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Clarice Lispector Apesar De
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E-book625 páginas3 horas

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Sobre este e-book

Mediante estudo percuciente do texto, Jeronimo expõe ao leitor que forma e conteúdo trabalham em consonância em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Se a primeira organiza a ossatura do relato para dar ensejo ao gênero Bildungsroman, o segundo exibe-se concernente ao tema da busca identitária, adequando-se à perfeição à estrutura narrativa, prenhe em diálogos e solilóquios. A análise desses recursos discursivos e dos traços estéticos neles inscritos apresenta um novo olhar a essa obra de Clarice Lispector. A escolha de um escritor canônico, que poderia ser uma tarefa temerária à possibilidade de oferecer uma contribuição relevante à academia, resulta num estudo instigante, que tem provado ser merecedor da atenção do leitor desde a defesa do mestrado, sendo pouco depois escolhido por uma abalizada comissão julgadora como a melhor dissertação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie no ano de 2018, para concorrer ao prêmio ANPOLL de teses e dissertações desse mesmo ano, tendo ficado entre os finalistas. Agora, em suporte livro, esse trabalho chega às suas mãos. Convido-o a conhecer este estudo consistente, revelador de outras faces de Clarice Lispector. Boa leitura! PREFÁCIO de Aurora Gedra Ruiz Alvarez (Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de mai. de 2020
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    Clarice Lispector Apesar De - Thiago Cavalcante Jeronimo

    PREFÁCIO: CLARICE LISPECTOR, UMA APRENDIZAGEM CONSTANTE

    Aurora Gedra Ruiz Alvarez

    Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP

    Escolher pesquisar a produção ou a obra de um escritor consagrado pela academia e pelo público é um gesto de coragem, em vista dos desafios que o investigador enfrentará para elaborar um trabalho que apresente originalidade. Uma dúvida o assalta de antemão: é possível encontrar algum tema ou recurso estético não apreciado pelos estudiosos por novo viés teórico? Em meio a riscos que se anunciam diante da decisão, persiste o anseio de encontrar no horizonte das leituras efetuadas um nicho que não tenha sido demasiado discutido pela crítica, ou uma perspectiva de estudo ainda não eleita pelas pesquisas realizadas. Mikhail Bakhtin¹ considera que a criação artística tem uma vida post mortem e, segundo o filósofo da linguagem, essa sobrevivência coincide com o processo semiótico que se instaura na recepção, quer pela diversidade de público de uma ou de distintas comunidades linguísticas, quer pela diferença temporal, às vezes de séculos, entre a produção da obra e a sua circulação. O livro disposto na estante aguardando por um leitor lembra muito a imagem criada por Carlos Drummond de Andrade, em Procura da poesia, acerca da criação poética: "Lá estão os poemas que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não há desespero,/ há calma e frescura na superfície intata./ Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

    Se na produção incide o repertório do autor para o surgimento da obra, em analogia a essa condição expectante do poema nascituro, pode-se falar de semelhante condição na recepção. O significante disposto na mancha da página, em sua neutralidade, aguarda para ser recoberto de sentidos pelo leitor comum e/ou crítico, que o apreende no processo de decodificação. Assim aconteceu com a feliz escolha do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, corpus da dissertação de mestrado de Thiago Cavalcante Jeronimo, que agora se materializa em livro.

    Em se tratando de Clarice Lispector, o autor, como era de esperar, encontrou material discutido por vários pesquisadores e, dentre eles, nomes de notório relevo na academia, os quais Jeronimo revisita no início deste livro. Na sua leitura da fortuna crítica, privilegia, particularmente, trabalhos representativos para o estudo da obra clariciana em detrimento de outros que não oferecem uma efetiva contribuição para o constelado de interpretações do corpus. Procedendo desse modo, alinhava dados significativos para formar o estado da arte, concernente ao romance em foco. Dessa base teórica, traça caminhos que avançam questões já apontadas, como a do gênero em Uma aprendizagem, mas considera outras ainda não tratadas sob certo enfoque teórico e/ou de análise, como os diálogos na estrutura discursiva, os recursos estéticos neles inscritos, assim como avalia a poética tecida na narrativa, tendo em vista esses procedimentos estilísticos. Sobre esse espectro de questões relevantes, o pesquisador se debruça com seriedade, examinando esse material que encerra camadas de sentidos, novidades a serem reveladas.

    Ressalta-se neste trabalho o estudo das epígrafes constantes em Uma aprendizagem. Fundamentado na teoria de Gérard Genette respeitante a esse fenômeno que preludia um texto, Jeronimo analisa a natureza da epígrafe, a sua função na composição do romance, assim como no hipotexto (texto-fonte). Nesses exercícios interpretativos destaca as ocorrências formais processadas nessa negociação de sentidos, aclara como se dá a passagem de um texto a outro, explora os significados no texto-matriz e a ressignificação deste desencadeada com a superposição de outras camadas semânticas.

    Considerando ainda a questão da ressignificação, Jeronimo desenvolve também uma reflexão interessante sobre as crônicas de Clarice produzidas para o Jornal do Brasil, assim como discute o Bildungsroman, gênero em que a obra do corpus se engendra. Concernente às primeiras, o autor discorre sobre a inquietação da escritora quanto à natureza do material que ela produz para o periódico. Na apropriação desse gênero, Jeronimo observa que Clarice o redesenha com subjetividade e reflexão sobre o humano e concede-lhe novo feitio.

    O diálogo com os textos da tradição irrompe também pela criação literária adentro. A autora apropria-se de trechos dessas crônicas e reestrutura-os conforme a moldura da criação literária. No trabalho com o intertexto, nas palavras de Jeronimo, a autora de A hora da estrela confere nova dimensão e valor ao texto fonte. O pesquisador mostra como a inscrição de excertos de crônicas em Uma aprendizagem tensiona a tessitura palimpséstica do romance, desvelando o interstício, o intervalo entre – espaço fecundo de vida, de renascimento no processo criador – o que seria uma narrativa ligeira acerca do cotidiano (as crônicas) e o corpo romanesco, que se adensa em um questionamento filosófico acerca da existência do ser, em particular, do mundo feminino.

    De igual modo, sobressai a singularidade no tratamento do Bildungsroman. Para o entendimento desse conceito, Jeronimo apresenta várias concepções dessa escrita: desde o esclarecimento das origens do termo vinculadas a um misticismo esotérico, até a acepção dessa expressão da literatura que apresenta a trajetória de conhecimento de mundo e de autoaperfeiçoamento do jovem burguês que se prepara espiritual e humanisticamente para conquistar um espaço na sociedade do século XVIII. As várias concepções apresentadas por distintos estudiosos, como se verá, compreendem esse gênero como um percurso que visa à redução dos choques sociais entre o indivíduo e a sociedade, equalizando as ações entre o homem e as instituições sociais burguesas e aristocráticas. Esse abrandamento das tensões entre o sujeito e o mundo relaciona-se ao atingimento de um equilíbrio interior entre a reflexão e a ação na busca de um sentido maior das experiências humanas e ao autoconhecimento das potencialidades de atuação social, os quais, em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, num primeiro momento, são representados pela vida de ator de teatro, esfera que a personagem prioriza para o desenvolvimento de sua personalidade, como se depreende da carta escrita a seu cunhado, no capítulo três do Livro V. Filho de comerciantes abastados, o protagonista rejeita seguir essa vida que, segundo ele, tem, como objetivos: ser útil à sociedade – ideal compreendido do ponto de vista empírico (produção de bens e serviços) –, altos ganhos e, por conseguinte, acúmulo de bens. A opção pela vida de simplicidade já se evidencia nesse início, pois escolhe ser artista de uma companhia de teatro ambulante, composta de atores da burguesia³. A jornada por diferentes lugares possibilita-lhe variada experiência e contato com distintos extratos sociais, os quais o levam a considerar que a vida da aristocracia e a da burguesia são representações semelhantes às cenas teatrais, conclusão a que chega também o protagonista de Os sofrimentos do jovem Werther, romance do mesmo autor. Rejeitando a hipocrisia social e a ostentação, Wilhelm Meister faz nova escolha: construir uma família e viver em harmonia e simplicidade.

    Cabe aqui demorar um pouco mais na reflexão sobre a primazia da vinculação do Bildungsroman ao percurso de Wilhelm Meister. Compreende-se esse entendimento, em virtude de esse romance ser uma obra seminal do gênero e de essa personagem ser o protagonista de grande parte dos livros dessa obra de Goethe. Na apresentação de Marcus Vinicius Mazzari a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister⁴, ao estudar o Bildungsroman, o crítico centra o exame não só na formação do protagonista do romance, como também identifica o apagamento de Confissões de uma bela alma⁵, que figura no Livro VI da obra em tela, única narrativa que gravita em torno da formação feminina. Mazzari considera que esse texto apresenta uma autonomia em relação aos outros sete livros que, juntos, compõem a obra. Mantendo essa independência do eixo da narrativa central – o percurso formativo de Wilhelm Meister – em seu insulamento, Confissões de uma bela alma apresenta o paradigma da mulher da alta burguesia da segunda metade do século XVIII. A prevalência do domínio masculino na sociedade da época parece ter obliterado a presença desse relato de formação feminina dentro do conjunto dos Livros do romance e em outras narrativas que subseguiram a tradição dessa obra.

    Jeronimo aponta, em seu estudo, o afastamento do Bildungsroman da tradição, ou seja, de um gênero voltado apenas à formação masculina, para a adesão a um movimento centrífugo das narrativas precursoras da literatura contemporânea, que inscrevem a formação feminina nesse modelo emergente de Bildungsroman, como a obra sob análise.

    Para este prefácio, Confissões de uma bela alma ganha importância, em virtude do cotejo que pode ser estabelecido com a protagonista de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Segundo nota⁶ de Nicolino Simone Neto, tradutor de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, Goethe (2006) possivelmente se baseou nos escritos (confissões e cartas) de Susanna Katharina von Klettenberg – uma pietista, prima e amiga da mãe do autor – para a criação desse livro.

    Nessas informações reside uma preciosa contribuição para a compreensão do Bildungsroman feminino. À mulher inscrita na sociedade alemã do século XVIII não era permitida a atuação fora dos domínios da família e de amigos próximos a ela. Talhada pelo poder patriarcal, suas ambições circunscrevem a esse estreito universo, orientadas ao místico, à busca da transcendência, alvo último aspirado pelo pietismo. Configurada segundo esse modelo de mulher, a protagonista do Livro VI não desponta como sujeito que busca se entender enquanto um ser que deseja se integrar no âmbito social, político, ao mesmo tempo em que se questiona sobre sua identidade, conforme se vê em Wilhelm Meister, no Livro V: De que me serve fabricar um bom ferro, se meu próprio interior está cheio de escórias? E de que me serve também colocar em ordem uma propriedade rural, se comigo mesmo me desavim?

    Se Susanna Katharina von Klettenberg mergulha na esfera religiosa sob o peso da sociedade patriarcal, Lóri, protagonista de Uma aprendizagem, é uma mostra representativa de muitas mulheres do início da segunda metade do século XX. Ela está em trânsito: não pertence àquela espécie feminina reclusa no âmbito familiar como a personagem de A bela alma, nem aquela que usufrui de sua independência e que busca cada vez mais se afirmar enquanto sujeito sócio-histórico que luta para ser respeitado, reconhecido em sua autonomia, em sua individualidade. Em grande parte da narrativa, Lóri é apresentada ainda não consciente do que fazer com a liberdade conquistada. Essa nova configuração do gênero feminino é novidade para a jovem professora vinda do interior, onde as regras familiares são ainda mais rígidas que nos centros urbanos; ela precisa primeiro se conhecer e a aquisição desse conhecimento gera tensão na narrativa. É nessa direção que caminha o trabalho de Thiago Cavalcante Jeronimo. Suas pesquisas trilham as veredas difíceis do autoconhecimento da personagem, mostrando avanços e recuos, ousadias que aproximam a personagem, por vezes, da femme fatale e inseguranças diante do novo, particularmente no que tange a como lidar com a sua sexualidade. Nesse campo complexo gerado pela crise ontológica, Jeronimo examina com acuidade os procedimentos estéticos privilegiados por Clarice Lispector para a construção identitária da protagonista.

    Desses procedimentos, o exame do diálogo socrático e do solilóquio surge como contribuição relevante para o estudo dessa obra da autora. O primeiro comparece nos vários diálogos entre Lóri e Ulisses. Este, filósofo no que respeita à formação escolar e à vivência, é interlocutor ativo no processo de despertar o autoconhecimento em Lóri. Por meio de questionamentos, ele desempenha o papel de instigador da reflexão da protagonista, para que ela busque suas próprias respostas. Fundamentado na maiêutica, Ulisses guia-se por um dos princípios socráticos: desconstruir as verdades (pré)concebidas e, desse ponto, buscar conhecer-se, para depois conhecer o mundo e situar-se nele conscientemente. Assim Lóri avança na sua formação, sendo interpelada e buscando respostas, expressas nas réplicas ao seu interlocutor, ou indagando-se nos solilóquios. Tanto o primeiro quanto o segundo processos deságuam no diálogo do limiar, fenômeno que, conforme Mikhail Bakhtin⁸, culmina com a crise existencial, momento em que o indivíduo conhece as possibilidades de ser e de agir e tem que decidir que caminho ou que orientação elegerá para a sua vida. O diálogo no limiar representa a zona crucial, de fronteira: tanto a personagem pode não ter coragem de mudar sua vida, quanto pode reconhecer que é preciso renascer, dar vazão ao ser que a sociedade reprimiu.

    Mediante estudo percuciente do texto, Jeronimo expõe ao leitor que forma e conteúdo trabalham em consonância em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Se a primeira organiza a ossatura do relato para dar ensejo ao gênero Bildungsroman, o segundo exibe-se concernente ao tema da busca identitária, adequando-se à perfeição à estrutura narrativa, prenhe em diálogos e solilóquios. A análise desses recursos discursivos e dos traços estéticos neles inscritos apresenta um novo olhar a essa obra de Clarice Lispector. A escolha de um escritor canônico, que poderia ser uma tarefa temerária à possibilidade de oferecer uma contribuição relevante à academia, resulta num estudo instigante, que tem provado ser merecedor da atenção do leitor desde a defesa do mestrado, sendo pouco depois escolhido por uma abalizada comissão julgadora como a melhor dissertação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie no ano de 2018, para concorrer ao prêmio ANPOLL de teses e dissertações desse mesmo ano, tendo ficado entre os finalistas. Agora, em suporte livro, esse trabalho chega às suas mãos. Convido-o a conhecer este estudo consistente, revelador de outras faces de Clarice Lispector. Boa leitura!

    INTRODUÇÃO

    Acharam por bem dar-me uma caneta de ouro. Sempre escrevi com lápis-tinta ou, é claro, à máquina. [...] com caneta de ouro eu cairia no problema do Rei Midas, e tudo o que ela escrevesse teria a rigidez faiscante e implacável do ouro? [...] contanto que a caneta escreva, qualquer uma serve.

    Clarice Lispector, A descoberta do mundo

    as palavras também têm caminhos por dentro, há que percorrê-los.

    Valter Hugo Mãe, O apocalipse dos trabalhadores

    Clarice Lispector é a autora que em todo seu processo criativo permitiu que estudiosos estabelecessem novos conceitos referentes à linguagem literária. Se comparada à figura mítica de Midas, o rei dotado do poder de transformar tudo o que estivesse ao alcance de suas mãos em ouro, a escritura clariciana, com seus desdobramentos inerentes às esferas em que atuou, modificou em amplitude satisfatória o processo criador da produção literária brasileira à sua época, isto é, de 1943, com o surgimento de Perto do coração selvagem, seu primeiro livro, até com seus textos publicados postumamente, 1977, Um sopro de vida, A descoberta do mundo, e tantos outros textos que têm surgido no decorrer de investigações acerca de suas produções.

    Segundo Antonio Candido, a contribuição de Clarice Lispector à literatura nacional, já em sua estreia, vale-se pelo fato de que a escrita inovadora da autora [...] soube transformar em valores as palavras nas quais muitos não vêm mais do que sons ou sinais⁹. Transformação intrínseca nos romances, novelas, contos, entrevistas, crônicas, literatura infantojuvenil, textos inclassificáveis sob a norma vigente de literatura, isto é, em todo o percurso de escrita no qual a produção lispectoriana se firmou. Desta forma, a ficção da autora passeia por diversos gêneros literários e discursivos, modificando-os em novidade de sentidos, valorando-os com significações além de seus paradigmas.

    No conto, no romance, na crônica de Clarice Lispector, o caráter fixo concernente aos gêneros é irrelevante, porque o escrever para a autora brasileira evidencia uma potência renovadora que não se vinca ao protótipo.

    Clarice tinha ciência de que sua escrita era de cunho transformador. Em crônica do Jornal do Brasil, a escritora esclarece:

    Bem sei o que é o chamado verdadeiro romance. No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida. E quando

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