Cartas dos primeiros tempos (1943-1949): nas origens de uma nova espiritualidade
De Chiara Lubih
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Cartas dos primeiros tempos (1943-1949) - Chiara Lubih
Prefácio
Chiara Lubich é uma grande mística católica do nosso tempo. As cartas publicadas neste volume são a expressão luminosa do coração de uma jovem que se entregou totalmente e para sempre ao amor de Jesus, pela renovação da Igreja e pela salvação de todos os homens. Sílvia, que adotou o nome de Chiara na Terceira Ordem Franciscana, fez um voto perpétuo de virgindade em 7 de dezembro de 1943, no período dramático da Segunda Guerra Mundial. Do seu sim
nasce uma experiência mística impactante, que podemos descobrir nestas páginas de fogo, acompanhando o seu desenrolar durante um período de aproximadamente seis anos (até o verão de 1949), que é precisamente o período do nascimento do Movimento dos Focolares. São palavras de luz e de amor, de grande consistência doutrinária, as quais devem ser interpretadas no grande espaço eclesial da comunhão dos santos e daquilo que João Paulo II chamava de a teologia vivida
dos santos (Novo millennio ineunte, nº 27).
Assim, nesta breve introdução, gostaria de propor algumas chaves de leitura sob um duplo ponto de vista. Primeiramente, devemos considerar Chiara no espaço da comunhão dos santos, nessa grande roda
pintada pelo beato Fra Angélico, na qual os santos se dão as mãos e nos dão a mão. Isso nos ajudará a ver melhor a Realidade central contemplada, vivida e ensinada por Chiara a toda a Igreja: Jesus Abandonado e a Unidade, isto é, o grande Mistério do Amor.
Na comunhão dos santos
Em relação à comunhão dos santos, a luz mais bela nos foi oferecida recentemente pelo nosso papa Bento XVI, no dia 19 de dezembro de 2009: foram publicados no mesmo dia o decreto sobre o milagre para a beatificação de Chiara Badano (chamada Chiara Luce pela própria Chiara Lubich), que será a primeira beata do Movimento dos Focolares, e os decretos sobre as virtudes heroicas do Papa Pio XII e de João Paulo II, os dois pontífices que acompanharam o caminho eclesial da fundadora do Movimento, no início e no fim. Essas próximas beatificações, primeiramente da jovem Chiara Luce e, a seguir, desses dois grandes papas, abrem diante de nós as grandes perspectivas do mistério da Igreja como mistério de comunhão e santidade. No fim de sua vida, Chiara Lubich viu nessa jovem gen
, que morreu aos 18 anos, em 1990, a realização mais bonita e simples do Ideal do Movimento, e agora é a própria Igreja que reconhece oficialmente a santidade dela.
A jovem Chiara Luce é a primeira de um grupo numeroso de Servos e Servas de Deus do Movimento. A árvore é reconhecida pelos frutos, que são frutos evidentes de santidade. Como autêntica mística católica, Chiara Lubich estava sempre em plena comunhão com a Igreja, com os bispos e com os papas. É tocante o seu amor profundo por aqueles que pôde conhecer e encontrar: o venerável Pio XII, o beato João XXIII, o Servo de Deus Paulo VI, o venerável João Paulo II, e isso sem nenhuma ruptura ou descontinuidade entre o período que antecedeu o Concílio Vaticano II e o sucessivo.
É surpreendente também o fato de que Chiara seja contemporânea justamente de João Paulo II. Os dois nasceram em 1920, eles disseram seu sim
total ao Senhor nos anos dramáticos da Segunda Guerra Mundial, quando tinham pouco mais de 20 anos: Karol Wojtyla mediante o seu Totus Tuus, isto é, a doação total e definitiva de sua vida a Jesus por meio de Maria (à luz do Tratado da verdadeira devoção a Maria, de são Luís Maria de Montfort) e a resposta à vocação sacerdotal; Chiara Lubich, por sua consagração virginal no mundo, para fazer nascer uma nova família da Igreja. Nos dois vemos uma esplêndida espiritualidade cristocêntrica e mariana, profundamente contemplativa e apostólica, tradicional e moderna ao mesmo tempo. Existe uma grande harmonia entre o Magistério de João Paulo II e o carisma de Chiara.
De uma maneira particular, Chiara é filha de são Francisco e santa Clara de Assis. A profunda raiz franciscana da sua vocação e do seu carisma desponta continuamente nestas cartas. Francisco e Clara são os santos mais citados, e muitas cartas são dirigidas aos membros da grande família franciscana: leigos da Terceira Ordem, religiosas e principalmente padres capuchinhos, conventuais. Chiara assimilou totalmente a espiritualidade franciscana com seu maravilhoso cristocentrismo e seu amor preferencial pelo Crucificado Pobre, em seu clima de alegria e fraternidade evangélica.
Santa Catarina de Siena está particularmente presente nestas cartas de Chiara, e isso tem um grande significado em relação à sua vocação e missão na Igreja e no mundo. De fato, são duas jovens (entre 20 e 30 anos), virgens consagradas no mundo, não religiosas, mas leigas da Terceira Ordem: dominicana no caso de Catarina, franciscana no caso de Chiara. Mulheres simples e humildes, elas têm a mesma palavra de fogo, extraordinariamente poderosa e livre, com a mesma autoridade carismática para falar a todos, leigos, religiosos e sacerdotes, em Nome de Jesus Cristo Crucificado e da Amável Maria
. Esta expressão, que introduz cada uma das cartas de Catarina, é perfeitamente adequada às de Chiara, assim como o encerramento: Jesus Doce, Jesus Amor
. Os grandes símbolos catarinianos do fogo e do sangue são encontrados nas cartas de Chiara, principalmente o do fogo, o principal símbolo do Espírito Santo e da caridade. Com Maria e como Maria portadora do fogo
(Oração 11), Catarina e seus filhos colocarão fogo em toda a Itália
(cf. Carta 261). Chiara cita várias vezes esta expressão da santa (por exemplo, nas C.n.9 e 46), e assim, em Roma, as focolarinas são chamadas de ‘as incendiárias’
(C.n.60). De fato, todo o empenho de Chiara e das suas companheiras é acender uma nova chama na Igreja de Roma, especialmente na preparação do Ano Santo (1950), e não apenas pela Itália, mas pelo mundo inteiro (C.n.46).
A semelhança de Chiara com Catarina aparece particularmente em suas cartas aos franciscanos padre Raffaele e padre Bonaventura, nas quais já está expressa fortemente a sua maternidade espiritual em relação aos sacerdotes, para ajudá-los a crescer em direção à santidade. Escrevendo ao padre Raffaele, provincial dos franciscanos conventuais, Chiara não teme afirmar sobre sua alma: desempenho com ela todas as partes: filha, irmã, mãe
(C.n.45). Da mesma forma, Catarina chamou o padre franciscano Lazzarino de Pisa: querido padre, irmão e filho em Cristo Jesus
(Carta 225). As cartas de Chiara, como as de Catarina, frequentemente são autênticos tratados sobre doutrina espiritual (cf. C.n.29).
Evidentemente mais ligada a Catarina, padroeira da Itália, Chiara também se mostra próxima de duas outras mulheres Doutoras da Igreja: Teresa d’Avila e Teresa de Lisieux. Teresa d’Ávila é mencionada em relação à humildade como fundamento necessário da caridade (C.n.18), e seria elucidativo comparar os carismas delas enquanto fundadoras, em dois contextos diferentes. Teresa de Lisieux não é mencionada explicitamente, mas a convergência é impressionante em relação ao cristocentrismo, ao dinamismo missionário do amor, com a mesma expressão: Amar Jesus e fazê-lo ser amado
e sobretudo com a mesma nova compreensão sobre a Infinita Misericórdia do Salvador que é fonte de uma esperança sem limites (cf. C.n.29,35,52). Em todas essas mulheres santas, na diversidade das épocas e dos contextos, verificam-se a força, a fecundidade e a originalidade da teologia feminina, expressão do gênio feminino tão valorizado por João Paulo II.
Jesus Abandonado e a unidade:
o grande mistério do amor
O tema central, contínuo, e também se poderia dizer o tema único dessas cartas de Chiara, que abraça e unifica todos os outros, é sempre a Pessoa de Jesus, o Mistério de Jesus e sobretudo o Amor de Jesus, plenamente manifestado e comunicado no Grande Mistério de sua Paixão Redentora, verdadeiro centro de perspectiva sobre todos os Mistérios da nossa fé: a Unidade na Trindade, a criação e a salvação, Maria e a Igreja, a vocação universal à santidade, o esplendor da caridade como único amor de Deus e do próximo etc. Com matizes e aprofundamentos novos, Chiara reapresenta de modo esplêndido a Theologia Crucis, que é um dos maiores tesouros da Igreja ocidental, contemplada e vivida pelos santos desde a Idade Média até os nossos dias. É a teologia franciscana, mas também a de santo Anselmo de Aosta, de Tomás de Aquino, Catarina de Siena, João da Cruz, Teresa de Lisieux, Gemma Galgani, Pio de Pietrelcina etc.
As expressões mais características de Chiara, em seu novo aprofundamento da teologia da Cruz, são Jesus Abandonado e a Unidade. É o grande tema continuamente desenvolvido e orquestrado nas cartas, com modulações esplêndidas e sempre novas. Jesus Abandonado é a fonte e o fundamento da Unidade. De fato, "o maior Ideal que um coração humano pode almejar – a Unidade – é um sonho vago e uma quimera se aqueles que o desejam não colocam em seu coração como único tudo: Jesus abandonado por todos, até mesmo por seu Pai" (C.n.57).
Essa mesma verdade é expressa de maneira ainda mais bonita em uma carta ao padre Bonaventura: O livro de Luz que Deus está escrevendo em minha alma tem dois aspectos: uma página luminosa de misterioso amor: Unidade. Uma página luminosa de misteriosa dor: Jesus Abandonado. São dois aspectos de uma única medalha. Para todas as pessoas, mostro a página Unidade. Para mim e para as pessoas que estão na linha de frente da Unidade: o único tudo é Jesus Abandonado (...). Aos outros, a Unidade; para nós, o abandono. Sim, porque a Esposa não pode ser diferente do Esposo
(C.n.40, com a assinatura: Chiara de Jesus Abandonado
). Para ela, como para Santa Clara de Assis, ser Esposa de Cristo significa abraçar Cristo Pobre
nos maiores sofrimentos de sua paixão (Carta II a Inês de Praga). É retribuir a loucura do seu amor por nós, que o levou a desposar
a nossa humanidade ferida pelo pecado, para salvá-la e santificá-la, e isso em todas as pessoas humanas. Assim, toda pessoa chamada à santidade é chamada a ser esposa de Cristo na Igreja, e não apenas a mulher consagrada. Neste sentido, Chiara escreve para sua irmã Liliana, que está se preparando para o casamento: Você desposa o Amor Crucificado e abandonado como eu
(C.n.15).
O grito
de Jesus crucificado: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?
(Mt 27,46) é a expressão extrema de seu amor através do seu maior sofrimento. Para Chiara, esse grito é inseparável do subsequente abandono confiante de Jesus nas mãos do Pai (segundo Lc 23,46) e de sua grande oração sacerdotal (segundo Jo 17): "A alma Dele de Homem-Deus, repleta da maior dor que o Céu e a terra conhecem, a dor de um Deus abandonado por Deus, não duvida nem por um instante em oferecê-la a seu Pai: ‘In manus tuas, Domine, commendo Spiritum meum’. Nós também, sempre assim. E sabe o que Jesus responderá à sua oferta? ‘Omnia mea, tua sunt’. Ele lhe dará tudo, toda a plenitude de sua alegria" (C.n. 23). A esposa de Jesus Crucificado e Abandonado experimenta esta misteriosa coexistência Nele da maior dor e da bem-aventurança. Neste ponto, Chiara se encontra com Catarina de Siena e Teresa de Lisieux, citadas por João Paulo II na Novo millennio ineunte (nº 27).
Chiara aprofunda o Mistério da Redenção como essa admirável e dramática troca
entre Jesus e todos nós pecadores. Ele, que não tinha pecados, tornou-se pecado por nós, para que nos tornássemos Nele Justiça de Deus (cf. 2Cor 5,21). Os santos Padres e Doutores (Massimo, o Confessor; João Damasceno; Tomás de Aquino) refletiram muito sobre essa misteriosa apropriação
de nossos pecados realmente vivida por Jesus Redentor, Cabeça do Corpo Místico, que assumiu sobre si e em si todo o pecado de seus membros, isto é, de todos os homens, a fim de que todos pudessem receber a sua graça. Com grande audácia e segurança teológica, Chiara penetra de modo novo nas profundezas deste mistério, privilegiando a palavra Unidade (mais que a clássica união
dos místicos) a partir das palavras do Evangelho que para ela são como o testamento
de Jesus - Ut unum sint (Jo 17,11): Pai Santo... que sejam um como nós
(C.n.29). Assim, o pecado é essencialmente caracterizado como desunidade com Deus e com o irmão. E é essa nossa desunidade que Jesus Abandonado realmente tomou em seu Coração para nos dar a sua Unidade de Amor com o Pai, no Espírito Santo (cf. C.n.39).
Assim, a caridade, que é ao mesmo tempo o maior mandamento de Jesus e o maior dom de seu Espírito, realmente realiza a unidade com Deus e com os irmãos. É impressionante nos textos de Chiara a onipresença de Jesus. É sempre Ele que ama e é amado, pois de alguma forma está sempre presente no irmão, em cada irmão, mesmo no mais distante, no mais pecador, no qual faz ecoar o seu grito de desunidade. Certamente está presente em meio
(cf. Mt 18,20) aos irmãos que estão na unidade (C.n.36), mas isso é para atrair todos os outros para a mesma unidade. Esses textos ainda não falam sobre o diálogo ecumênico e inter-religioso, mas já fica evidente a grande dinâmica da caridade sem fronteiras do Redentor e Bom Pastor, que privilegia o irmão mais desunido, mais distante, a ovelha perdida do Evangelho (cf. C.n.39,40,42). Assim, desenvolve-se uma esplêndida espiritualidade do amor, do amor verdadeiro que é um dom total de si para Deus e para os outros. É todo o radicalismo evangélico, sem qualquer sentimentalismo (C.n.24,53,54,55).
Todos os dias, esse amor encontra inseparavelmente seu alimento na comunhão eucarística e na Palavra de Deus. Aqui, o ensinamento de Chiara é luminoso e de grande atualidade no seu modo de unir profundamente no cotidiano o Pão da Vida e a Palavra de Vida, a Eucaristia e o Evangelho (cf. C.n.27,28,46,50).
A presença de Maria nestas cartas é maravilhosa e profunda. Mais escondida no início, Nossa Senhora se manifesta progressivamente como a Mãe da Unidade. Sua missão materna consiste em formar Jesus em nós (C.n.46) e