Um tempo para não esquecer: A visão da ciência no enfrentamento da pandemia do coronavírus e o futuro da saúde
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Sobre este e-book
"Ao aliar qualidade literária à generosidade de divulgar conhecimentos científicos de forma acessível, o conjunto de artigos reunidos nesta obra testemunham que a medicina pode ser, ao mesmo tempo, arte de cuidar e compromisso com o bem-estar coletivo. Com sua defesa clara e eloquente do recurso às melhores evidências científicas para a definição de políticas públicas capazes de fazer o país superar a grave crise sanitária, social e humanitária causada pela pandemia, a autora nos convida a trilhar caminhos de renovação de um projeto generoso para o futuro da saúde e da sociedade. 'O bem-estar, a educação e a liberdade têm uma interdependência entre si, tal como acontece com a fome, a ignorância e a escravidão'. A citação do médico Rudolph Virschow (1821-1902) bem poderia ser uma epígrafe deste belo livro de Margareth Dalcolmo, a doutora Margareth, como afetuosamente se refere a ela a legião de admiradores que só se ampliou nestes duros tempos de Covid-19." – Nísia Trindade Lima - Presidente da Fiocruz
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Um tempo para não esquecer - Margareth Dalcolmo
1 / O QUE APRENDEMOS
7 de abril de 2020
De pestes e de epidemias o último milênio entende. Bocaccio, no Decameron , rompe com a mítica medieval e descreve, semiologicamente, o flagelo da peste negra que devastava o continente europeu no fim do século XIV.
Com a erradicação da varíola e a quase total erradicação da poliomielite, acesso ao tratamento antiviral para a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (aids) e à vacina para as gripes, um reviver de práticas simples, como afastamento social e medidas rigorosas de higiene, pareceriam pueris diante da tecnologia utilizada na atualidade. Como bem demonstrado no contexto da gripe espanhola, há cem anos, nos vemos, uma vez mais, correndo em busca de solução, diante de um vírus animal que atravessou a barreira da espécie humana e é capaz de se transmitir de uma pessoa a várias outras, exponencialmente.
A pandemia ocasionada pelo vírus Sars-CoV-2, causador da síndrome denominada Covid-19, que atingiu até o momento, em todo o planeta, mais de 1 milhão de pessoas e provocou 200 mil mortes desde seu aparecimento na China, no fim do último ano, é a primeira das epidemias da era digital plena e desnuda o total despreparo do mundo em diversos graus para responder a esse desafio. Já assistimos a guerras on-line. Nunca, porém, a desigualdade e a exclusão, a falta de acesso à água e aos cuidados de saúde se mostraram tão presentes em nossas vidas, compulsoriamente, pelos meios de comunicação.
Aprendemos sobre o patógeno, sua imensa capacidade de transmissão, seu polimorfismo de manifestações clínicas, sua distribuição epidemiológica – com a grande maioria de casos leves e autolimitados –, sua alta letalidade no grupo etário mais idoso e entre pessoas em condições de risco. Aprendemos, com os que nos antecederam na epidemia, que nem é necessário ser inimigo para entrar na mesma guerra, como se vê nos países europeus e em nosso caso, que podíamos ter nos preparado melhor para receber a primeira onda de contágio.
Aprendemos, sobretudo, a olhar números e índices com o cuidado de especialistas, a ouvir os cientistas e as autoridades sanitárias com um misto de perplexidade e confiança, sabendo que por ora não há tratamento medicamentoso efetivo, que os melhores cuidados de terapia intensiva de suporte são ainda a salvação possível para os casos graves, e que, mais que respiradores em Centros de Terapia Intensiva (CTIs), o isolamento social é, até o momento, a arma mais poderosa para conter a disseminação. Considerando o tempo necessário para atingir a proteção imunológica da população e a criação de uma vacina, estamos em busca de um tratamento eficaz no mundo real, comprovado cientificamente pelas melhores práticas de pesquisa para ser aplicado em todos.
Assim como Saramago, não acredito em soluções fáceis nem em receitas para um mundo melhor que não incluam nossos deveres para com os outros. Na ciência, a não ser aquelas ocasionais descobertas ao acaso que depois se comprovam úteis e até revolucionárias, cujo exemplo maior talvez seja o de Fleming e Pryce ao descobrirem que o fungo penicillium¹ seria um grande bactericida, toda descoberta exige comprovação sob rigorosos preceitos éticos. Um dos grandes poetas do século XX, o irlandês W.B. Yeats nos diz que cada um deveria fazer para si uma máscara e usá-la, e tornar-se o que a máscara representa. De par com o isolamento social, nunca o uso de uma arma tão singela, que, a rigor, esconderia rostos, revelou tantos olhares, de angústia e de solidariedade, a nos amalgamar confiantes num novo desenho de relações, num futuro mais generoso e diferente desse distante dezembro de 2019.
1/ Alexander Fleming (1881-1955), médico escocês, e Merlin Pryce (1902-1976), médico e professor galês, ao descobrirem as propriedades do fungo penicillium permitiram que a substância adquirida – a penicilina – se tornasse o primeiro antibiótico do mundo e o que seria mais usado, por sua eficácia, no tratamento de infecções provocadas por bactérias, como tuberculose, pneumonia e meningite, consideradas graves ou fatais à época.
2 / APOCALIPSE É ESPERANÇA
14 de abril de 2020
São inéditos a velocidade de progressão da pandemia pela Covid- 1 9 e o número de verdades e inverdades que surgem e desvaecem à luz das ainda escassas comprovações científicas, quer sobre os testes ditos padrão-ouro
², fármacos que possam se mostrar verdadeiramente úteis em seu tratamento, quer sobre a duração da imunidade conferida. Nesse cenário tão novo, consola o grande número de pessoas já curadas da infecção. No entanto, esse equilíbrio instável entre epidemiologia e estrutura de serviços para responder ao quadro pandêmico pendula entre o tamanho do desafio e a coordenação da resposta. No Brasil, a operação dos hospitais de campanha, em construção em diversas cidades, pode ter impacto na morbidade e na mortalidade, se a eles forem assegurados recursos humanos qualificados e suficientes, e pode salvar vidas.
O grande pensador e poeta Paul Valéry nos alertou, premonitoriamente, no entreguerras: Civilizações, não se esqueçam de que são mortais.
Esta pandemia, que seguramente não será a última, vem nos lembrar, peremptória, a nossa possibilidade de desaparecer como civilização, abrupta ou lentamente, seja pelo caos, por armas atômicas, pelos danos ao meio ambiente, pela falta de água ou por epidemias.
Conhecendo a desigualdade de nossas grandes cidades, essa doença vai desnudar, em carne viva como nunca antes, a exclusão social e a diferença de acesso aos serviços básicos, desde saneamento, água e moradia até o ápice do sistema, que são as Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Não será apenas um jovem ianomâmi, em sua realidade longínqua, que morrerá atingido pela virose, sem a assistência adequada à sua cultura. Poderão ser jovens moradores de comunidades urbanas e de periferias e suas famílias, em particular os mais velhos. Caberá, mais do que à rede suplementar de saúde, a esse sistema único, o SUS – castigado cronicamente pelo subfinanciamento –, por meio das medidas emergenciais orquestradas, dar a resposta, correndo contra o tempo da disseminação acelerada.
Na falta de testes em larga escala, urge organizar a vigilância epidemiológica dos casos de síndrome respiratória aguda grave e de gripes, inclusive dos óbitos, gerando informação necessária sobre os vetores de expansão da doença e seus números.
Dispensadas estão as metáforas quando o hiper-realismo grita, ululante, como diria Nelson Rodrigues: Nova York, a cidade mais cosmopolita e rica do mundo, ultrapassa os 200 mil casos, enterra alguns milhares de seus cidadãos em cova rasa e se ajoelha diante da tragédia humana inaudita, a superar qualquer narrativa épica grega. Mas irá conseguir achatar a curva de transmissão com o isolamento social.
Nesta Páscoa tão insólita, contrita, mais que nunca carregada de seu sentido de travessia e libertação, nós nos vemos em meio à angústia, com mais perguntas do que respostas, e muitas dúvidas. É restauradora a visão de peixes e patos de volta aos canais de Veneza, bem como ouvir a homilia do papa Francisco e Andrea Bocelli cantando Amazing dreams
numa catedral de Milão deserta. Retroalimenta-nos da velha e teimosa confiança de que podemos prosseguir, capazes de olhar o Apocalipse não como um livro de maldições, mas como ele é: uma leitura de revelação e esperança.
2/ O teste rt-pcr (sigla para o nome Transcrição Reversa Seguida de Reação em Cadeia da Polimerase) é um exemplo de método diagnóstico considerado padrão-ouro
.
3 / O NOVO, SEM PROFECIA
21 de abril de 2020
No momento em que todos, cada um a seu modo e na exigência de seu intelecto, discutem o que seria a nova normalidade após a pandemia do coronavírus, nós nos sentimos assolados por esse desconhecido novo
, pelo desafio ainda longe de solução, pelo excesso de informação, por vezes tóxica, e observamos as inquietudes sobre como será o nosso futuro – a nossa vida, o cotidiano. Em meio a tantas incertezas diante do inesperado, mais que tudo, uma certeza: o homem, sua competitividade, seus padrões de consumo e dogmas precisarão encontrar uma relação de outra qualidade.
Em tal exíguo momento, profissionais de diversas áreas, não apenas os cientistas, pesquisadores e médicos, tiveram que lidar com a perplexidade, e de pronto canalizaram seus melhores esforços na busca incessante de respostas sobre a história natural, a biologia do vírus, a patogenia e os possíveis tratamentos para a nova doença. Agências regulatórias e comitês de ética trabalham em regime de urgência todos os dias da semana, inclusive no Brasil, com o cuidado de, diante da premência e do tamanho da tragédia, minimizar improvisos e medidas sem a necessária sustentação científica para aplicação in anima nobile.³ Até agora ficou claro que obter uma vacina capaz de prover a imunidade de rebanho e prevenir o vírus e suas mutações, que certamente ocorrerão, é o objetivo maior.
Há, entretanto, vidas a salvar agora, e tem sido exaustivamente alertado que a arma mais poderosa ainda é o distanciamento social, ou o fique em casa
, que já deveria ter sido incorporado ao saber popular, com os cuidados que essa medida exige, como acesso a higiene e orientação. Sabe-se que a maior causa da morbidade em pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2, bem como aquelas na epidemia de Mers-CoV, há alguns anos, é a síndrome de liberação de citocinas – ou tempestade imunológica –, resultando em falência respiratória a par de um cortejo de fenômenos com desfechos clínicos graves ou com morte. Nesse sentido, é fundamental evitar que muitas pessoas cheguem a esse ponto, exaurindo a estrutura de saúde, especialmente nesta fase da disseminação em que estamos, e fazer do grande número de curados uma permanente