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King Richard: Um Mundo a Preto e Branco
King Richard: Um Mundo a Preto e Branco
King Richard: Um Mundo a Preto e Branco
E-book299 páginas4 horas

King Richard: Um Mundo a Preto e Branco

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Sobre este e-book

O livro que inspirou o filme "King Richard", protagonizado por Will Smith.

A história comovente de um homem que lutou contra todas as probabilidades e conseguiu levar as duas filhas ao Olimpo do ténis mundial.

Richard Williams delineou um plano para as suas filhas ainda antes de qualquer uma delas nascer quando decidiu criar duas jogadoras de ténis profissional. Hoje sabemos que esse plano foi executado na perfeição, mas só agora Williams nos revela a fonte da sua visão e os métodos por si utilizados.
Com total transparência e sem rodeios, Richard Williams fala sobre a pobreza, o racismo e a violência que marcaram a sua infância em Shreveport, e de como a força da sua mãe e a bondade de um estranho lhe salvaram a vida.
Nesta história extraordinária de superação testemunhamos o percurso de um homem que, contra todas as probabilidades e munido de uma determinação inabalável, foi capaz de realizar tudo o que sonhou para si e para a sua família.


Instagram: @kathartika.pt
IdiomaPortuguês
EditoraKathartika
Data de lançamento19 de nov. de 2021
ISBN9789895624911
King Richard: Um Mundo a Preto e Branco

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    King Richard - Richard Williams

    Capítulo 1

    Wimbledon é um lugar especial para mim. É um torneio que as minhas filhas, Venus e Serena, venceram dez vezes em doze anos. Mas naquela tarde chuvosa de sábado, em agosto de 2012, enquanto procurava ansiosamente o camarote da nossa família ao mesmo tempo que Serena jogava a final no Court Central, não conseguia deixar de pensar que podíamos não estar ali.

    Wimbledon é o torneio de ténis mais antigo do mundo, tendo sido realizado pela primeira vez em 1877. Também é o mais imponente dos quatro Grand Slams — que incluem ainda Roland Garros, o Open da Austrália e o Open dos Estados Unidos. É o único que é jogado na relva, a primeira superfície do jogo e a razão pela qual este era originalmente designado por lawn tennis (ténis na relva, literalmente). No entanto, com as doenças terríveis e os problemas nos pés que assolaram Serena no ano anterior, nunca imaginei estar naquele sítio a vê-la disputar o título — talvez pela última vez.

    Durante esses dias negros da sua doença, cheguei a recear que Serena morresse. Não sabia o que pensar nem o que fazer. Os médicos diziam que não podiam excluir essa possibilidade. Ela tinha coágulos sanguíneos no coração, que podiam ser fatais. Depois a esperança foi crescendo, mas quando Serena começou a recuperar, sofreu uma infeção no estômago e teve de colocar um dreno para poder melhorar. E tudo isso aconteceu após duas cirurgias a um pé e a um dedo.

    As minhas filhas sempre foram o centro da minha vida desde que nasceram. Eu estava descontrolado, de tanto sofrimento e medo que sentia. Nunca pensei no ténis durante aqueles dias sombrios. A única coisa que me interessava era que a minha filha sobrevivesse. Quando vemos alguém que amamos mais do que qualquer outra coisa no mundo tão perto da morte, especialmente uma filha, daríamos de bom grado a vida para a salvar. Durante os primeiros encontros do torneio, não conseguia acreditar que estávamos ali. Serena sentia o mesmo. Algumas vezes, antes dos primeiros jogos, ficava um pouco trémula e nervosa, e eu precisava de lhe recordar a força da sua confiança e do seu desejo de ser campeã. Escrevi-lhe um poema.

    Avança para poderes ver

    a luz do dia e saberes

    que consegues vencer o medo,

    a sensação de incapacidade

    e as circunstâncias da vida.

    Quem consegue prevalecer

    torna-se um exemplo vivo

    de poder, força e confiança.

    É tudo uma questão de fé.

    Queria que Serena percebesse que o que estava para trás era fantástico, que o que tinha pela frente seria admirável, mas que naquele momento devia limitar-se a sentir-se feliz por estar viva. Disse-lhe que não pensasse se iria ganhar ou perder.

    — Vais para o court e entras com o pé bom — disse-lhe. — Não o que foi operado. Põe o pé bom à frente. — Ela riu-se.

    Quando Serena venceu as meias-finais fiquei com a certeza de que ela iria conquistar o torneio. Soube que nada poderia travá-la. As outras pessoas não tinham tanta certeza. Estava a percorrer o court, antes de um duelo que se antevia complicado, quando alguém comentou:

    — Existem fortes hipóteses de a sua filha perder o próximo encontro.

    — Não, é impossível. Ela não vai perder — retorqui.

    — Mas é um jogo dificílimo!

    Acenei com a mão para afastar a ideia.

    — Não interessa. É impossível ela perder.

    Percebi que aquele estranho achava que eu me referia ao encontro. Mas não era o caso. Serena não podia perder nada, porque o mero facto de estar viva era, por si só, um milagre. Comparado com isso, tudo o resto era insignificante, imaterial. Quando a vi em dificuldades no terceiro set contra Zheng Jie, no confronto da terceira ronda, gritei para dentro do court:

    — Tem calma, Serena, e vence-a como venceste a tua doença.

    Ela olhou para mim com os olhos a brilhar e acabou por derrotar a sua adversária.

    Na final fechou o primeiro set com tanta facilidade que achei que não havia nada a recear. É raro isso acontecer. Como qualquer pai, estou sempre preocupado. Mesmo ao fim de tantos anos, é-me extremamente difícil ver as minhas filhas a jogar. Mas aquele encontro estava a correr bem. Contudo, no segundo set Serena esmoreceu e começou a cometer erros — pequenos erros como um serviço falhado, uma dupla falta, uma bola para fora. De repente, Radwanska recuperou da desvantagem e igualou o marcador.

    Detesto os dias de chuva, mas aquele deu-me a oportunidade de ir falar com a minha filha. Venus foi comigo. Os balneários eram de acesso restrito e eu não podia lá entrar, pelo que foi Serena quem veio ter connosco. Ficámos os três no átrio, junto à escada de madeira envernizada que dá acesso à varanda na qual o campeão agradece ao público depois de arrecadar o troféu. Era-nos indiferente estarmos rodeados por árbitros e membros da organização, ou que houvesse milhares de fãs lá fora.

    — Joga como se fosse eu a jogar, Serena, e vais derrotá-la — disse Venus à irmã.

    Não há ninguém a cujos conselhos Serena dê mais importância do que aos de Venus. Venus não é só a sua irmã mais velha; é também a sua treinadora-adjunta, quiçá a sua verdadeira treinadora.

    O que Venus queria dizer era: Dá tudo o que tens, confia no teu serviço, tira proveito da tua força, pensa em ti própria como uma vencedora. Deu mais um abraço a Serena e segredou-lhe: Não há nada no mundo que consiga derrotar-te. E afastou-se.

    Fiquei sozinho com Serena. Dentro de mim acreditava que aquela final iria ser o seu maior triunfo. Estava convencido disso.

    — Sabes que és uma campeã e que a vitória está ao teu alcance. Nenhuma outra tenista conseguiu derrotar-te, e não vais ser tu a derrotares-te a ti própria. Neste momento és o símbolo da vida, da tua vida. Sabes que és a melhor. Volta para o court e joga como se quisesses agradecer por tudo o que a vida te deu.

    Serena fitou-me e esboçou o seu sorriso característico.

    — Está bem, pai.

    Abracei-a e ela regressou ao balneário a fim de se preparar para reentrar em campo. Voltei para o camarote e exclamei: Não se preocupem. A Serena vai ganhar facilmente.

    O nosso camarote estava suficientemente próximo do da família de Radwanska para conseguirmos ouvir os incentivos que de lá saíam. Um dos seus familiares comentou:

    — Já viram como ela está a jogar? Roubou um set à Serena. Podemos perfeitamente ganhar isto!

    Creio que algumas das pessoas que estavam no nosso camarote se sentiam um pouco preocupadas. Tentei transmitir-lhes confiança. É a maneira de ser dos Williams, é a minha maneira de ser: aceitar as dificuldades e transformá-las em vantagens, disputar qualquer batalha com os olhos na vitória, lutar sem deixar que ninguém nos defina ou derrote. Já no court, Serena olhou na minha direção e sorriu. Percebi que ela tinha assimilado a mensagem. Pareceu-me até ouvir-lhe os pensamentos: Se consegui vencer a doença, vou conseguir vencer esta oponente.

    E foi o que ela fez. Ganhou o torneio e correu pelas bancadas até chegar ao nosso camarote, onde me abraçou a mim, à mãe e às irmãs. Não consegui suster as lágrimas. Tinha levado uns óculos de sol muito escuros para que, se chorasse, ninguém visse. Foi impossível de disfarçar. Chorei convulsivamente; não apenas por aquela conquista, mas porque Serena sobrevivera à morte e se reerguera. Senti um orgulho enorme porque sabia o quão arduamente ela tinha lutado para viver, para se dar a si própria a oportunidade de continuar a mostrar ao mundo o quão extraordinária era.

    Era isso que me percorria o espírito naquela tarde, tão distante do lugar onde tinha nascido e crescido. Wimbledon, com os seus equipamentos brancos, as suas tradições e o seu elitismo, representava o outro lado do mundo. Mas haveria uma diferença assim tão grande entre aquele local e Shreveport? Vi muitas vezes o público assumir posturas desagradáveis e pouco lógicas. Algumas pessoas diziam-me: Não estou contra a sua filha; estou é a puxar por quem tem menos hipóteses de ganhar. E isso remetia-me para os primeiros jogos, em que ninguém nos apoiava apesar de sermos os que menos hipóteses tinham de vencer.

    Naquela tarde gloriosa não pude impedir-me de refletir sobre a complexidade da vida. Estava eufórico, sentia-me importante, único e jovem, apesar dos meus setenta anos. A minha vida tinha sido tão especial, tão excecional... Por entre os aplausos e os vivas, voltei a sentar-me, consciente de que era um abençoado por ser pai de duas campeãs e por termos chegado tão longe.

    E os meus pensamentos levaram-me de volta a Shreveport, onde tudo começou...

    Capítulo 2

    Naquele dia tempestuoso de 1942, os relâmpagos quase obrigaram Julia Metcalf, na altura com dezanove anos, a parar, quando ia na carroça puxada pela velha mula pela estrada de terra lamacenta. Os raios ziguezagueantes cortavam o céu escuro do Louisiana e o trovão que se seguiu parecia ter aumentado a intensidade da chuva. As dores do parto estavam a tornar-se cada vez mais rápidas, vindas do fundo da sua enorme barriga. Estava completamente encharcada, com as roupas coladas ao corpo. Apressou a mula. Tinha de chegar ao Charity Hospital, a quilómetros de distância. Era o único hospital das redondezas que recebia negros.

    Estalou as rédeas com mais força.

    — Mais depressa, Midnight.

    Ouvira o primeiro trovão longínquo, que prenunciava a vinda de uma tempestade naquele dia frio e escuro de fevereiro, algum tempo antes. Pegara na caixa de cartão onde costumava pôr a roupa que ia apanhando e saíra antes que a trovoada chegasse. Sem aviso, as primeiras dores de parto atravessaram-lhe o corpo. Agarrou-se à corda da roupa para se equilibrar e só a custo não caiu. Foi atingida por uma segunda onda de dor, mas continuou a apanhar a roupa, dobrando cada peça com todo o cuidado antes de a guardar na caixa de cartão.

    Sentiu uma picada forte no estômago. Deixou cair a caixa e ajoelhou-se com um grito lancinante. Quando a contração passou, recuperou a caixa e voltou para dentro da casa velha. Começavam a formar-se poças no chão. Julia estava habituada às fendas do telhado de zinco. Punha sempre panelas e latas por baixo delas para apanhar a água. Mais tarde usava essa água para lavar a roupa ou aquecia-a no fogão para cozinhar ou tomar banho. A água da chuva era bem-vinda naquela casa, porque significava que não seria necessário trazer baldes pesados do poço.

    A sua vida nunca tinha sido fácil. O pai, Harold Metcalf, filho de camponeses, nascera em 1895 em Natchitoches, no Louisiana, a sul de Shreveport. Quando tinha vinte e um anos casara com Julia Thompson, que se havia mudado para Shreveport com os pais em 1914. Tiveram quatro filhos e quatro filhas, entre as quais Julia, que recebera o nome da mãe. Os Metcalf trabalharam arduamente para educar os filhos no poder da oração. Enquanto crentes devotos, depositavam a sua confiança em Deus e acreditavam que Ele satisfaria as suas necessidades. Harold lia a Bíblia todas as noites em voz alta e, ainda criança, Julia adorava subir para o colo do progenitor e ler com ele. Era a preferida do pai, talvez por ver as coisas de uma maneira diferente das outras crianças. Quando os brancos deitaram fogo ao celeiro de Harold, fazendo-o arder completamente, todos gritaram e choraram. Menos Julia. Apenas encolhera os ombros.

    — Porque é que estão todos a chorar? Não podemos fazer nada pelo celeiro. Ardeu e não vai renascer. Temos é de ajudar o pai a construir outro.

    Talvez, pensou Julia ao esquivar-se de um ramo de árvore empurrado pelo vento, tenha sido por isso que fiquei tão calma quando as dores chegaram. Apesar do sobressalto que experienciara quando as águas começaram a correr-lhe por entre as pernas, sentara-se na cadeira de baloiço para ordenar as ideias. Não estava preparada para ter o bebé. Não tinha roupinhas, nem fraldas, nada. Bem, ela não estava pronta, mas o bebé sim. Por isso, sem mais demoras, foi atrelar a mula.

    Ia incentivando o animal a andar mais depressa, sentindo a chuva a fustigá-la, baixando-se para evitar as folhas que esvoaçavam e as partículas de terra dos campos de algodão que eram projetadas pelo ar. Alguns anos antes, depois de ter passado metade da vida a apanhar algodão, o pai decidira passar a trabalhar como camponês. Daí resultara um contrato com um tal de Sr. Richmond para que este lhe emprestasse as suas terras, no qual ficara estabelecido que parte dos proventos seriam utilizados para pagar o direito de Harold se tornar proprietário do terreno. Harold não sabia que estava a fazer um contrato com o diabo. Depois de passar anos e anos a pagar as terras, presumiu que elas já lhe pertenciam por direito próprio e decidiu ir ter com Richmond para lhe pedir a escritura.

    A mulher de Harold ficou aterrorizada. Implorou-lhe que não fizesse tal coisa. Se armares um escândalo por causa disso, amarram-te a uma árvore e arrancam-te a carne das costas à chicotada até morreres.

    A resposta do seu marido, que era um homem orgulhoso, foi: Só quero o que me pertence.

    Harold procurou manter a calma enquanto se dirigia à grande casa de Richmond. Levava na mão uns papéis amarelecidos que comprovavam cada pagamento que fizera e qual o montante. Segundo o contrato, poderia comprar as terras por cento e cinquenta dólares. Os seus registos indicavam que tinha pagado essa soma há já vários anos. Bateu a uma enorme porta branca e uma criada, que veio abrir, pediu-lhe que esperasse na rua.

    Richmond era muito alto — tinha quase dois metros — e o seu cabelo preto apresentava algumas manchas grisalhas. Tinha uns olhos penetrantes, um azul e outro verde, uma cara magra, com as maçãs do rosto salientes, e uma expressão dura. Coxeava, porque a sua perna direita era mais curta do que a esquerda, e usava umas botas com um salto especial para disfarçar. Essas botas davam-lhe pelos joelhos e eram famosas, pois dizia-se que ele as usava para pontapear negros na cabeça.

    — Sr. Richmond — começou Harold num tom educado, mas firme —, gostava de saber quando receberei o título de propriedade da minha terra. Já paguei tudo o que lhe devia.

    Na gargalhada de Richmond não houve ponta de humor. Olhou para Harold nos olhos e acercou a sua cara da dele.

    — Sabes que um preto não pode possuir terras, não sabes?

    Os olhos de Harold encheram-se com lágrimas de raiva e frustração. Ergueu os papéis.

    — Mas eu paguei-lhe…

    Richmond interrompeu-o.

    — Segundo os meus registos, ainda me deves cinquenta dólares. Assim que me pagares o resto, terei todo o gosto em dar-te o tal título de propriedade. Mas agora porta-te bem e volta para o campo. Não queremos cá ressentimentos, pois não?

    — Não, Sr. Richmond.

    — Trabalhas para mim há demasiado tempo para sermos inimigos. Deixei a tua família viver nas minhas terras por uma ninharia, e agora apareces aqui com essa estupidez de que estou em dívida para contigo? Desaparece-me da frente antes que mande chicotear esse teu couro preto até morreres.

    — Está bem, Sr. Richmond. Não queria ofender. Ainda somos amigos, Sr. Richmond?

    Richmond esboçou um sorriso frio e fechou-lhe a porta na cara.

    Harold nunca mais foi o mesmo depois daquele episódio. Quando não estava a trabalhar ou a ler a Bíblia, só falava em ir-se embora. Um homem não pode permitir que o enganem. Não está certo. Não está certo.

    Mas não podia simplesmente abandonar as terras de Richmond sem um plano. A propriedade estava rodeada por uma vedação, e tanto o caminho da frente como o de trás encontravam-se bloqueados por portões. À noite, Richmond fechava-os com uma corrente e um cadeado. Quando a família percebeu que Harold estava decidido, o medo foi-se instalando. E se Richmond descobrisse? E se chamasse o xerife? Mas Harold não queria saber. Todas as noites jurava à mulher:

    — Prefiro morrer a ficar nestas terras.

    — Mas temos aqui uma casa, e tu queres ir embora? É uma loucura.

    — Não temos nada. Nem sequer somos donos de nós próprios. Os brancos é que são os nossos donos. Vou pegar nos nossos filhos e vou sair daqui para fora. Se não quiseres vir connosco, o problema é teu.

    Foi numa noite escura que os Metcalf arrumaram a trouxa para se irem embora. Não havia lua, nem estrelas no céu cuja luminosidade pudesse traí-los. Levaram apenas o que conseguiam transportar e dirigiram-se para o portão das traseiras. O local onde viviam ficava bastante afastado da casa principal, mas a propriedade dos Richmond tinha mais de oito hectares. Qualquer som, por mais pequeno que fosse, assustava-os. Sempre que um cão ladrava pensavam que era por causa deles. Dois negros vestidos de camponeses estavam à sua espera, com uma carroça, do outro lado do portão. Harold e a família enfiaram os seus pertences por um buraco na vedação e os dois homens ajudaram-nos a passar os poucos móveis que possuíam por cima dela. Depois de os arrumarem na carroça, ajudaram as crianças a transpor a cerca. Estas queriam ir em cima da carroça, mas só havia espaço para a mãe.

    Caminharam durante horas a fio por estradas sombrias e desertas. Sobressaltavam-se com qualquer restolhar vindo das árvores. Sabiam que precisavam de se afastar bastante, pois Richmond iria procurá-los assim que descobrisse que tinham fugido, provavelmente mal o dia nascesse. Conseguiram sair do condado na primeira noite e, durante vários dias, andaram de casa em casa, abrigados por outras famílias, até que chegaram a uma comunidade chamada Cedar Grove, onde Harold arranjou uma barraca para se instalarem e também alguns trabalhos...

    — Anda, mula! — gritou Julia por cima do rugido do vento e da chuva, agitando as rédeas com força. Arrancada ao seu sonho, sorriu tristemente e limpou a cara molhada. Devia estar com um aspeto terrível... Toda a vida lhe tinham elogiado a beleza, a pele macia, os olhos brilhantes, a figura elegante. Quem a visse naquele momento, com a sua barriga enorme de grávida, o cabelo emaranhado e ensopado, os dentes cerrados de dor... Mas o que as pessoas diziam que ela tinha de melhor era o seu coração. Talvez fosse. Sempre lhe fora fácil fazer amigos. Recebia muitas atenções, embora reconhecesse que nem todas eram bem intencionadas.

    A mãe avisara-a.

    — Não interessa se és inocente, filha. Muitos homens vão tentar meter-te na cama deles.

    Os relâmpagos tornaram a atravessar o céu e os trovões seguiram-se em ondas sucessivas. A tempestade estava no seu auge. As árvores dobravam-se com a força do vento. A mula relinchava e retesava-se, mas continuava a andar. Havia carros a passar por ela na estrada principal, mas nenhum branco iria parar para a ajudar ou para lhe dar boleia, mesmo que soubessem o quanto estava a sofrer.

    Lamento, filha. Os negros não entram em carros.

    Julia quase gritou quando as dores voltaram. Os intervalos eram cada vez mais pequenos. Já não faltava muito para chegar à cidade. Onde estava o pai do bebé, R.D., agora que precisava dele? Enxugou os olhos com os braços para conseguir ver melhor e esboçou um sorriso amargo. Onde sempre esteve, desaparecido.

    Vira R.D. pela primeira vez junto ao rio, quando ia a caminho de casa com a sua tia Honey. Ele estava a pescar, mas virou-se na sua direção e sorriu com uma expressão maliciosa.

    Julia passou muito perto dele.

    — Bom dia, menina Julia. Como é que está? — gritou-lhe R.D.

    Era bonito, lá disso não havia dúvidas. E dava para perceber que adorava mostrar aqueles seus dentes perfeitos.

    A tia deixou a sua opinião bem clara:

    — Esse R.D. não presta. Acha-se demasiado bom para vergar as costas no campo, como todos nós. Diz que é músico, mas gosta é de andar metido nos bares a beber whisky.

    Curiosamente, aquilo despertou o interesse de Julia.

    — Consta que não vale um chavo a tocar guitarra — continuou a tia — e que não sabe cantar. Não o deixes colocar-te debaixo de olho, catraia. Parece que nem tem um telhado debaixo do qual ficar e que dorme aqui e acolá com todo o tipo de mulheres!

    — Achei-o bonito, tia — comentara Julia. E a conversa tinha ficado por ali.

    Ninguém soube quando ela começou a encontrar-se com R.D. Era jovem e por vezes a paixão sobrepõe-se à razão. Circulavam rumores de que ambos se viam à noite num celeiro, o que deixou de ser segredo quando ela engravidou. O seu pai ficou furioso. Nunca lhe passara pela cabeça que a sua filha preferida pudesse andar a ter relações sexuais às escondidas. Os seus irmãos também ficaram zangados. Quando chegou ao ponto de não aguentar mais discussões, Julia mudou-se para a sua própria casa. A família não lhe facilitou a vida. Mesmo quando a sua barriga já estava enorme, teve de continuar a trabalhar no campo e a cuidar dos filhos de outras pessoas. Não houve caridade para com ela. O pai disse-lhe, categoricamente, que ela tinha de assumir as consequências dos seus atos.

    O vento aumentou repentinamente e atingiu-a como uma bofetada. Julia lutou contra a tempestade, continuando a conduzir a mula, sem saber onde acabava a chuva e começavam as suas lágrimas. Precisava de ajuda. Não ia deixar o seu bebé morrer. A dor distorcia-lhe as feições, mas ela não cessava de instigar Midnight. A dada altura sentiu um grande solavanco e a mula começou a andar mais devagar. Júlia agitou as rédeas com mais força, mas Midnight parou por completo e caiu. Abanou a cabeça de um lado para o outro, um sinal de que algo estava terrivelmente mal, e soltou um grito medonho.

    Julia desceu da carroça. Mesmo sob a chuva forte, conseguiu ver que o solavanco tinha sido causado por um buraco na estrada. A mula pousara a pata de forma errada e partira-a. Não havia nada que Julia pudesse fazer para ajudar o pobre animal; já tinha dores de sobra com as quais lidar. Puxou desesperadamente as rédeas enquanto gritava: "Levanta-te! Por favor, levanta-te! Não posso ficar aqui. Tens de te levantar!"

    Midnight não se mexeu. Julia soube que teria de abandonar ali a mula, de a deixar agonizar sem que pudesse de algum modo acabar com o seu sofrimento. Com o coração apertado, fez-se então ao caminho.

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