Imaginação: Reinventando a Cultura
De Marta Porto
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Imaginação - Marta Porto
P.S.¹
O que sobra de imaginação após a catástrofe?
Que sonhos ainda podem ser sonhados quando se está cercado por imagens incessantes de fenômenos sobrepostos, encurralados que estamos pela avalanche de gestos, sons, cheiros, ruídos, acusações e oposições – dedos em riste a ameaçar nossa pequena margem de autoralidade em um tempo sem autores?
Paradoxo dos nossos tempos, é no hiato entre o sismo e o soterramento (entre o barulho e a estática) que se revelam quais significados ainda valem a pena ser vividos, reinventados, rompidos, transpostos.
É no fragmento de tempo desse hiato que este texto se constrói, desenvolvido livremente como ideias-manifesto do que ainda pode valer a pena ser salvo em um mundo que caminha para a anomia e a distopia.
Declaração 1: a avalanche é o descuido
do tempo da palavra
A poesia e a literatura salvam. Não qualquer poesia, mas aquela que provoca o silêncio, ou o conter da respiração antes do ar voltar a sair. A palavra-metáfora que vai lá e soca a infinidade de certezas, de pequenas mesquinhezas e clichês do cotidiano. Você pode aprender com ela, concordar com ela, discordar dela, rejeitá-la, defendê-la. Mas ela está ali, presente, a esticar o tempo um pouco mais, a nos fazer sentir que onde temos razão, flores não podem crescer
, como nos lembra o poeta israelense Yehuda Amichai.
A poesia cura. Deveria ser obrigatório toda criança declamar poesia, ler em voz alta textos de literatura dos mais diferentes gêneros, mesmo os incompreensíveis, os de difícil acesso, não importa. Eles estão ali, presentes. Desnudando a vida, tornando a palavra carne e matéria. Sugerindo nuances onde há certezas, e sons e silêncios onde há ruído e peso. A avalanche é o descuido do tempo da palavra. Há que se recuperá-la.
Declaração 2: estanque o ruído, estenda o tapete e convide para entrar em Nutopia
Se toda a ordem presente na realidade é fruto da imaginação que venceu, imaginar deveria ser uma dimensão da vida levada a sério. Imaginar o que pode ser e o que não é. O que e como poderia ser. O princípio gerador de toda criação e de toda destruição é a imaginação. Boas ideias deveriam superar ideias ruins. O mundo está cheio de ideias ruins e de pessoas capazes de defendê-las. Estranho viver assim, sem que ao menos uma disputa leal e franca se dê nas arenas das insanidades. Cápsulas de imaginação deveriam ser incentivadas em todas as ações de arte, nas ciências, nas escolas, nos templos, onde houver qualquer dimensão que trate da subjetividade humana. Esta seria a avalanche das utopias, capaz de criar uma onda de novas ideias que, de forma livre e desmedida, invente um novo ciclo de desenvolvimento, não mais só tecnológico, mas de pensamentos e criações livres, em que natureza, harmonia, verdade e justiça estejam no centro das pesquisas e dos avanços de uma nova forma de fazer ciência. Aquela que salva os homens deles mesmos.
Pense bem! Todos os modelos de governança política, econômica, social, cultural e tecnológica parecem ter fracassado. Milhões protestam nas ruas, milhões caminham todos os dias atravessando fronteiras de territórios hostis para salvar seus destinos e seus filhos da fome e da guerra. As formas de representação eleitoral, as embaixadas e a ONU (Organização das Nações Unidas), a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e os órgãos de regulação estão aí para manter certos mitos intactos. Mitos que sugerem que viveremos condenados à miséria e à fome de muitos e à opulência de poucos, às guerras de todos os tipos, ao esgotamento dos recursos da natureza, aos muros, à seca real e simbólica. Inventamos esse modo de vida. Inventamos esse Sistema, inventamos os mitos que o sustentam. Podemos nos dar como tarefa urgente imaginar outras formas de ser e de estar, de produzir e de compartilhar, de pensar fronteiras e de conviver entre nós e com a natureza, a única realidade palpável com a qual contamos. Como convite a essa empreitada poética que assegura que nos manteremos vivos diante do esgotamento, lembro da declaração de Yoko Ono e John Lennon em 1973, no álbum Mind Games, a respeito de Nutopia – um país conceitual que nos convidava para render-se à paz, e não lutar pela paz
². O casal criou uma embaixada e convocou seus amigos, fãs e todos que quisessem para serem embaixadores desse país utópico.
Uma declaração singela, na qual reside uma possibilidade: a mudança chega quando colocamos o tapete em frente a porta, escrevemos Nutopia e convidamos os outros a se sentarem conosco à mesa e a comerem a nossa comida. A placa no portão de Yoko-Lennon nos lembra que viver de acordo com suas próprias crenças exige mais do que os ruídos das redes sociais em que se compartilham ad nauseum fatos escolhidos por outros para virarem notícias em atos destituídos de valor além de alimentar a dissociação e a repetição. Exige inventar o ethos, criar as notícias, afastar o medo e assumir o NOVO como compromisso verdadeiro, transitório, efêmero, mas necessário. A posição de eternos comentaristas de pautas priorizadas por um sistema doente que se retroalimenta da fofoca e da reatividade que leva à anomia. Imaginar é romper criativamente com essa agenda, é abrir espaço para o humor e o silêncio, para a contemplação e o envolvimento verdadeiro com o nosso tempo, a nossa história e os nossos desafios. Não há espaço para a futilidade, mas sim para a leveza, tal como Italo Calvino nos ensina se valendo do mito de Perseu:
Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho. Sou tentado a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo.³
Essa condição de poeta
, de alçar voo em direção ao desconhecido, de abrir o nosso terceiro olho
, como propõe Amós Oz, é uma declaração de retorno a uma espiritualidade não religiosa, livre de dogmatismos estéreis, das crenças em tendências
e ideologias que ensurdecem e poluem a vida imaginária, a vida próxima da consciência mágica⁴ que encontramos em todas as épocas como rastros simbólicos do espírito de cada época. A nossa, do aqui e agora, é de reinvenção, de criar novos mitos, de estancar por alguns momentos o balbucio histérico dos bytes e terabytes, de estender o tapete e fazer o convite: Venha, ingresse na Nutopia!
.
Declaração 3: a alegria ainda
é a prova dos nove
Oswald, Oswald, Oswald. Ah, Oswald de Andrade… O que sobra quando o sismo prenuncia a avalanche e a avalanche prenuncia a queda? No hiato, tem o abraço. Pele com pele, cheiro, suor, saliva, antropofagicamente misturados no ato da despedida. Toda a solidão real ou simbólica deve ser rejeitada, a morte já é a solidão eterna. A vida é paixão, abraço, som e fúria. Entre a vida e a morte, é a pele que resiste. Não há avatar na hora da