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Sobre este e-book
Anna Muylaert, com seu olhar afiado (não como faca, mas como agulha) para as subjetividades que fazem rodar o mundo objetivo, percebeu – e contou – essa história. Que horas ela volta? não é apenas um ótimo filme e um ótimo roteiro. É um filme e um roteiro que retratam o tempo que pariu outros tempos. Se, no início dos anos 2000, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund, deu notícias do país que não tinha mudado, apesar da volta da democracia e das ambições da Constituição de 1988, Que horas ela volta? é o filme icônico do momento em que a tensão racial e social ocultada no Brasil por tantas falsificações ao longo das décadas foi exposta ao sol do verão em toda a sua gloriosa monstruosidade."
Eliane Brum
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Que Horas Ela Volta? - Anna Muylaert
Sumário
PREFÁCIO 2
ENTREVISTA COM ANNA MUYLAERT 2
CADERNO DE DIREÇÃO E MAKING OF 1
ROTEIRO 1
roteiro anna muylaert
organização e edição belisa figueiró e rafael sampaio
produção fábio savino
revisão e preparação ana paula gomes
projeto gráfico e diagramação marcelo sodré
entrevistadores ana paula sousa, camila márdila, julia prioli, marcelo caetano e rafael sampaio
transcrição da entrevista belisa figueiró
fotos da entrevista bella tozini
gravação da entrevista marcelo ribeiro
fotos de still aline arruda
Dados de Catalogação na Fonte (
cip
)
M993q Muylaert, Anna
Que horas ela volta? /Anna Muylaert;
organização de Belisa Figueiró e Rafael Sampaio;
diagramação de Marcelo Sodré.– São Paulo: Klaxon, 2019.
192 p. il
isbn
978-85-64290-06-8
cdd
791.430 92
cdu
791
fiaf f7
9quehoras
1. Cinema – Brasil 2. Que horas ela volta? 3. Roteiro
4. Muylaert, Anna (1964- ) I. Figueiró, Belisa II. Sampaio, Rafael III. Sodré, Marcelo IV. Título.
agradecimentos especiais a
ana lúcia borges, ana luiza beraba, ana saito, andré sturm, beatriz carvalho, caio gullane, camila márdila, dandara pagu, daniela aun, fabiano gullane, helena albergaria, karine teles, lourenço mutarelli, lucia riff, maíra bühler, marcelo caetano, michel joelsas, paula cosenza, pedrinho figueiredo, pedro tourinho, priscila santos, regina casé
2019
São Paulo
Klaxon / BrLab Edições
PREFÁCIO
A boa sinhazinha e a boa escrava – nunca mais
O maior privilégio é o de nem mesmo precisar pensar nos seus privilégios
. Esta frase, referindo-se aos brancos, foi dita durante um debate histórico sobre racismo, ocorrido em 2015, no Itaú Cultural, por um jovem negro da periferia de São Paulo que estava na plateia. Que horas ela volta? retrata o momento em que esse privilégio do privilégio foi arrancado da classe média brasileira. O momento delicado, tenso como um varal de roupas bem esticado, que acontecia dos muros para dentro das casas, ou da porta para dentro dos apartamentos. O momento que seria determinante para tudo o que aconteceria nos anos seguintes no Brasil.
Anna Muylaert, com seu olhar afiado (não como faca, mas como agulha) para as subjetividades que fazem rodar o mundo objetivo, percebeu – e contou – essa história. Que horas ela volta? não é apenas um ótimo filme e um ótimo roteiro. É um filme e um roteiro que retratam o tempo que pariu outros tempos. Se, no início dos anos 2000, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund, deu notícias do país que não tinha mudado, apesar da volta da democracia e das ambições da Constituição de 1988, Que horas ela volta? é o filme icônico do momento em que a tensão racial e social ocultada no Brasil por tantas falsificações ao longo das décadas foi exposta ao sol do verão em toda a sua gloriosa monstruosidade.
Com políticas públicas como aumento real do salário mínimo, Bolsa Família, ampliação do crédito, cotas raciais e acesso à universidade, realizadas nos governos do Partido dos Trabalhadores, os mais pobres, a maioria deles negros, tiveram um alargamento de suas possibilidades. Tão pequena e tão atrasada ascensão social e, ainda assim, tão aterradora para os mais privilegiados, a maioria deles brancos.
A parcela da sociedade brasileira que cresceu e se multiplicou no apartheid racial não oficial, mas dolorosamente real e normalizado, que determinava – e ainda determina – o cotidiano em um dos países mais desiguais do mundo, descobriu-se confrontada nos seus privilégios. Anos mais tarde, os seguidores de Jair Bolsonaro, o perverso que se elegeu presidente em 2018, acusariam o PT de inventar o racismo no Brasil
. Para eles, até então, nunca houvera briga
entre brancos e negros, entre pobres e ricos. Bastaria, claro, que os negros e os pobres continuassem no seu lugar. Esta era a paz
que defendiam. E ainda defendem.
Que horas ela volta? retrata justamente esse deslocamento dos lugares – e a tensão que esse deslocamento produziu. Anna Muylaert percebeu que os ódios estavam sendo gestados dentro. Não só dos corpos brancos e sulistas, mas das casas de classe média, a versão da Casa Grande contemporânea. Assim, este é um filme que se passa mais dentro do que fora, e onde a tensão crescente vai se revelando nos detalhes do cotidiano, como riscos na mobília. Ou como a alça quebrada da bandeja de prata da avó.
O olhar da roteirista e diretora foi ainda mais perfurante porque retrata não a patroa odiosa, aquela dos maus tratos explícitos, do preconceito tosco, a vilã feita para ser odiada – e com quem a maioria pode se agarrar ao álibi da não identificação. Anna vai no ponto ao retratar a patroa cool
, moderna, viajada, aquela que tem certeza que trata bem sua empregada doméstica, que considera a doméstica como se fosse da família
, como uma amiga que ela chama de amor
. A tensão que se desenrola dentro de uma casa de classe média alta de São Paulo é permeada de por favor
e obrigadas
. Por favor, Val, me traz um copo d’água
. Obrigada, amor
.
O deslocamento dos lugares começa pela escolha da protagonista, daquela por quem iremos nos encantar, a empregada doméstica Val, vinda do estado nordestino de Pernambuco, papel brilhantemente vivido por Regina Casé. O problema é que a maioria das pessoas que tem acesso aos cinemas, no Brasil, não tem possibilidade de se identificar com Val. A maioria das mulheres brancas, de classe média, assim como dos homens brancos, de classe média, só pode se identificar com os patrões.
A identificação é imediata já nas primeiras cenas, mas também imediatamente recusada. É penoso se reconhecer na imagem de um espelho no qual aqueles que se acreditavam limpinhos
e bacanas se horrorizam consigo mesmos. Este é o privilégio dos privilégios que o filme arranca com delicada persistência, mas que dói como esparadrapo sobre uma ferida aberta que não se sabia ter. É o privilégio dos esclarecidos
e dos progressistas
que fica exposto, assim como todas as artimanhas de uma relação em que a farsa é vivida como se toda a verdade fosse. Como então admitir que tudo aquilo que são (somos), na melhor das hipóteses, é uma boa sinhazinha, um bom sinhozinho?
O corte na paz
doméstica acontece quando a filha, aquela que Val não pôde criar porque estava criando o filho da patroa, vem de Pernambuco para São Paulo, do Nordeste para o Sudeste, fazer vestibular de arquitetura em uma das mais prestigiosas faculdades do país, a FAU, frequentada até bem pouco apenas pelos filhos dos mais ricos. Cada um dos personagens – o patrão, a patroa, o filho dos patrões – vive diferentemente seu choque com esse atravessamento da lógica do apartheid.
Mas não só eles. Val, que também normalizou a subalternidade dentro de si, é obrigada a se confrontar com sua realidade vista pelos olhos novos da filha, pela geração que ensaiava os primeiros passos na vida adulta naquele que parecia estar se tornando um Brasil diferente. Se a patroa já não podia se ver como amiga
, a Val também já não é permitido seguir acreditando na liberdade de sua escravidão. Também para ela é choque e confronto. A boa sinhazinha e a boa escrava queriam muito, mas já não podiam mais manter a paz.
Anna Muylaert conta essa história com cenas pequenas. E radicalmente violentas. A tensão sobre o jogo de xícaras de café que Val dá como presente de aniversário para a patroa, branco no preto, preto no branco, desparceirado
porque moderno
, deslocando e misturando cores que não poderiam ser misturadas; a relação entre Val e a cadela, assim como os lugares de cada um; a piscina que é esvaziada depois que a filha da empregada é jogada nela, com a desculpa inventada de que a patroa tinha visto um rato
. E, como explica seu filho, a praga poderia contaminar toda a família
. E contamina... A arquitetura da casa que se desvela para a menina nordestina que vem a São Paulo para ser arquiteta. E questiona o desenho (e a estrutura) da casa muito mais do que ela mesma percebe. Que horas ela volta? mostra que a principal marca da arquitetura brasileira não é o modernismo de Oscar Niemeyer, mas a persistência do quartinho de empregada nas plantas de casas e apartamentos.
Há homens nesse enredo. Claro que há. Mas este é um drama entre mulheres. E expõe um rasgo que parte dos feminismos não sabe como cerzir. A emancipação das mulheres de classe média no Brasil se deu, em grande parte, menos pela divisão do trabalho familiar com os homens e mais pela transferência deste trabalho doméstico para as mulheres mais pobres, a maioria delas negras. Enquanto as brancas de classe média trabalhavam fora, faziam carreira, as negras pobres abandonavam seus filhos e suas casas a cada manhã para cuidar dos filhos e das casas das patroas.
Não existe esse genérico chamado mulheres
. A realidade das brancas e das negras num país estruturalmente racista como o Brasil é diversa. Dentro de suas casas, as brancas oprimem as negras chamando-as de amor
e dizendo por favor
e obrigada
. O segredo mais bem guardado é aquele que todos sabem mas fingem não saber. Foi este o segredo escancarado na segunda década deste século 21, e tão bem apreendido, interpretado e convertido em arte por Anna Muylaert.
Outra mulher, Dilma Rousseff, pagou com o sequestro do