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Duas Vidas: Os dois lados do véu
Duas Vidas: Os dois lados do véu
Duas Vidas: Os dois lados do véu
E-book480 páginas6 horas

Duas Vidas: Os dois lados do véu

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Sobre este e-book

Volume 2 da Série Duas Vidas


Duas Vidas: Encontro, que foi sucesso de vendas em 2016, deixou muitos leitores apaixonados preocupados com o destino de sua protagonista Isabel.



Duas Vidas: Os dois lados do véu veio para contar o que aconteceu com ela.



Dez anos depois de sair de sua cidade, Isabel reaparece com marido e duas filhas. Um lugar novo, uma vida nova, um casamento feliz... tudo isso deveria lhe bastar. Basta à maioria das mulheres. Mas, de repente, Isabel vê sua vida perfeita desmoronar ao mesmo tempo em que as lembranças de sua vida anterior voltam com tudo o que têm e com a promessa de enlouquecê-la de tanta saudade.



Duas Vidas: Os dois lados do véu marca uma reviravolta na história e dá início a uma série que promete ser diferente, apaixonante e surpreendente.
IdiomaPortuguês
EditoraXinXii
Data de lançamento21 de out. de 2021
ISBN9783969318867
Duas Vidas: Os dois lados do véu

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    Duas Vidas - B. Pellizzer

    Nota da Autora

    Poucas coisas me deixaram tão realizada como escritora quanto o sucesso de Duas Vidas: Encontro. Não tenho certeza em que momento decidi transformá-lo em série, mas desejo, de todo o coração, que Isabel e Rogério continuem habitando o coração e o imaginário de quem lê.

    Duas Vidas: Os dois lados do véu marca a transição das personagens e dá início à série. Vocês encontrarão uma Isabel diferente, mais velha, madura, às vezes menos bem-humorada, mas ainda Isabel.

    Torço para que aproveitem a leitura e mergulhem nesse universo inventado com o coração e alma.

    B. Pellizzer

    Anatomia de um violão

    O que é o amor?

    O que é o amor? Tenho certeza de que cada um dos leitores tem uma teoria, uma explicação, ou alguma ideia roubada e decorada depois de extraída de uma daquelas imagens floridas das redes sociais. Frases que soam bonitas, mas que, no fundo, nada dizem.

    Eu não tenho a pretensão de afirmar que sei o que é o amor, ou o que acontece com ele quando penetra o coração. Isabel e Rogério costumavam dizer que o amor é uma decisão.

    Mas, sendo o amor uma decisão, por que é tão complicado lidar com ele?

    Se o amor é uma decisão, como afirmam as personagens da minha narrativa, por que não conseguimos simplesmente arrancar algumas pessoas de dentro de nosso interior e sufocá-las como se fossem gritos depois de um pesadelo, abafá-las pelo travesseiro, esquecê-las durante a continuação do sono?

    Isabel bem que tentou. Por dez anos tentou sufocar os gritos aflitos de seu amor perdido, até que, não podendo mais, deixou-se levar e voltou a amar. Amou profundamente a memória de seu falecido marido. Amou de formas impossíveis de serem descritas cada lembrança revivida, recapturada, e desejou ser capaz de armazenar cada minuto vivido ao lado de Rogério em seu cérebro, para não perdê-lo mais. Amando foi de um amor crescente que culminou com o, vamos — neste momento — chamar de fantasma do marido, no meio da sala da casa onde vivia com Leandro.

    Mas estou me precipitando. Vamos falar desse amor e de sua aparição, mais adiante. Antes, quero contar como foi a vida de Isabel depois do enterro de Rogério, e explicar a você, leitor, como ela acabou casada com Leandro.

    ***

    Quando, em 2004, Isabel foi conduzida pelos eventos até o caixão aberto de seu marido Rogério e sufocou sua dor diante da morte de uma parte tão importante de si mesma, ela tinha vinte e seis anos de idade. Com vinte e seis anos de idade, uma pessoa já é considerada adulta e, portanto, apta a suportar a maior parte das adversidades da vida. Isabel, particularmente, já tinha vivido mais do que muitas mulheres vivem em sessenta anos, porque nunca teve medo de experimentar. Entretanto, ainda que que ela tivesse efetivamente vivido tais sessenta anos, não estaria preparada para perder Rogério.

    Em todo o caminho — desde que saiu da casa que costumava dividir com o marido, até chegar à casa de seus sogros onde seria realizado o velório, na cidade natal de Rogério —, ela só tinha um pensamento: É um engano. Aquele pensamento não precisou do corpo de Rogério para ser banido da mente de nossa heroína. Isabel não precisou ver o marido morto para acreditar em sua morte. Isabel enxergou o passamento de Rogério através dos olhos de Raquel.

    Mergulhou na dor que viu nos olhos da sogra, e soube de duas coisas: se algum dia ela tivesse um filho, daria a própria vida para não ser obrigada a sentir aquele tipo de dor; e, ela não tinha o direito de sofrer diante de sua sogra e de seu sogro.

    Quando Isabel viu o olhar de dor de Raquel, decidiu ser o seu próprio sofrimento menor, e não se sentiu merecedora de ficar de luto. Achou que não devia atrapalhar Raquel com a própria dor, já que estava claro que a mãe sofria muito mais do que a esposa. A dor da sogra a obrigou a permanecer inteira e a remendou por fora, para que os pedaços que sangravam dentro dela não caíssem e se esparramassem pelo chão. Assim, fingindo-se reconstruída, Isabel cuidou da mulher que tinha gerado sua outra metade e não se deu o direito de prantear o marido.

    Isabel aguentou firme durante todo o enterro. Qualquer um que a visse não diria o quanto estava destruída. Qualquer um, exceto seus melhores amigos. Da mesma forma que Isabel segurou sua dor pela morte do marido para poder cuidar da dor de sua sogra, Franklin e Cláudia represaram a onda de dor que sentiram por perder um grande amigo, para proteger uma outra grande amiga.

    — Clau, eu vou ficar com a Isa esta noite, ela não vai segurar essa barra sozinha. Tudo bem para ti? — perguntou Franklin, para Cláudia.

    — Sim. Na verdade, eu ia te pedir que fizesse isso. Precisamos cuidar dela.

    — Eu não sei como ela está aguentando. Não a vi derrubar sequer uma lágrima desde que chegamos.

    — Ela tá cuidando da dona Raquel. Assim que viu a mãe do Rogério, ela se fechou. Se segurou. Isso vai fazer mal pra Isa.

    — Então, por que tu não conversas com ela?

    — É inútil. Você a conhece, Frank. Ela não gosta de demonstrar emoções... Ela vai aguentar essa barra o quanto precisar, para não aumentar o sofrimento da dona Raquel ou do seu Ricardo.

    — Quando sair daqui, ela vai querer correr.

    — Eu trouxe um par de tênis para ela. Está no carro.

    O casal se abraçou e dividiu a dor, enquanto observava a amiga cuidar de seus sogros.

    Rodrigo também conteve seu luto e segurou a dor de perder um irmão para cuidar da dor de um amor.

    Rodrigo não percebeu de imediato, mas quando recebeu a notícia da morte do irmão, não foi no irmão que pensou, não foi em seus pais. A primeira coisa que chegou à mente de Rodrigo com a notícia daquela morte foi Isabel. Foi por ela que, imediatamente, deixou seu turno no trabalho e se encaminhou para a casa da cunhada. Quando a viu, quando percebeu o olhar vazio de Isabel, entendeu o que era a morte em si. Isabel tinha morrido com Rogério, e Rodrigo pensou que daria a própria vida, que morreria no lugar do irmão, porque daria qualquer, qualquer coisa para que Isabel não sofresse daquela forma.

    Rodrigo não percebeu durante todo o velório, nem durante o enterro, mas ele estava sofrendo mais por Isabel do que pela perda de seu irmão.

    Rodrigo não percebeu enquanto recebia os pêsames dos parentes e conhecidos, que ele não tinha olhos para ninguém que tentasse consolá-lo durante aquela cerimônia. Ele mal ouvia o que diziam. Ligou a boca no piloto automático e agradeceu a presença de todos, mas seus ouvidos estavam afinados com a boca de Isabel, e seus olhos estavam calibrados para olhar somente para ela. Queria estar a postos para quando ela precisasse. Queria ser o apoio para quando ela desmoronasse.

    Quando o velório terminou, o cortejo seguiu para o cemitério. Depois que corpo de Rogério foi devolvido ao pó, e a família voltou para casa acompanhada apenas dos amigos mais íntimos, Rodrigo se permitiu um momento a sós com Isabel, e a abraçou.

    — Você deve querer correr. Vem, eu trouxe um par de tênis para você — convidou.

    — Não, Rodrigo. Obrigada, mas não estou com disposição para correr.

    Rodrigo pensou que a situação era muito mais séria do que parecia, mas não insistiu.

    A namorada de Rodrigo, Beatriz, que tinha passado o velório e o enterro inteiros sentindo-se excluída, achou que já era hora de mostrar a que tinha ido e chamou a atenção do namorado:

    — Rodrigo, eu tô aqui.

    — Quer que eu te leve para casa, Bia?

    — Não. Eu quero que você se lembre que eu sou a sua namorada, não a Isabel.

    — Bia, ela tá sofrendo.

    — Seus pais também estão sofrendo, mas eu não vejo você cheirando o cabelo de nenhum deles.

    Depois de dois anos namorando Isabel, Rodrigo não sabia o que fazer diante de demonstrações de ciúme. O ano e meio de namoro com Beatriz não havia sido capaz de ensiná-lo. Preferiu a discrição:

    — Falamos sobre isso depois, Bia. Agora eu tenho que...

    — Eu sei. Tem que cuidar da preciosa Isabel. Pra mim, ela parece muito bem. Nem chorou durante o enterro!

    — Ela está se segurando para não fazer a mãe sofrer mais.

    — Foi isso o que ela te disse?

    — Não. Foi isso o que eu aprendi com ela: cuidar de quem se ama. Ela está cuidando da minha mãe.

    Beatriz segurou a tréplica. Ela sempre carregou a certeza de que Rodrigo ainda era apaixonado por Isabel, mas sabia que enquanto Rogério estivesse com a moça, ele não se atreveria a tentar nada. Naquele momento, Beatriz já não tinha mais a mesma certeza, e precisava ter cuidado. Isabel parecia ser uma espécie de mulher perfeita, e Beatriz teria que ser muito inteligente para fazer a máscara de perfeitinha cair diante de Rodrigo. Precipitar-se e bancar a ciumenta, de nada adiantaria.

    — Tudo bem. Me desculpa, Rodrigo. Eu só estou pedindo que você se preocupe um pouquinho comigo também. As pessoas estão olhando, estão comentando.

    — Eu tenho coisas mais importantes para me preocupar do que a fofoca, Bia.

    — É! Só que, daqui a uns três dias, isso tudo vai passar. O Rogério morreu, não vai voltar, mas eu vou ter que aguentar os vizinhos falando que você estava se agarrando com a viúva durante o velório. Pensa um pouco em mim! Se você me ama, e se aprendeu que deve cuidar daqueles a quem ama, por que não está preocupado em cuidar um pouco de mim?

    — Você está sendo egoísta, Beatriz.

    — Eu estou sendo egoísta? E a sua preciosa Isabel atraindo toda a atenção está sendo o quê?

    — Se você se abrisse para a pessoa que Isabel é, saberia que para atrair atenção ela só precisa aparecer.

    — Escolhe, Rodrigo!

    — Está na hora de você ir embora, Bia. Se você quiser, nos vemos amanhã, ou depois.

    E foi assim que Beatriz derramou sua primeira lágrima durante o cerimonial, enquanto Rodrigo assumia o lugar que, decidiu, nunca deveria ter deixado: o lado de Isabel.

    ***

    Leandro tomou ciência da morte de Rogério pelas fofocas nos corredores do hospital.

    De plantão, o dia de Leandro começou como muitos outros: acordou feliz porque sabia que veria Isabel. Ela estava casada havia mais de um ano e, o médico sabia, feliz, mesmo assim, incapaz de mandar em seu próprio coração, Leandro continuou amando Isabel.

    Guardou o amor para si e nunca mais tornou a assediar a moça.

    Tinha outros planos e, de alguma forma, sabia que um dia a teria consigo então, enquanto aquele dia não chegava, bastava vê-la feliz.

    Leandro não percebeu na hora, mas quando soube da morte de Rogério, não pensou que Isabel estaria livre assim que seu luto cessasse.

    Leandro não percebeu na hora, mas quando soube da morte de Rogério, ficou triste, muito triste, porque sabia que a alegria de Isabel era diretamente proporcional à felicidade que ela sentia por estar realizada.

    Leandro não percebeu na hora, mas quando saiu correndo do hospital, sua única intenção era cuidar de Isabel. Seu único intento era dar o melhor de si para que a dona de todos os seus pensamentos, desde que ele saía da cama até que ele voltava para a mesma cama vazia todos os dias, melhorasse.

    Ele não se importou quando ouviu Samara, a enfermeira com quem estava saindo, chamá-lo de patético por deixar tudo de lado e correr atrás de Isabel. Não havia vergonha, receio ou embaraço em Leandro. Quando saiu em busca de Isabel, carregava apenas seu amor desmedido e seu sentimento de culpa reprimido.

    Foi só quando chegou ao velório de Rogério e abraçou o corpo gelado de Isabel que Leandro percebeu. Percebeu o quanto amava aquela mulher. Percebeu que daria a própria vida para tirar do peito dela aquela dor. Percebeu que se estivesse em suas mãos devolver a vida ao marido dela, ele o faria, só para não ser obrigado a vê-la naquele estado. Mas era tarde demais, ele não poderia fazer aquilo, não poderia desfazer o feito, não estava em suas mãos devolver a vida a Rogério.

    Leandro não se apercebeu dos cabelos perfumados dela, Leandro não registrou o fato de ser a primeira vez que tinha o corpo de Isabel colado ao dele. Tudo o que Leandro viu, tudo o que Leandro sentiu, foi a tristeza da mulher que amava e, naquele instante, prometeu a si mesmo que a faria voltar a sorrir.

    Pagaria qualquer preço por aquilo.

    Ofereceria qualquer sacrifício a Deus por aquilo.

    Isabel se soltou de seu abraço delicadamente.

    Ela estava feliz por não ouvir do médico os pêsames ou aqueles discursos decorados que havia sido obrigada a ouvir durante a noite e o dia inteiros.

    Todos repetiam as mesmas frases, como se palavras fossem confortá-la de alguma forma. Leandro chegou e a abraçou. Simplesmente. Para Isabel, aquilo foi bom.

    De fato, durante todo o tempo em que ficou ali, Leandro não emitiu uma palavra sequer, mas onde quer que Isabel fosse, lá estava ele com um guardanapo, um copo de água, um prato com comida, um braço estendido para ampará-la, duas mãos a postos para empurrar uma cadeira quando ela fosse se sentar.

    Durante toda a noite, Isabel velou o corpo de Rogério, enquanto Leandro velava a alma de Isabel.

    A certa altura, Rodrigo ficou incomodado com a presença do antigo rival e o questionou:

    — Veio fazer o quê aqui, Leandro?

    — Cuidar da Isabel.

    — Podia esperar o corpo do meu irmão esfriar.

    Leandro olhou para Rodrigo. Não tentou se defender. Respondeu a insinuação com outra:

    — Costumamos julgar aos outros por nós mesmos, mas aqui você não vai encontrar espelho. Lamento.

    Foi só então que Rodrigo percebeu.

    Percebeu que, quando soube da morte do irmão, seu primeiro pensamento depois do choque foi: Isabel vai ficar livre.

    Percebeu que já não se importava tanto com Beatriz e que estava pensando que era só uma questão de tempo para ter Isabel de volta.

    Rodrigo percebeu que, havia muito, vinha pensando que tinha feito uma grande burrada quando deixou Isabel para Rogério, uma burrada que, naquele instante, o Universo estava lhe dando a chance de consertar.

    Rodrigo odiou a si mesmo por ter tido aqueles pensamentos, e odiou ainda mais a Leandro por tê-los despertado de seu inconsciente.

    Em sua ojeriza por si mesmo e por seus pensamentos impuros, Rodrigo não se enfureceu consigo, mas com mensageiro.

    — Quero que você saia, Leandro. Não tem nada aqui pra você. Respeite este momento da minha família.

    Leandro lançou um último olhar para Isabel e saiu sem discutir. Procurou por um hotel na pequena cidade. Ele não estava cansado, e cem quilômetros não era uma distância tão longa, poderia dirigir até em casa. Mas ele também pensou que, se Isabel precisasse dele, deveria estar perto.

    ***

    Caio foi uma das primeiras pessoas a receber a notícia da morte de Rogério, e sofreu como não pensava ser possível sofrer.

    Como policial, Caio já havia visto muitas mortes na estrada e estava preparado psicologicamente para ver um amigo ser morto em serviço, ao tomar um tiro, por exemplo. Ter aqueles dois tipos de morte em uma só, principalmente em se tratando de um amigo tão próximo, fez o rapaz questionar toda a sua preparação. Escondeu-se no banheiro para chorar a perda do amigo antes de ser capaz de ligar para Isabel dando a ela a notícia.

    Caio sabia que o correto seria ir até a casa dela, informá-la pessoalmente, mas estava envolvido demais para conseguir fazer aquilo. Ele não conseguiria dirigir até lá, parar na frente da casa de seu grande amigo, um amigo que tinha ficado ainda mais amigo no último ano, e olhar nos olhos de outra grande amiga para avisar que parte da vida dela tinha ficado na rodovia.

    Tantos corpos ele já tinha visto quebrados na estrada...

    Tantos companheiros ele já tinha visto sangrando no trecho...

    Caio carregava, dentro de si, o medo de ter ficado insensível ao sofrimento humano. Ele já não percebia aqueles corpos como pessoas com famílias e sentimentos. Ele percebia os números, as estatísticas, as escolhas erradas, a falha na tomada de decisão.

    Chorar escondido no banheiro ao receber a notícia de mais um corpo estraçalhado na estrada foi doloroso e libertador ao mesmo tempo. Dentro de Caio, dois sentimentos se fundiram: a dor e o alívio. A dor de perder uma parte importante de sua vida, e o alívio de saber que ainda era humano o suficiente para sofrer.

    Diante do caixão de Rogério, segurando uma das mãos de Isabel, perguntou-se como seria sua vida dali para frente. Os momentos que passava com o casal eram parte importante de sua rotina, e queria mesmo saber se poderia manter aquilo com Isabel sem arrebentá-la por dentro. Perguntou-se se seria capaz de continuar correndo com ela, quase todas as manhãs, sem a sombra da dor persistente que a ausência de Rogério traria. Tentou descobrir qual vazio seria mais suportável: o vazio de manter a rotina sem Rogério ou o vazio de abrir mão daquela companhia diária.

    Como se faz para continuar vivendo a vida normalmente, se nada é mais como antes?

    Antes de deixar a casa de Isabel, Caio passou a mão em um par de tênis. Queria dar aquele alívio para a amiga.

    — Isa, eu sei o quanto dói em mim o que aconteceu com o Figalho, e nem imagino o quanto possa estar doendo dentro de você, mas eu estou aqui para o que você precisar. Sempre.

    — Obrigada, Caio.

    — Eu trouxe um tênis pra você. Quando isso acabar, a gente pode correr juntos, pra exorcizar. Que tal?

    — Pode ser. Falamos sobre isso depois.

    — Ok.

    ***

    Entregue aos seus próprios pensamentos, Isabel não percebeu a preocupação de Franklin e Cláudia, ou o confronto entre Leandro e Rodrigo, menos ainda a discussão de Beatriz com Rodrigo. Entregue aos seus próprios pensamentos, tudo o que Isabel percebia era sua própria respiração, cuidadosamente controlada.

    Isabel cuidou de sua respiração como quem cuida de um bem precioso. Ela precisava manter a calma, caso contrário explodiria.

    Quando chegou à casa dos pais de Rogério, pensava que nada seria mais difícil do que ver os olhos de sua sogra, até que o corpo do marido chegou.

    Assim que avistou o corpo sem vida de Rogério, Isabel sentiu um oco no centro do peito. Um oco causado pela mão de Deus que, intrometida, enfiou-se em suas entranhas e remexeu tudo lá dentro até encontrar os pulmões e arrancá-los fora. Ela não conseguia respirar.

    Porque a causa da morte havia sido um acidente de carro, ela havia se preparado para várias coisas, inclusive um caixão fechado, e carregou consigo várias fotos do marido para deixar expostas durante o velório, mas quando o corpo chegou, foi ainda pior do que ela tinha imaginado.

    O rosto de Rogério estava perfeito. Intocado. Quase se podia ter a certeza de que, se ela sacudisse um de seus ombros, ele acordaria. Vê-lo daquela forma, doeu em Isabel de maneiras inimagináveis, e ela precisou se conter para não pular sobre o corpo do marido e berrar para que ele se levantasse e provasse que estava vivo, que tudo aquilo não passava de uma piada de mau-gosto, que tudo ficaria bem.

    Sozinha com o corpo de seu marido, antes de a casa ser aberta para o velório, Isabel colocou suas mãos sobre as mãos de Rogério. As mãos de que ela gostava tanto. A funerária havia tido o cuidado de lhe entregar a aliança, e Isabel decidiu que o lugar daquela aliança era o que tinha tido sempre. Com alguma dificuldade, encaixou o anel de ouro no dedo anelar da mão esquerda de Rogério.

    Percebeu a rigidez.

    Percebeu a palidez.

    Percebeu o tom arroxeado nas pontas dos dedos.

    Entendeu que nunca mais aquelas mãos segurariam seu rosto como se estivessem protegendo a uma joia preciosa; deu-se conta de que nunca mais ela poderia sentir a testa de Rogério colada à sua; entendeu que aquelas mãos nunca mais a segurariam pela cintura e que aqueles braços não mais a conduziriam durante a dança; percebeu que nunca mais observaria o ritual metódico e irritante que o marido tinha de colocar o cadarço no tênis; percebeu que nunca mais Rogério apontaria o dedo indicador para o nariz dela quando os dois discutissem.

    Ao realizar essas coisas em sua mente, o ar, pela segunda vez, começou a escapar dos pulmões já reduzidos de Isabel; os soluços sacudiram suas costas, e as lágrimas caíram em cachoeiras de seus olhos e criaram pequenas poças salgadas sobre as mãos imóveis de Rogério.

    Como se explica do desespero?

    Que imagem eu posso descrever para tentar explicar o tamanho da dor que Isabel sentia naquele instante?

    Ela não praguejou contra Deus, ela não considerou que talvez não merecesse aquilo, ela não se perguntou por quê; ela não analisou sua vida pregressa para tentar descobrir o que ela poderia ter feito de tão ruim que a fizesse merecer um castigo tão grande.

    Não.

    Isabel só sentiu o aprisionamento do desespero e da impotência. Isabel só mirou seu futuro sem metade de si mesma, sem a sua melhor parte.

    Isabel previu a continuação de sua vida a partir daquele momento e enxergou nada além do vazio e da solidão. Coisas que antes nunca a tinham assustado, mas que, naquele instante, olhando as mãos de Rogério molhadas por suas lágrimas, achou que não suportaria.

    Não suportaria acordar na manhã seguinte e não sentir o calor do marido ao seu lado, na cama.

    Não suportaria ir trabalhar na semana seguinte e saber que ele não estaria em casa esperando quando ela voltasse.

    Não suportaria se ajoelhar ao lado da cama para fazer suas orações sem ter a mão de Rogério para segurar, sem escutar o seu Em nome de Jesus ao final de cada prece feita de coração ao Senhor.

    Se aquilo era uma prova de fé, Isabel decidiu naquele instante que seria reprovada.

    Não acreditava em mais nada.

    Não esperava, da vida, mais nada.

    Não havia mais nada dentro dela, além de água, para ser tirado.

    Quando ouviu os sons da conversa entre seus sogros do lado de fora da porta, represou as águas pela última vez naquele dia, usou uma pequena toalha para limpar as mãos de Rogério e secar seus próprios olhos. Ajeitou, uma última vez, os cabelos do marido, e afastou-se dos sogros para se recompor no banheiro e estar lúcida para cuidar de sua sogra e atender às pessoas que logo chegariam.

    Em frente ao pequeno espelho do banheiro, Isabel usou seu lado mais forte e pensou com lógica:

    "O que está feito, não pode ser desfeito, então, o que está em minhas mãos mudar?"

    Respirou fundo. Montou-se de uma coragem que ela não sentia, abriu a bolsa e tirou seu pó facial, um batom claro e rímel. Tornou-se apresentável e não temeu. Sabia que seria capaz de não borrar a maquiagem.

    Sabia que daria o que fosse necessário para tornar aquele momento menos doloroso para os pais de seu marido.

    Sabia que não seria um fardo a mais nem um motivo para aumentar a tristeza e a preocupação de Ricardo e Raquel.

    Composta, respirou fundo mais uma vez, acostumou-se com o novo e reduzido tamanho de seus pulmões, abriu a porta do banheiro e saiu.

    ***

    Quando saiu, Isabel encontrou um personagem novo em seu pesadelo. Era uma mulher em torno de seus trinta anos, de cabelos negros, olhos grandes e sobrancelhas grossas. Não foi necessário que alguém lhe dissesse que se tratava de Rita, a irmã de Rogério e Rodrigo.

    Os que acompanharam a primeira parte desta narrativa devem se lembrar das vezes em que Rita foi mencionada. Era no quarto de Rita que Rodrigo e Isabel se abrigavam para se esconder de Rogério enquanto namoravam.

    Rita era a mais velha dos três filhos de Ricardo e Raquel. Isabel não a tinha conhecido durante os anos em que se relacionou com a Família Figalho, porque Rita era uma missionária. O trabalho de Rita consistia em viajar pelo mundo, pregando o Evangelho de Jesus Cristo.

    Rita não esteve no casamento de Rogério e Isabel, nem apareceu quando Rodrigo ficou em coma ao se acidentar no trabalho.

    Rita nunca falou com Isabel, ou escreveu uma carta para os irmãos enquanto esteve fora. Depois de um tempo, Isabel aceitou aquilo como normal e não mais se preocupou com a cunhada desconhecida: Rogério e Rodrigo tinham muito orgulho do trabalho abnegado que a irmã fazia em favor daqueles que não conheciam a Palavra.

    Isabel se irritou com Rita assim que a viu.

    Ela carregava no rosto a calma dos santos. A serenidade daqueles que sabem que a vontade de Deus é Soberana e que nada acontece abaixo do céu, que não seja com a permissão Dele. Rita conseguia ver um Propósito na morte de Rogério, e aquilo ofendia Isabel.

    A serenidade nos olhos de sua cunhada, que podia acalmar os corações de seus sogros, atingiu Isabel como centenas de facadas, e ela respirou fundo.

    — Você deve ser a Isabel — disse Rita em uma voz baixa, controlada e firme. — Eu sou Rita. É um prazer, finalmente, te conhecer.

    Isabel mirou o sorriso sereno da cunhada. Aquele sorriso carregava a paz dos justos. Isabel queria que os justos se fodessem todos. Sentiu ganas de pular no pescoço da cunhada e apertar até que toda a sua raiva se dissipasse, mas tudo o que Isabel fez foi sorrir de volta, abaixar a cabeça e abrir as portas.

    O pesadelo de Isabel durou gerações em sua mente.

    Quando finalmente acabou, olhou ao redor e não viu Leandro, recusou a oferta de Rodrigo para sair e correr, e se recolheu a um canto da sala com a única coisa que restava de si mesma: um peito vazio, até que sentiu a presença de Rita, irritantemente calma, ao seu lado.

    — Quer orar comigo, Isabel? — perguntou ela.

    — Não.

    — Tudo bem, eu oro com você.

    Rita segurou as mãos de Isabel, que lançou um olhar para Franklin. O amigo reconheceu o pedido de socorro, aproximou-se da dupla e ergueu a amiga para um abraço.

    — Como estás, feia? Que pergunta idiota! Me desculpa. Eu sei que tu estás destruída, mas estou aqui por ti. Para o que tu precisares. Sempre. A Cláudia trouxe um tênis pra ti, mas tu deves comer alguma coisa antes de sair correndo.

    — Não estou com fome, Frank. Obrigada.

    — Não vou te deixar correr de estômago vazio.

    — Eu não preciso correr.

    Franklin soltou Isabel do abraço e olhou em seus olhos. Temeu pela amiga.

    ***

    Havia olhos demais sobre Isabel naquela noite.

    E, naquela noite, a noite do dia em que tinha enterrado seu marido, aqueles olhos a sufocavam.

    Ela precisava sair daquele lugar, mas não conseguia dar dois passos sem que o cuidado protetor dos amigos a cercasse. Já tinha escurecido quando ela conseguiu se esgueirar por uma porta secundária e sair para o quintal.

    Inspirou o ar da noite procurando por alívio.

    O alívio não veio, então Isabel começou a caminhar.

    Ela não correu, caminhou.

    Um pé à frente do outro, começou a trilhar o caminho que a levaria para casa. Teria mais de cem quilômetros para pensar no rumo de sua vida.

    ***

    O que é o amor?

    Ninguém o sabe, porque é necessário senti-lo, mas as manifestações dele, as vemos por toda a parte.

    Pode ser o amor cristão manifestado pela serenidade de uma mulher que perdeu o irmão mais novo a quem não via havia muitos anos, e que disfarça a dor com um sorriso calculadamente calmo, como o exibido por Rita; pode ser o amor de um homem que abriria mão de seu próprio bem-estar e de sua própria segurança para cuidar da mulher que ama, como Leandro se dispôs a cuidar de Isabel naquela noite; pode ser o amor próprio, manifestado na repulsa que se sente ao perceber o que escondemos em nossos corações, como Rodrigo fez ao expulsar Leandro; pode ser um amor ferido, manifestado por uma cena de ciúmes em um lugar impróprio e um pedido de atenção não correspondido, como aconteceu com Beatriz; pode ser o amor fraternal, manifestado pela preocupação de Franklin e Cláudia com Isabel; pode ser o amor de um amigo querido, que tenta dividir sua dor e sarar as próprias feridas enquanto ajuda a tratar das feridas de outro, como fez Caio; pode ser um amor incondicional manifestado pelo abismo profundo e o envelhecimento repentino dos pais de Rogério.

    O que é o amor?

    Quem saberá?

    Saberá quem o sente, mas quem o sente não se importa com o que é, só se importa com o que sente.

    O que é o amor?

    Não importa.

    Importa que, independentemente da forma como é manifestado, cedo ou tarde ele dói.

    Doeu em Rita, carregar aquele sorriso; doeu em Leandro, ver sua amada sofrer; doeu em Rodrigo, encarar a verdade sobre si mesmo; doeu em Beatriz, a rejeição; doeu em Franklin e Cláudia, a impotência; doeu em Caio, o vislumbre de um futuro que nunca aconteceria; doeu em Raquel e Ricardo, a perda de um filho amado.

    Durante a noite quente de janeiro, Isabel caminha, e a dor caminha com ela.

    Os sapatos de salto a incomodam, então ela os atira fora para continuar caminhando.

    Não sabe aonde vai.

    Não sabe onde quer chegar.

    Não se importa com as consequências de sair sozinha, à noite, sem telefone, documentos ou propósito.

    Durante a noite quente de janeiro, Isabel caminha, e o amor caminha com ela, porque o amor dói.

    O que é o luto?

    O luto é uma matéria interessante: diz-se igual para todos.

    Em 1969, a psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross apresentou o modelo que hoje é mais conhecido como Os cinco estágios do luto. Desde então, profissionais de todo o mundo usam o modelo para lidar com a perda e ajudar os enlutados a entenderem o luto, para que a mente racional possa medi-lo, teorizá-lo, saber o que esperar dele.

    Quanta besteira!

    Que monte enorme de bosta!

    Não existe tratado psicológico abrangente o suficiente para explicar o rasgar da alma. Não existe mente racional suficientemente competente para saber a exata sensação que se tem quando o chão é arrancado de debaixo dos pés e tudo o que se contempla é o vazio. Sem terra para pisar, sem abismo para cair, sem ar para respirar.

    Que não fale em negação ninguém que não tenha tentado fugir da verdade que esmaga, prolongando um piscar de olhos, por ter certeza de que, ao voltar a abrir esses mesmos olhos, vai descobrir que tudo era mentira, que o que se achava perdido continua ali.

    Que não mencione a raiva ninguém que nunca tenha brigado com Deus por ser cruel, prepotente e mesquinho. Que não ouse proferir a palavra raiva, ninguém que não tenha exigido desse mesmo Deus que voltasse o tempo e devolvesse o que Ele tirou de você.

    Que não escreva sobre a negociação nenhum teórico que não tenha voltado — depois de um longo jejum de palavras — a falar com o tal do Deus para prometer que nunca mais duvidaria de Sua existência desde que Ele fosse misericordioso e te arrancasse aquela dor do peito. Que viveria para Ele e para honrar Seu Nome desde que Ele concedesse a graça de te fazer voltar no tempo para sentir pelo menos uma última vez (uma única vez bastaria), o perfume do que tirou de você. Ah, sim! Você sabe que, mesmo tentando negociar, ainda carrega uma mágoa secreta do Senhor por ter te sacaneado, e isso nenhum psicólogo idiota te diz.

    Que não se atreva a teorizar sobre a depressão nenhum ser que não tenha sentido a tristeza maciça; que não saiba o que é se sentir acorrentado ao chão, pelo pescoço, e reconhecer as pessoas pelas sujeiras que carregam em seus sapatos, incapaz de olhar outros seres humanos nos olhos.

    Que morram queimados em fogueiras produzidas por combustão espontânea, todos aqueles que acreditam que a aceitação é possível ou mesmo desejável.

    Os enlutados amam sua dor e alimentam a tristeza, porque é uma forma de manter viva não apenas a esperança, mas também o esperado.

    Os enlutados se apegam ao seu amor inexistente, irreal, e invocam a dor como alimento de uma alma partida.

    ***

    O dia amanheceu, e Isabel ainda caminhava.

    De pés descalços, Isabel ganhava a fuga de sua dor um passo de cada vez. O sol começou a esquentar, e não a incomodou; seus passos deixavam pegadas de sangue no asfalto, e o sangue não a incomodou; um carro desacelerou e parou, o carro não a incomodou; um homem de olhar preocupado desceu, olhou seus olhos vazios e a ergueu nos braços, aquilo não a incomodou; ela foi colocada no banco do passageiro, e o homem ajustou o cinto de segurança e fechou a porta, nada daquilo incomodou Isabel.

    Ela era um zumbi.

    O motorista preocupado fez o motor do carro funcionar e pegou a estrada. Isabel não notou.

    — Isa, você estava tentando

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