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Cinema, da letra à tela: Adaptação literária para cinema e televisão
Cinema, da letra à tela: Adaptação literária para cinema e televisão
Cinema, da letra à tela: Adaptação literária para cinema e televisão
E-book316 páginas4 horas

Cinema, da letra à tela: Adaptação literária para cinema e televisão

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Sobre este e-book

O que é uma adaptação cinematográfica ou televisiva de uma obra literária? Como avaliar sua qualidade? Por que é tão comum os aficionados a certo livro se sentirem frustrados com sua adaptação nas telas? Por que tantos filmes não são "fiéis" à obra literária? E, afinal, é válido sustentar "fidelidade" na adaptação? Esta obra trata dessas e de outras questões indispensáveis que envolvem o problema da adaptação literária em cinema e televisão. Com estilo delicioso em uma abordagem que concilia tratamento teórico rigoroso e interpretações desconcertantes pelo olhar de um dos maiores especialistas do assunto, Da Letra à Tela oferta-se tanto a estudiosos do tema (professores e estudantes de literatura, cinema e televisão) quanto a espectadores e leitores apaixonados.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de nov. de 2021
ISBN9786599051692
Cinema, da letra à tela: Adaptação literária para cinema e televisão

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    Pré-visualização do livro

    Cinema, da letra à tela - Marcelo Bulhões

    Livro, Cinema da letra à tela - adaptação - literária cinema - televisão. Autores, Ricardo Barbosa de Sousa. Editora Artes e Ofícios.Livro, Cinema da letra à tela - adaptação - literária cinema - televisão. Autores, Ricardo Barbosa de Sousa. Editora Artes e Ofícios.Livro, Cinema da letra à tela - adaptação - literária cinema - televisão. Autores, Ricardo Barbosa de Sousa. Editora Artes e Ofícios.

    Sumário

    Capa

    Folha de Rosto

    Apresentação

    Introdução

    Capítulo 1:

    O Olhar, a Letra e a Cena

    Capítulo 2:

    A Tela-palimpsesto

    Capítulo 3:

    A Leitura Autoral

    Capítulo 4:

    Entre Crueza e Clichê

    Capítulo 5:

    Graças e Desgastes Paródicos

    Capítulo 6:

    Espetáculo e Contundência na Espiral da Violência

    Bibliografia

    Crédito

    A Ivan Bulhões,

    companheiro de literatura e cinema

    APRESENTAÇÃO

    Da letra à Tela: tal título (aliterativo, metonímico) é síntese não apenas do subtítulo do presente livro, Adaptação Literária para Cinema e Televisão. É, sobretudo, condensação do aquém e do além nas nuances de cada premissa que se desdobra em linhas argumentativas sustentadas pela apropriação crítica de teorias da narrativa, estudos de linguagem e abordagens semióticas de diferentes correntes, com o propósito de iluminar o que Marcelo Bulhões designa como um pequeno fragmento do que habitualmente é chamado de adaptação.

    O espectro das questões presentes em Da Letra à Tela convoca e convida o leitor à reflexão sobre a complexidade dos processos de atualização no sistema de linguagem audiovisual das narrativas geradas a partir de uma matriz literária. Enquanto a letra (do romance, do conto, do poema, do texto de teatro), grandeza expressiva mínima que, articulada a outras letras, forja a manifestação verbal escrita da qual emergem conteúdos apreendidos de modo particular e intransferível pelo enunciatário projetado, a tela (da sala de cinema, da TV e de tantas plataformas digitais do nosso cotidiano) abriga recursos de textualização de outras ordens, encerrando efeitos de sentido no âmbito da dimensão planar das imagens em movimento sincronizadas (ou às vezes programaticamente desconexas) aos sons.

    Ao circunscrever de forma tão rigorosa quanto exaustiva a lavra da adaptação audiovisual de literatura (em que a palavra se converte em som-imagem), o autor amplia de modo inequívoco a percepção do leitor em extensão e profundidade acerca das múltiplas questões implicadas no problema da adaptação. O olhar acurado e disciplinado do autor, inerente ao trabalho científico e tornado afiado em anos de sala de aula na Universidade, conduz a um mergulho profundo na configuração multifacetada do fenômeno de recontar no cinema e na televisão histórias já contadas, temáticas já manifestadas, contextos e épocas registrados em cânones da literatura. No entanto, o domínio do objeto é proveniente da erudição derivada de imersão diletante, porém comprometida, de Marcelo Bulhões nos universos literários, cinematográficos e televisivos. Isso confere às diversas análises que ele faz no livro – de Ligações Perigosas, romance epistolar de Laclos e filme de Frears, a Morte e Vida Severina, poema de João Cabral e especial de TV da Globo, de Dom Casmurro, romance tão nosso querido de Machado, e Capitu, minissérie de Luiz Fernando Carvalho, a Cidade de Deus, romance de Paulo Lins e filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund, de Satyricon, novela de Petrônio e filme de Fellini, a A Grande Arte, romance noir à brasileira de Rubem Fonseca e estreia cinematográfica de Walter Salles, entre tantos outros casos – a sedutora leveza de um texto elegante, no qual as palavras ganham o estatuto da precisão, empregadas sempre no lugar devido. Saber e sabor – pode-se dizer.

    Sob a marca de um fazer interpretativo autoproclamado ensaístico, não cronológico em sua diacronia, assumindo-se até em certa medida arbitrário na seleção e abordagem de filmes e séries de TV, o leitor irá encontrar nas páginas que seguem um vasto repertório de referências teóricas, históricas e estilísticas, plasmado nos ditos e interditos das proposições, das ponderações, das argumentações reflexivas, das asserções motivadoras de novas inquietações e visadas... Tal repertório vasto, no entanto, nunca chega a pesar, tão fluida e saborosa é a exposição. De todo modo, diluídas ao longo dos capítulos, o leitor encontrará demarcações teórico-metodológicas fundantes de um pensamento crítico sobre adaptação literária para o audiovisual, cujo alcance faz deste livro uma obra de referência à medida que engendra análises amplas em profundas reflexões sobre o fenômeno.

    Os percursos de leitura corroboram o reconhecimento do caráter único tanto da obra adaptável quanto da obra adaptada, em função da intransponibilidade da textualização, pois, originárias de diferentes formas da expressão, bem como formas do conteúdo, constituem configurações próprias. O caráter de adaptação incide, portanto, no fato de substâncias do conteúdo serem passíveis de abrigar efeitos de sentido correlatos apreendidos por um fazer cognitivo regido pelo inteligível, enquanto no plano da expressão é a percepção sensível que opera a apreensão do sentido em estesias e sinestesias acionadas nas experiências estéticas. Eis, a meu ver, o ponto de sustentação que norteia a noção de adaptação como construto teórico presente neste livro, que veio para preencher com seiva singular uma lacuna em nosso meio editorial. Com ele, o leitor verá que uma adaptação é sempre mais que uma adaptação...

    ANA SÍLVIA LOPES DAVI MÉDOLA

    Livre Docente em Comunicação Televisual pela Unesp

    INTRODUÇÃO

    Este é um livro dedicado à adaptação audiovisual de literatura. Mas não se presta a um apanhado histórico e circunstanciado de produções no cinema e na televisão que se classificariam como adaptações literárias. Qualquer livro que pretendesse isso, aliás, conviveria com um inevitável caráter lacunar e rápida desatualização, tão gigantesco e irrefreável é o movimento constante no âmbito da produção de obras audiovisuais baseadas em obras literárias, canônicas ou não. O livro busca um gesto que se move do analítico ao interpretativo, atingindo a dicção do ensaio.

    A intenção básica é avaliar a operação da expressão audiovisual na adaptação de obras literárias em particulares produções cinematográficas e televisivas. Fazer isso é naturalmente dirigir-se ao terreno complexo das relações entre o literário e o audiovisual. O livro acolhe, então, um pequeno fragmento do que habitualmente é chamado de adaptação, assume e valoriza tal ato de escolher e não se norteia por critérios cronológicos. Mas acredito que a inevitável arbitrariedade das escolhas não retira a validade do empreendimento, pois busca atar casos audiovisuais a aspectos chaves, possivelmente decisivos da reflexão teórica a respeito da adaptação. Tratar de expressões particulares pretende, pois, ser operação para acessar considerações de teor mais geral a respeito de um tema vasto e complexo. A aposta é que análises de expressões audiovisuais específicas possuam valor operativo, em que o corte de um tecido audiovisual particular permita se divisarem outros figurinos do consórcio entre a textura audiovisual e a literária. O motor do livro busca prender o teórico ao analítico-interpretativo como fontes que se retroalimentam.

    Se de modo geral adoto neste livro o termo adaptação (no lugar de transcriação, tradução intersemiótica ou transcodificação) e se para muitos ele é insatisfatório ou possa invocar contendas teóricas, assumo sua utilização segundo alguns motivos. Quando o espectador vai assistir a determinado filme ou série de TV por ser aficionado àquele romance ou conto que foi transposto para o audiovisual, recorre à tela da TV ou da sala de cinema para ver Joyce, Proust ou Machado de Assis, talvez presumido de que com isso pode dispensar a leitura das obras desses escritores, adaptação é o termo que mais ressoa. Mas não o adoto aqui por mera concessão. Acolho adaptação para valorizar um significado de modo geral esmaecido ou não levado em conta. Na acepção de adaptar, – que aliás, comparece em dicionários correntes da língua portuguesa –, está presente o senso de inapelável transformação, da "conversão" de literatura em cinema e televisão; o realizador audiovisual amolda, ajusta, ajeita – adapta, enfim, para o meio audiovisual a matéria verbal do meio literário. Em adaptar está afastada, então, a noção de qualquer transporte da integralidade da literatura para o audiovisual, uma das questões caras deste livro, premissa teórica para as análises que ele realiza. Ou seja: adaptação é designação pregnante à consciência da operação tradutora na esfera da (re) criação, afastando qualquer conjectura de fidelidade. Adaptar comporta o senso da intraduzibilidade do signo literário. Adaptação de literatura para cinema e televisão – ou para fotografia, moda, arquitetura, dança, música, quadrinhos ou outro sistema semiótico – implica inapelável reconfiguração.

    A questão da adaptação evoca a proposição de Roman Jakobson que, no ensaio Aspectos Linguísticos da Tradução, nomeia tradução intersemiótica ou transmutação para se referir à interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais¹. Assumindo-se a perspectiva do teórico russo, quer se fale em tradução ou adaptação, o essencial é advertir para a impossibilidade de equivalência completa dos meios de expressão. Nessa trilha, o problema há tempos se reveste de contribuições teóricas que questionam drasticamente a exigência de fidelidade, presente no senso em comentários corriqueiros como o livro é melhor que o filme ou a série de TV, e identificam nela um equívoco teórico que conduz a um desserviço metodológico. Assim, Robert Stam recusa o endosso à noção de fidelidade como fundamento à apreciação de adaptações fílmicas de obras literárias². Também para Ismail Xavier, o filme-adaptação de obra literária é tomado "como nova experiência que deve ter sua forma, e os sentidos nela implicados, julgados em seu próprio direito"³. Mais atrás, Paulo Emílio Sales Gomes também marcou desvio da noção de fidelidade ao ponderar que a notação de associações entre romance e filme não implica descurar de decisivas divergências entre as duas formas de expressão⁴.

    As conhecidas contribuições de Jakobson a respeito da tradução foram vividamente incorporadas por Haroldo de Campos que assinala com ênfase a tradução poética como operação de recriação⁵. Embora nesse caso Haroldo se refira à tradução propriamente dita, ou seja, dentro do sistema linguístico, sua visada se lança à expressão artística, os textos criativos. Isso permite a Ana Maria Balogh, por sua vez, explanar a transmutação ou tradução intersemiótica: sistemas de signos não verbais que interpretam ou recriam signos verbais; a adaptação como passagem do repertório literário ao televisivo e cinematográfico. Ao fazer isso a autora adverte da autonomia do audiovisual em relação ao literário, caso contrário incorre em mera tradução servil ou ilustrativa⁶. Tal servilismo norteia produções audiovisuais que não ultrapassam o nível superficial, as dimensões do enredo e dos personagens, por exemplo, para o espectador-leitor reconhecer uma narrativa literária levada às telas.

    Tal aparelho conceitual é assente de que a passagem do literário para audiovisual acarreta inapelável transformação – e se ponho aqui aspas em fidelidade é para sinalizar ingenuidade e inconsistência conceitual que envolve o termo. A inalcançabilidade da fidelidade entre o texto literário de origem e sua adaptação é decisiva na tradução intersemiótica, em que se busca traduzir um sistema semiótico para outro. A intersemioticidade é intrinsecamente contrária à noção de fidelidade. Assim, toda tradução intersemiótica só pode ser franca recriação, pois o ato de traduzir torna-se operação de escolhas criativas na conversão de obra pertencente a um sistema de signos em obra pertencente a outro sistema. Se é intrínseco ao labor da forma expressiva pertencente a um sistema de signos o horizonte de sua estrutura, a obra televisiva ou cinematográfica resultante do processo adaptativo nunca será fiel à obra literária por ser diverso seu universo semiótico. Ingênua e equivocada torna-se, pois, a exigência de fidelidade pois toda mutação de linguagem traz inevitável e automática infidelidade. Tal impossibilidade de transplantar o signo verbal para o audiovisual não é, aliás, desgraça. O senso de perda só o pode sentir quem busca encontrar literatura em cinema. Ou encontrar cinema em literatura. Assim, o trabalho do analista passa a ser o de discernir, no produto semiótico resultante do trânsito da letra à tela, agenciamentos de imagem e som como respostas à forma literária. Tal irremediável transformação não representa, então, infortúnio, pois nenhuma perda se dá. Por consequência, à obra resultante do labor adaptativo devem ser respeitadas suas deliberações inventivas, as soluções e licenciosidades impressas em outro meio de expressão. O afastamento da prerrogativa de fidelidade traz ganho ao trabalho analítico por desbastar qualquer teor prescritivo, liberando, por assim dizer, o crítico ou analista à inquirição fundamental de como operam as formas audiovisuais em sua relação com o campo literário.

    Se o desenvolvimento da linguagem cinematográfica teve como um dos seus aportes o campo da literatura – o que aliás é muito bem sabido e rendeu diversos estudos –, também é sabido que a literatura seria impelida a se reinventar com a presença do cinema – e a televisão passaria a participar de tal colóquio. Câmbios de processos estéticos e narrativos, justaposições e convergências entre distintas expressões fazem parte, aliás, de um horizonte muito anterior ao advento do cinema e da televisão, tendo atuado sempre na trajetória das artes e do universo narrativo. Mitos, lendas e fábulas sempre foram adaptados, acolhidas e deslocadas para contextos de transmissão distintas das suas condições primevas de difusão, histórias orais foram vertidas para teatro, entrechos de peças foram parar em páginas de livro, narrativas clássicas da literatura transformaram-se em ópera, em uma cadeia interminável. Se a ópera Otelo (que estreou em 1887) de Rossini, com libreto de Francesco Maria Berio di Salsi, é ancorada no texto dramatúrgico de Shakespeare (composto entre 1601 e 1604), este por sua vez havia recolhido as coordenadas da fábula em uma narrativa anterior ao período do chamado teatro elisabetano. Telas de René Magritte adotaram títulos de contos de Edgar Allan Poe, abrindo vetores para analogias, com léguas de distância da noção de fidelidade entre o pictórico surrealista do século XX e o literário gótico do XIX. Exemplos como esses são inumeráveis.

    O amadurecimento do problema levou à concepção de que se algumas obras televisivas e cinematográficas adaptadas (o mesmo valendo para o campo das artes plásticas, teatro, instalações, histórias em quadrinhos, games etc) se assemelham às suas matrizes literárias, elas operam com expedientes audiovisuais promotores de efeitos semiótico de parecença. Desse modo, as adaptações seriam mais ou menos fiéis quanto mais o discurso audiovisual produzisse na substância imagética e sonora efeito de aderência ao universo peculiar da obra adaptada. Em um vetor, isso se traduz no trato de categorias fundamentais da narrativa – enredo, tempo, espaço, personagem, ponto de vista –, inseparáveis da dimensão semântica e, em outro vetor, no manejo de expedientes da fisicalidade do signo verbal que corresponderiam à dos signos audiovisual: à expressão verbal despojada de um Graciliano Ramos em Vidas Secas, romance de 1938, por exemplo, atuariam dispositivos cinematográficos despojados de procedência do Neorrealismo italiano aclimatados por Nelson Pereira dos Santos em seu Vidas Secas, de 1963. Tal campo foi respaldado diversas vezes. Identificaram-se no cinema de Alain Resnais, especialmente em Hiroshima, meu Amor (1959) e O Ano Passado em Mariembad (1961), e no cinema de Antonioni ou Bergman afinidades com procedimentos do romance moderno, de Proust, Faulkner, Gide ou Joyce, pelo teor de incursão à psicologia profunda, com consequentes quebraduras da cronologia e da integridade do espaço; parentescos ou associações entre o cinema de Fellini e vertentes da literatura dos séculos XVI e XVII foram alardeados; indicou-se analogia entre o realismo clássico de Visconti e a escrita de Tomasi di Lampedusa ou Thomas Mann nas adaptações do cineasta em O Leopardo (1963) e Morte em Veneza (1971); há quem possa ver no cinema de Glauber Rocha afinidades com a literatura de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa.

    Ao mesmo tempo e todavia, a convivência com adaptações, algumas de inegável pujança criativa, que preferem enfatizar o próprio traço de discordância em relação à obra original levou à percepção de que a transgressão poderia convidar o espectador a uma fruição mais complexa e rica, em que a obra fílmica realizaria uma incorporação escorpiônica ou ironicamente corrosiva que, no fim das contas, questiona a própria leitura como atitude reverente ao repertório literário. Outras adaptações audiovisuais acolheram com desembaraço da obra literária ora somente motivos temáticos, ora esquemas narrativos mínimos. O Padre e a Moça (1965), filme de Joaquim Pedro de Andrade, estabelece uma relação flagrantemente desapegada em relação ao poema O Padre, a Moça, de Drummond, do livro Lição de Coisas (1962). Terminando a narrativa no ponto onde o poema se inicia, o filme de Joaquim Pedro oferece ao leitor-espectador o horizonte de um cotejo em que o filme difusamente se tingiria da experiência de leitura do poema como matéria literária tanto quanto este poderia em relação ao filme. No filme de Joaquim Pedro o poema de Drummond está na condição de uma presença-ausência.

    Em termos esquemáticos, então, a operação tradutora/adaptadora parece se dar em duas direções: ora confeccionando efeitos de similitude em relação à obra literária matriz, via correlativos audiovisuais ao tecido verbal literário e parafraseando o plano da história (de um romance, conto, crônica etc), ora afastando-se deliberadamente dessa via, afirmando a marca da desobediência ou transgressão. No primeiro segmento, estariam as adaptações canônicas, caso de Grandes Esperanças (1946), adaptação cinematográfica de David Lean do romance homônimo de Charles Dickens; no segundo, transgressões como a versão de Orson Welles do Dom Quixote, de Cervantes, filme nunca concluído⁷. Mas essa equação vale para se flagrar seu próprio limite. Pois se de um lado o molde da narrativa do cinema clássico adotado por Lean está em conformidade cabal com a narrativa realista de Dickens, de outro situar a ação do protagonista de Cervantes em plena vida urbana do século XX no filme de Welles seria gesto estético em consonância com a tônica metanarrativa do romance de Cervantes ao desmascarar, pela desabusada inverossimilhança de um cavaleiro andante nas ruas de uma metrópole moderna, o próprio construto cinematográfico ilusionista. Se a narrativa literária do Quixote exibe sempre seus bastidores ficcionais, de modo correlato o filme de Welles exibe-se como artifício narrativo que fratura a lógica das estratégias ilusionistas. A (re) criação de Welles parece instalar aliança com a prosa de Cervantes em seu próprio modo infiel, anti-canônico e antirreverente, enquanto o filme de Lean a afinidade faz-se com placidez reiterativa da conhecida afinidade entre o padrão cinematográfico consagrado por David Griffith no início do século XX e o romance oitocentista de Dickens.

    Teimosamente, todavia, de modo implícito ou declarado, a cobrança de fidelidade na adaptação audiovisual ainda nos ronda; espécie de espectro crente em pureza ou neutralidade semiótica asseguradora da tradução audiovisual fidedigna. Tal miragem desconsidera o próprio fundamento da linguagem poética – e os fundamentos do objeto artístico em qualquer sistema semiótico –, o que não se restringe à poesia em sentido estrito, mas à primazia da função estética no manejo do significante verbal, daí comparecer à prosa mais inventiva, a de um Flaubert, Joyce ou Guimarães Rosa. É preciso, pois, reivindicar ainda a intraduzibilidade do objeto estético, impossibilidade de preservação do sistema de signos primevo na operação tradutora intersemiótica. A adaptação literária para o audiovisual sempre consistirá em intraduzibilidade da informação poética, da materialidade do signo verbal. Qualquer adaptação televisiva ou cinematográfica ciente dessa condição explorará materiais estéticos pertencentes ao domínio semiótico audiovisual, recusando-se à mera transmissão do plano do conteúdo, da mensagem, ou da sequência de eventos que integram uma história.

    Nessa perspectiva, o desafio – inevitável desventura? – de adaptar para cinema e televisão obras como Ulisses de James Joyce, Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa ou Cem Anos de Solidão de García Marques deriva da dificuldade de se produzirem no tecido audiovisual correlativos semióticos que, longe da mera paráfrase da história, sejam uma empreitada estética suficientemente pujante que dialogue com a literatura de Rosa, Joyce e García Marques. E aqui sou provocativamente levado a aventar que o fundo da inevitável desventura em eventuais adaptações – diante das quais já podemos imaginar o desagravo de leitores aficionados a esses grandes romances –, reside no mesmo equívoco de base que habita a expressão corriqueira o livro é melhor que o filme, ou seja, a mesma requisição de fidelidade. Na órbita conceitual da tradução intersemiótica, o espectador tanto não viverá nunca a experiência literária com Dostoiévski no filme Noites Brancas (1957), adaptação de Luchino Visconti do conto homônimo do escritor russo publicado em 1848, quanto na leitura do texto dostoievskiano fica elidida a fruição cinematográfica do cinema de Visconti.

    Não se deve esquecer, ainda, que em toda adaptação literária os adaptadores/realizadores são leitores indissociáveis de injunções e contradições de cada momento histórico, para as quais se devem conjecturar variáveis complexas no modo de interpretação e apreciação das obras, audiovisuais e literárias. No caso da literatura canônica, tal questão possui a nuance de que nomes como Dante, Goethe, Balzac, Machado de Assis ou Tolstói constituem patrimônios culturais cujos percursos de recepção formaram um grandioso manancial de variadas e às vezes destoantes leituras, interpretações e releituras no transcurso de décadas e séculos. Assim, tantos são os Hamlets quanto inapelavelmente variados são os modos de fruição da obra de Shakespeare, cuja leitura se transformou segundo distintas conjunturas históricas, as quais nunca podem ser, todavia, tomadas como portadoras de blocos ideológicos monolíticos. A questão se torna mais intrincada ao se levar também em conta, no século XX e XXI, um cenário de constantes mutações no vasto campo audiovisual, em que o estético não é dissociado das condições de produção e difusão cravadas na dimensão mercadológica. Tantos são os Dantes e Shakespeare adaptados para cinema e TV quanto distintos são os modos de se produzir audiovisual nesses meios, um fazer inseparável de injunções na esfera da indústria cultural. Nesse contexto, noções como liberdade criativa, originalidade ou novidade têm seu estatuto extraordinariamente abalado.

    Na contemporaneidade, o problema da adaptação adquire certo acento peculiar. Mais do que em qualquer outro tempo, a adaptação é hoje um fenômeno intermidiático. Diferentes são as plataformas, os suportes, os meios que a envolvem, o que demanda um esforço de percepção de peculiaridades; muito intenso é o trânsito de linguagens e gêneros. Nas últimas décadas nosso olhar passou a se ocupar com confluências e transposições entre sistemas como histórias em quadrinhos, games ou formas despontadas com a tecnologia digital. Tal dimensão instiga o estudioso a avaliar traduções de toda sorte no flagrante voraz de intercâmbios em que não é possível identificar uma matriz municiadora dos produtos estéticos e narrativos. A própria relação entre o literário e o audiovisual do passado se altera sensivelmente nesse cenário, pois não fica

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