O pão e a pedra
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Sobre este e-book
Escrita em 2016, a peça da Companhia do Latão aborda a greve no ABC paulista sob o ângulo daqueles trabalhadores que aprendiam com o engajamento político e lutavam contra a opressão patronal e policial em meio ao embate cotidiano com a vida coisificada.
De alto valor documental, O pão e a pedra permite discutir ainda outras questões, como a desigualdade salarial entre homens e mulheres, o retorno do imaginário religioso à política brasileira, o destino do movimento trabalhista, além de escancarar a reflexão sobre o versículo que a intitula: "Quem dentre vós dará uma pedra a seu filho, se este lhe pedir pão?".
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Pré-visualização do livro
O pão e a pedra - Sérgio de Carvalho
Capa
Rosto
Apresentação
Sérgio de Carvalho
O pão e a pedra
Primeiro ato
Segundo ato
Posfácio
Mario Sergio Conti
Notas sobre o processo
A gente só aprende imitando
Maria Lívia Goes
Anexos
Ficha técnica da estreia
Partituras
Sugestões de estudo
Sobre a Companhia do Latão
Sobre o autor
Notas
Créditos
Editora
Landmarks
Cover
Title Page
Table of Contents
Foreword
Prologue
Afterword
Appendix
Rear Notes
Copyright Page
Colophon
Apresentação
Sérgio de Carvalho
O pão e a pedra se liga ao mesmo ciclo histórico abordado em Ópera dos vivos e Os que ficam. Seu universo temático, contudo, a torna uma peça única no repertório da Companhia do Latão.
Nas peças anteriores estavam em jogo as relações contraditórias entre a cultura e as práticas produtivas no âmbito do nacional-desenvolvimentismo, e algo semelhante alimentou o projeto inicial de O pão e a pedra. Pretendíamos estudar o pensamento religioso no Brasil, seu potencial de coesão social e sua adesão à tendência geral de mercantilização das formas culturais. O que se esboçava era uma tentativa de compreender o recente retorno do imaginário religioso à política, sob o signo das organizações midiáticas pentecostais. Os primeiros estudos sobre o cristianismo nas últimas décadas me levaram, entretanto, a conhecer mais de perto uma história diferente e anterior, a da atuação da igreja católica progressista no Brasil, sob influência da Teologia da Libertação. Esse movimento se deu entre os anos 1968 e 1978, em meio a um grande ciclo de politização da igreja na América Latina, que encampou a crítica da desigualdade social e a defesa radical dos pobres. A força dessa atuação foi tamanha que o papado de João Paulo II surgiu como uma reação conservadora a essa militância que sonhou reconectar a igreja católica aos aspectos comunitários e antimercantis do cristianismo primitivo.
No fim de 2015, quando ainda hesitava sobre os caminhos dramatúrgicos a serem tomados, fiz uma viagem ao interior do Ceará, onde visitei alguns assentamentos rurais, com os quais colaboro ocasionalmente. Num deles, conheci pessoas que me relataram o quanto deviam sua formação política às antigas Pastorais da Terra: escutei canções daquele tempo, relatos sobre as caminhadas e as grandes procissões, histórias dos almoços de multidões. Comecei ali a tomar notas para uma possível peça sobre religiosidade popular e organização política, que dialogaria com Sociedade mortuária, primeiro ato de Ópera dos vivos.
A procura de compreensão daquele momento histórico pouco conhecido, em que os religiosos realizaram uma resistência ativa à ditadura civil-militar, me aproximou, entretanto, de outras questões. A mais importante foi a da relação entre esse clero progressista e o chamado novo sindicalismo
, que se desenvolveu e ganhou projeção nacional com as grandes greves do ABC nos anos de 1978, 1979 e 1980. Essa junção entre a igreja e o movimento de trabalhadores, tensionada pela pressão de setores intelectualizados e o movimento estudantil de esquerda, se tornaria emblemática na luta pela democratização e mudaria as coordenadas da política de esquerda no país.
Decidi, assim, direcionar o rumo da pesquisa da peça para o período das greves. Desde que Lula se tornara presidente, anos antes, discutíamos no Latão a importância de se representar as ambivalências do sindicalismo no Brasil. Na minha primeira aproximação à bibliografia do novo tema, procurei entender as questões que diziam respeito ao momento atual. As greves constituem uma espécie de pré-história dos encontros que formaram o Partido dos Trabalhadores. Vivíamos, então, o momento mais crítico dessa trajetória. Começava a ruir o ciclo de governos populares iniciado na presidência de Lula, em parte por razões internas ligadas ao projeto de conciliação de classes, e muito pela intolerância extrema de nossa elite financeira diante da possibilidade de diminuir seu lucro num momento de crise.
Percebi, assim, que a experiência da greve de 1979 poderia refletir muitas inquietações atuais, desde que retratada do ângulo dos trabalhadores. Em 1978, ano da primeira grande paralisação de máquinas no ABC, a greve surgiu de modo mais autônomo, quando os ferramenteiros da Scania tomaram a frente das reivindicações, e os sindicatos vieram em seguida para organizar o movimento grevista. Já em 1980, a grandeza (e a beleza) do movimento teve relação com o aprendizado das lideranças sindicais sobre os erros e os impasses do ano anterior. O efeito político dessa greve mudou a história do país. A greve de 1979, de acordo com as minhas leituras, era a pedra no meio do caminho: o momento em que operariado e sindicatos construíram seus acordos, mas também seus desacordos, amparados pela igreja progressista que participava dos enfrentamentos com a polícia. Quando fomos para a sala de ensaios, eu pude contar com uma incrível equipe de pesquisa que localizou novos materiais, promoveu encontros e palestras, viabilizou experimentos e deixou essa visão mais complexa. Eu escrevia em diálogo com os ensaios, fazendo uso dos improvisos de atrizes, atores e músicos. Para todos nós, fortalecia-se uma perspectiva da história: a das dificuldades do aprendizado político daqueles trabalhadores que enfrentaram a ditadura e o aparato midiático patronal, num processo que durou sessenta dias. Foram quinze dias de máquinas paradas e 45 dias de trégua
com mobilização dentro e fora das fábricas. Ao fim das contas, esta seria uma peça sobre aprendizado, o deles e o nosso. E, a certa altura, se tornou também uma peça sobre metamorfoses: entravam
na sala de ensaio conosco, além dos trabalhadores, sindicalistas e religiosos, além da operária que se transmuda em operário, os militantes do movimento estudantil, jovens que, no passado, se integraram à produção para politizar o movimento. De certo modo, Luísa, a estudante que se disfarça de operária, traduzia o nosso ponto de vista: o dos artistas que se aproximam de um mundo diferente não para representá-lo, mas para compreendê-lo e, assim, se modificar. A dramaturgia passou a organizar sequências de metamorfoses: disfarces instauram mudanças. A peça se move no trabalho de tornar-se outro, para o bem ou para o mal. Eu estava atento ao fato de que a consciência política de certos personagens, seus ideais, teriam que ser instáveis também. As ideias também estavam em mutação devido à prática coletiva. O aprendizado da luta contra a vida coisificada (comum a todos os personagens) refletia a necessidade de sair de si, na direção de uma espécie nova de consciência social, fundada no exame das diferenças, algo que raramente encontra lugar nas organizações políticas convencionais.
Ao caminhar nesse sentido, O pão e a pedra se tornou também, no nível de sua disposição formal, uma peça feita de temporalidades que interagem. Ecoava-me na memória a frase de uma entrevista de Rancière, em que ele, ao comentar a vida de operários, dizia que a realidade fundamental do trabalho proletário é o tempo roubado
, a vida saqueada, texto que desenvolvi mais tarde como se fosse uma reflexão da nossa estudante. A forma, tão livre e híbrida, dessa dramaturgia produzida coletivamente acolhia, assim, um embate de sentimentos do tempo. Os quinze dias de mobilização grevista, que compõem o primeiro ato da peça, surgem em cena através de diálogos, coros e narrativas que acolhem tensões coletivas. Sua tendência à teatralidade épica é, entretanto, pontuada pela paralisia do relógio fabril, que alude aos contratempos dramáticos das conversas nos banheiros e à distensão livre e afetiva dos gestos no baile e na igreja, onde a política acontece de outro modo. O segundo ato, por sua vez, inverte essa relação e mostra, por meio de cenas aparentemente mais íntimas (as conversas nas casas, no quintal, o sexo no automóvel, o parque de diversões) toda a pressão temporal imposta pelo mundo do trabalho abstrato. E a contradição maior se expõe no grande debate final que reúne mulheres e homens no banheiro da fábrica. Há unidade contraditória entre cada ato, e cada um, em si, contém tempos
contraditórios. Da mesma maneira, cada personagem é portador de motivações ligadas a instantes diversos de sua história, como se escuta no cancioneiro tradicional que acompanha as esperanças de Joana Paixão por um futuro melhor.
Muito do sentimento verdadeiro que existe em O pão e a pedra corresponde à vida dos artistas que participaram da criação do espetáculo. Há na peça a memória de minha própria infância nos anos 1970 (quando aprendi a pisar no coração da telha
ou visitava minha mãe em seu trabalho, no orfanato de São Judas). E há muito também da vida dos atores. Nossos ensaios ocorreram nas mesmas semanas de 2016 em que as forças mais regressivas da política brasileira se juntaram para depor um governo eleito por voto popular, em nome de razões juridicamente insustentáveis, com apoio maciço da grande imprensa, e mobilização de enormes recursos financeiros de propaganda levantados por organizações patronais. Nossa pré-estreia aconteceu em 12 de maio, dia da votação do afastamento de Dilma Roussef no Senado. No mesmo 12 de maio, por coincidência, em 1979, o sindicato dos metalúrgicos fez o acordo que pôs fim à segunda grande greve do ABC, referendado no dia seguinte pela assembleia. Nos meses seguintes, o golpe se aprofundou ao se encaminhar para o desfecho clássico: a conta da crise do