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Diário da catástrofe brasileira: Ano I – O inimaginável foi eleito
Diário da catástrofe brasileira: Ano I – O inimaginável foi eleito
Diário da catástrofe brasileira: Ano I – O inimaginável foi eleito
E-book430 páginas5 horas

Diário da catástrofe brasileira: Ano I – O inimaginável foi eleito

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Sobre este e-book

Ainda na noite de 28 de outubro de 2018 — quando 57 mihões, 796 mil e 986 brasileiros fizeram o inimaginável e depositara na urna o voto em um candidato que não tinha nenhum programa de governo organizado, havia feito declarações racistas, machistas e homofóbicas e elogiara abertamente torturadores e a ditadura militar —, o escritor Ricardo Lísias começou este Diário da catástrofe brasileira, que, obsessivamente, não largou até hoje.
Pouco mais de um ano depois, a polícia tornou-se ainda mais violenta, casos de censura voltaram às artes, o Brasil virou motivo de piada no mundo, o desmatamento atingiu índices mais do que alarmantes, centenas de agrotó­xicos foram liberados para uso, a população é estimulada a não acreditar em dados científicos, a agressão à imprensa por parte do governo é corriqueira e a economia, vejam só, continua em crise.
O leitor encontrará aqui uma análise reveladora do material de campanha que circulou ainda antes de 2018 e que até agora não foi bem avaliado. Da mesma maneira, tanto a Operação Lava Jato quanto seu principal condutor, o ex-ministro Sérgio Moro, são vistos de forma original e surpreendente. O texto alterna momentos de assombro, outros de indignação, sem perder em nenhum momento a coerência e a necessidade (que ele parece entender como uma obrigação) de achar sentido para o sucesso daquele que foi, nas palavras de Lísias, "o pior candidato da história eleitoral brasileira".
Não há nenhuma condescendência: se sobram muitas críticas à imprensa, por exemplo, Lísias avalia seu próprio comportamento, e o de seu meio, ao mesmo tempo em que desenvolve hipóteses sobre arte, sociedade e cultura. As páginas do Diário da catástrofe brasileira se desenvolvem sem que as principais conjunções adversativas sejam usadas. Para o autor, definitivamente, passou da hora do mas, porém, todavia, no entanto e contudo. E este é só um exemplo da originalidade deste livro às vezes assustador, outras, engraçado, e sempre ousado e esclarecedor.
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento13 de jul. de 2020
ISBN9786555870657
Diário da catástrofe brasileira: Ano I – O inimaginável foi eleito

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    Diário da catástrofe brasileira - Ricardo Lísias

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Lísias, Ricardo

    L753d

    Diário da catástrofe brasileira [recurso eletrônico] : ano I : o inimaginável foi eleito / Ricardo Lísias. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Record, 2020.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    ISBN 978-65-5587-065-7 (recurso eletrônico)

    1. Brasil - Política e governo - Séc. XXI. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

    20-64760

    CDD: 320.981

    CDU: 32(81)20

    Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472

    Copyright © Ricardo Lísias, 2020

    Design de capa: Leonardo Iaccarino

    Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

    Direitos exclusivos desta edição reservados pela

    EDITORA RECORD LTDA.

    Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000.

    Produzido no Brasil

    ISBN 978-65-5587-065-7

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    SUMÁRIO

    Apresentação

    A TRANSIÇÃO

    Começa o inimaginável

    PRIMEIRO TRIMESTRE

    A pulsão de morte no poder

    SEGUNDO TRIMESTRE

    Precisamos falar sobre o mal

    TERCEIRO TRIMESTRE

    A Operação Lava Jato é uma série de TV

    ÚLTIMO TRIMESTRE

    Cultura e política, 1969-2019: alguns esquemas

    Agradecimentos

    APRESENTAÇÃO

    1º de janeiro de 2020

    Em 18 de outubro de 2018, a jornalista Patrícia Campos Mello denunciou que a campanha de extrema direita à Presidência da República estava fazendo propaganda maciça por WhatsApp, no geral financiada por empresários. Curioso, e já desconfiado da catástrofe eleitoral que aconteceria dali a dez dias, resolvi olhar alguns grupos de apoiadores no Facebook e no Twitter. Certamente, eles replicavam nesses espaços o mesmo material que trocavam pelo telefone celular. Pasmo, passei a arquivar algumas imagens.

    Àquela altura, eu estava participando ativamente dos inúmeros movimentos que tentavam evitar que o pior candidato da história eleitoral brasileira se tornasse nosso presidente. Cheguei a levar bolo e café a uma praça de Moema, convidando os indecisos para conversar. Alguns conhecidos estavam fazendo isso. No meu caso, só apareceu mendigo. No terceiro dia, dois policiais aceitaram um copinho descartável de café e, rindo, disseram-me para deixar de besteira.

    Esperançoso, dei muito crédito para a negação que dominava os ambientes que frequento. Semanas antes do segundo turno, um evento em uma universidade no interior do Rio Grande do Sul me impressionara. A cidade é um reduto extremista. Se não me engano, o ônibus em que o ex-presidente Lula circulava havia sido baleado naquela região. Caso não tenha sido isso, foi lá que um homem montado a cavalo chicoteou um militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Não duvido que as duas coisas tenham acontecido no mesmo lugar.

    Um professor fez uma leitura brilhante do meu trabalho diante de um auditório formado por estudantes de mestrado e doutorado em Ciências Humanas. A conversa com eles também foi ótima. Antes de me deixar no hotel, fomos tomar um café e o professor me disse que o pior candidato da história eleitoral brasileira jamais seria eleito. Não dá para imaginar um negócio desses, concluiu.

    2 de janeiro

    Comecei este diário na noite de 28 de outubro de 2018, data em que 57 milhões, 796 mil e 986 brasileiros fizeram o inimaginável e depositaram na urna o voto em um candidato que não tinha nenhum programa de governo organizado, havia feito declarações racistas, machistas e homofóbicas, elogiara abertamente torturadores e a ditadura militar e prometera nomear como ministro da Fazenda um homem com experiência no governo de Augusto Pinochet e ideias claras para estrangular a vida da maioria da população. Vale dizer que até agora o mito e seus ministros estão cumprindo, com notável competência, tudo o que prometeram.

    A polícia, desde a eleição, tornou-se mais violenta, casos de censura voltaram às artes, o Brasil virou motivo de piada no mundo, o desmatamento atingiu índices mais do que alarmantes (e por causa dele o presidente brasileiro, que recebeu o voto de 57 milhões, 796 mil e 986 eleitores, e depois seu ministro da Fazenda chamaram a primeira-dama francesa de feia), centenas de agrotóxicos foram liberados para uso, a população é estimulada a não acreditar em dados científicos, a agressão à imprensa por parte do governo é corriqueira e a economia, vejam só, continua em crise. Há alguns meses o mito cancelou uma reunião com o chanceler francês para cortar o pelo e depois fez circular no YouTube sua orgulhosa deselegância. Uma reforma previdenciária vai sacrificar mais ainda as classes baixas da população e o ministro da Educação agride professores constantemente, como faz o seu colega do Meio Ambiente com o próprio meio ambiente. Sergio Moro quer ainda mais gente presa. Quando eu estiver terminando a última revisão deste livro, indagado sobre uma suspeita bastante eloquente de corrupção, o presidente gritará para o jornalista pedir para o pai o recibo que ele deve ter dado à mãe (ou o contrário), depois de dizer que o rapaz (ou outro que também quis saber das movimentações estranhas de um antigo assessor) tem cara de homossexual. A violência contra as comunidades vulneráveis terá aumentado muito. Esse é o resumo bastante defasado da barbaridade em que nos enfiamos.

    Minha primeira intenção com o Diário era analisar as imagens de propaganda da extrema direita que, até hoje, continuo coletando. Depois, vi que elas se encaixavam em um contexto muito mais amplo, cultivado há anos por movimentos que desdenhávamos, ou nem mesmo enxergávamos, apesar de estarem com toda clareza na nossa frente. Não os imaginávamos. Voltei-me para eles tendo como foco muitas vezes a forma como olhávamos. Passamos bastante tempo rindo daqueles que estão agora destruindo a nossa vida. Alguns dias antes da posse do pior candidato da história eleitoral brasileira, percebi que precisava publicar minha reflexão.

    3 de janeiro

    Como acontece com todos os meus leitores, a política brasileira é uma preocupação para mim. Estudos exaustivos, por outro lado, sempre preferi os que lidavam com a geopolítica internacional e com a história contemporânea. Quanto aos filósofos e cientistas políticos, acompanho-os pela imprensa. Eu conhecia poucos livros dessa área, como por exemplo Os sentidos do lulismo e depois O lulismo em crise, de André Singer.¹

    Impressionei-me com a quantidade colossal de equívocos que filósofos e cientistas políticos cometeram durante a campanha presidencial. Foram muitos os que passaram o tempo nos garantindo que o pior candidato da nossa história eleitoral jamais seria eleito. Tenho a impressão, inclusive, de que a profusão de análises desastrosas que espalharam ajudou bastante a criar o ambiente de negação que citei ontem.

    A primeira versão do Diário da catástrofe brasileira foi publicada um pouco antes do Natal de 2018 em uma plataforma de livros digitais oferecida pela Amazon. Naquele momento era a maneira perfeita para o meu propósito. Uma das principais formas de participação no debate público, e portanto no governo, da extrema direita é a desinformação, a falta de sentido das ações, o vai-não-vai e o jogo de encenação e provocação públicas em que seus membros se empenham há décadas. O formato, portanto, deveria me permitir atualizar o conteúdo conforme o desgoverno alterasse a rota. Com isso eu não seria pego no contrapé e minha proposta não se diluiria no caos a que o país se acostumou.

    Dada a sucessão de presepadas ainda na fase de transição, achei que a situação era grave, só que passageira. Eu apenas não sabia se o vice assumiria ou se, não pensei exatamente como, os dois seriam afastados. Também tive esperança de que as contínuas denúncias de corrupção envolvendo a família do mito — sem falar na constrangedora proximidade com milicianos cariocas — colaborariam para isso. Como se pode ver, também errei bastante.

    4 de janeiro

    O que aparece impresso agora, portanto, já foi lido ao menos uma vez por um certo público. Recebi inúmeros retornos. O capítulo A transição tem até hoje seis versões. De lá para cá, publiquei e depois apaguei, por exemplo, as agressões que orientandos de alguns dos professores analisados aqui fizeram contra mim. Acrescentei a gozação a um tradutor que afirmou ter-se tornado reacionário depois de ver Caetano Veloso pelado. Muita coisa foi retirada, já que o governo muda o tempo todo.

    Trechos diferentes do Diário foram apresentados em eventos acadêmicos em cinco universidades, o que me ofereceu também um bom retorno. Além disso, editores de jornais e revistas também leram algumas partes, recusando-se no geral a publicá-las.

    Aqui estão as reflexões que me parecem resistir ao caos como modo de governar. Elas dizem mais respeito ao que nos levou a esse estado e, o que é a mesma coisa, à dificuldade gigantesca de reagir a ele, e menos a eventos passageiros, que figuram apenas como exemplo. O fato é que não há muita diferença em chamar a esposa de Emmanuel Macron de feia e nomear como chanceler uma figura que escreve em uma rede social que suspeita do aquecimento global, já que em Roma, quando ele chegou, estava bastante frio…

    Mantenho, por outro lado, duas restrições a que me impus já na redação dos primeiros manuscritos. Tentarei não usar em nenhum momento, salvo citações de terceiros, conjunções adversativas. Isso exigirá que eu duplique a atenção com o texto. Como estou escrevendo à noite, cansado e no geral irritado com a matéria tratada, isso é importante. Outra justificativa pode ser encontrada tanto nos manuais de linguística quanto em uma deliciosa crônica de Paulo Roberto Pires:

    beneficiando-se da lereia do país polarizado, o intelectual adversativo situa-se num centro imaginário, que ergue como lugar de equilíbrio e razoabilidade. De onde está, afirma ter a clareza que falta aos extremos. Não é raro que, usando a desonestidade como método, conclua que []istas e lulistas são faces da mesma moeda. Não são. Assim como nenhum dos outros candidatos, excetuando talvez o bombeiro doidivanas, pode ser comparado ao capitão em seu desprezo pela legalidade.²

    Também não cito o nome do pior candidato da história eleitoral brasileira, que a propósito terminou eleito por 57 milhões, 796 mil e 986 pessoas. Ele não aparece nem mesmo em citações, quando será substituído por []. A razão é simples: higiene mental.

    5 de janeiro

    Em apenas um caso o nome próprio do ex-capitão aparecerá aqui. Mais do que qualquer discurso, plano político, histórico de realizações, desempenho em debates ou qualquer outro evento eleitoral a que estávamos habituados, foram as imagens que ocuparam um grande destaque nas eleições de 2018. Até agora elas continuam sendo a principal ferramenta de propaganda do neofascismo. Como são muito importantes para a minha argumentação, a única alteração que fiz foi retirar a cor. Com isso, consigo uma redução no valor do livro e atinjo um público maior.

    Todas as imagens foram encontradas na rede mundial de computadores, em sites abertos. Algumas apareciam em grupos de debate, outras, em redes sociais, poucas integravam estudos acadêmicos e matérias jornalísticas. De uma forma ou de outra, estavam ao alcance de qualquer pessoa.

    Estudei o funcionamento da dark web e da deep web. Em momento algum as acessei, por outro lado. Encontrei as imagens desses espaços que cito aqui nos domínios da world wide web.

    Não me vejo na obrigação de fazer notas bibliográficas explicativas. Elas fazem parte da forma com que concebo este livro: um trabalho antifascista em primeiro lugar. Nunca escondi meu lado e acho patéticos os discursos que, por mais que isso seja impossível, clamam por neutralidade. Mesmo a disposição cronológica responde em primeiro lugar a esse empenho. Não pretendo levantar nenhum debate. Estou empenhado no combate.

    6 de janeiro

    A terminologia que utilizo está justificada ao longo do próprio texto, conforme os termos vão surgindo. Quero apenas comentar brevemente o uso de mito, que talvez cause de imediato algum estranhamento. Diversos leitores das versões anteriores me perguntaram se não seria um erro chamar o presidente da República com o mesmo termo usado pelos seus apoiadores. Mais ainda, pela palavra que o notabilizou…

    Concordo que o uso desse termo é delicado. A despolitização tem passado também pelo esvaziamento das palavras. Acho que é preciso, portanto, utilizar as mais fortes. No caso, uso mito por conta de um comentário que Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe fizeram à leitura da questão da mitologia platônica: os mitos, devido ao papel que eles desempenham na educação tradicional, devido ao seu caráter de referente geral na prática habitual dos gregos, levam a más atitudes ou a maus comportamentos éticos e políticos. Os mitos são socialmente nefastos.³

    Um dos efeitos mais danosos da chegada à presidência do pior candidato da história eleitoral brasileira é o desdobramento social de suas declarações necrófilas. Aqui por exemplo uma das tantas manchetes a que nos acostumamos: Morte durante operação é sinal de que policial trabalha, diz [].⁴ Há portanto perfeita correspondência com a definição de Lacoue-Labarthe e Nancy.

    O mito nazista é uma leitura bastante eficaz do nazismo, sobretudo quando os autores colocam, falando da política de Hitler, que a questão que o mito põe é a do mimetismo, na medida em que apenas o mimetismo é capaz de assegurar uma identidade.⁵ A seguinte frase me parece resumir boa parte da propaganda da extrema direita, sobretudo a realizada no Brasil em 2018: "o mito pode se definir como um aparelho de identificação".⁶

    Discordo essencialmente de um dos enunciados do livro: o nazismo é um fenômeno especificamente alemão.⁷ Parece-me óbvio que apenas na Alemanha e só na primeira metade do século XX o regime de Adolf Hitler poderia ter se instalado. Por outro lado, muitas razões me fazem acreditar que variações no final das contas possivelmente tão destrutivas quanto o Terceiro Reich podem ocorrer em outros tempos e lugares. Não me refiro à singularidade absoluta da Shoá, com a qual concordo. Acho que o próprio mimetismo, como formulado pelos dois filósofos, pode gerar nazismo em ocasiões muito diferentes. Aliás, desde o esfacelamento da cristandade um espectro assombrou a Europa, o espectro da imitação. O que significa antes de mais nada: a imitação dos Antigos.⁸ Trump e o mito, a propósito, colocam-se como singulares salvadores do cristianismo…

    7 de janeiro

    Discutirei a questão do nazismo/fascismo adiante. Ela não é apenas um preciosismo terminológico. A civilização corre outra vez sério risco. Parafraseando Žižek, estamos vivendo perigosamente.

    Entramos nos mesmos domínios que, décadas atrás, terminaram levando o mundo à Segunda Guerra Mundial e à Shoá: a pulsão de morte está governando um número muito grande de países. E isso com toda a clareza do que aconteceu no passado recente. Muitos eleitores estão assumindo o desejo de matar e morrer.

    Itália e Portugal, nesse momento, conseguem alguma resistência, precária e muito localizada. Depois de uma manobra arriscada e de tom autoritário, Matteo Salvini foi afastado do poder. Não sabemos até quando. O movimento dos sardinhas, realizado por jovens, irá se notabilizar daqui a alguns dias, oferecendo uma resistência bastante eficaz ao neofascismo. Em Portugal, uma frente ampla conseguiu maioria no congresso e deixou, ao menos por ora, a extrema direita para trás. A propósito, o partido de Viktor Orbán perdeu as eleições municipais em Budapeste, também para uma coalizão de partidos antifascistas. Os ingleses de fato se renderam aos desvarios de Boris Johnson. O Brasil elegeu um presidente que mais se assemelha a um diretor de necrotério. Sobre o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, basta dizer que ele comemora mortes como se estivesse em um campo de futebol.

    São muitos os termos que giram ao redor do campo semântico que nos leva às políticas praticadas por Hitler e Mussolini: fascismo, nazismo, neofascismo, neonazismo, nazifascismo e por aí vai. Todos apresentam particularidades e referem-se a fatos diferentes. Ainda assim, no final das contas, tratam de Estados que trabalham para a morte de grupos definidos no interior de sua própria comunidade.

    Alguns intelectuais mais contemporaneamente chamam o fenômeno de necropolítica. Também estou de acordo. O resultado final é o mesmo. Aqui, portanto, quando o vocabulário se aproximar desse universo semântico e letal, vou utilizar fascismo, simplesmente por ser o termo mais comum. Quando houver necessidade, adotarei outros, com a devida explicação.

    8 de janeiro

    Embora aqui e ali eu tente esboçar algumas possibilidades de resistência, meu objetivo não é encontrar nenhum tipo de saída. Não tenho clareza sobre elas. Receio inclusive que seja tarde demais. Tentarei, por outro lado, propor algumas possibilidades de resistência. Falo de luta.

    É fundamental que paremos de fazer o que os fascistas querem de nós. Esse é um pedido de quem há muito tempo os combate:

    Esforços para negar uma plataforma aos fascistas não emergiram de indivíduos aleatórios, decidindo subitamente que eles discordavam dos fascistas e que, portanto, queriam silenciá-los. Em vez disso, eles surgiram da luta histórica, muitas vezes travada na autodefesa de movimentos de esquerda — judeus, não brancos, muçulmanos, queer, trans e outros — para garantir que os fascistas não crescessem o suficiente para assassiná-los. Esse é um produto de gerações de luta transnacional, não um experimento no campo das ideias.

    Aqui, devo fazer um último esclarecimento: com o Diário da catástrofe brasileira eu não estaria justamente dando atenção demais aos extremistas? Talvez, e isso me causa conflitos.

    Um detalhe me tranquiliza: não dirijo minhas reflexões a essa gente. Eles não vão ler o meu livro. Quero dialogar sobretudo com quem está ao meu lado. Justifico-me no próprio Diário. Não acho que sozinhos somos culpados pelo que aconteceu. Por mais que tenhamos zombado de quem paga um valor mensal para ouvir as obtusidades do Olavo do Carvalho, sem a Operação Lava Jato (uma série de TV, como vou defender daqui a alguns meses) e o corporativismo do Poder Judiciário não estaríamos nessa situação. Do mesmo jeito, ainda que percamos enorme tempo e energia nos agredindo nas redes sociais, se uma teia criminosa de compartilhamento de mentiras não tivesse se estruturado, o presidente brasileiro seria outro. Todos esses fatores nos levaram à catástrofe.

    Enfim, nossa culpa é parcial, ainda que real. Nós que somos tão cultos, que obtivemos nossos títulos acadêmicos e fomos até a periferia prevenir os pobres dos riscos que eles estavam correndo e agora não conseguimos nem nos mexer direito, aqui embaixo de tanto entulho.

    A TRANSIÇÃO

    Começa o inimaginável

    28 de outubro de 2018

    É quase meia-noite.

    Há algumas horas, foi eleito presidente da República o candidato mais nefasto da história eleitoral brasileira. Por razões de espaço é impossível citar a quantidade de ofensas e vulgaridades que ele lançou durante a campanha. É provável que cada um dos brasileiros (inclusive seus eleitores) tenha sido de alguma forma agredido e ameaçado, dos ministros do Supremo Tribunal Federal à população que vive na miséria absoluta. Os grupos vulneráveis sempre foram os preferidos.

    Comecei a escrever por impulso. Fui arrumar a mesa antes de dormir e achei um caderno em branco. Imaginei que teria uma reação diferente. Não sinto nenhum tipo de raiva ou ódio. Ficaram na campanha.

    Por aqui, um bairro tradicionalmente silencioso, não escuto nada. Logo após o anúncio do resultado, ouvi alguns fogos distantes, certamente na região de Moema, um espaço da classe média alta paulistana. Foi parecido com o dia do golpe. Só durou menos.

    Talvez eu esteja calmo pois André Singer e Vladimir Safatle passaram bastante tempo nos tranquilizando: ele não tem a mais remota possibilidade de ser eleito. Não foram os únicos, claro. (Até o ex-presidente Lula, um experiente e pragmático estrategista eleitoral, chegou a afirmar que não havia chance de o resultado ser esse aí.) Lembrei-me deles pois tenho os textos em que afirmam isso bem claros na cabeça.

    Agora, à meia-noite, não tenho nenhum método. Comecei a escrever de repente, ao ver um caderno vazio na mesa antes de dormir. Ele está me trazendo algum bem-estar. Não pretendo abandoná-lo. Para ter essa certeza, preciso de ainda mais planejamento. Vou deixar este diário de fora da minha programação normal de trabalho. Assim, volto aqui logo antes de me deitar. Escreverei quatro páginas por dia. Tenho ainda oito linhas. Sete com essa. É um caderno brochura, escolar e com um desenho infantil na capa. A marca é Jandaia, feito no Brasil, com um logotipo da Fundação Abrinq.

    Boa noite.

    29 de outubro

    Acordei às 6h15. Vim direto para a mesa. Ontem, depois de fechar o caderno, abri o computador. Digitei o fragmento anterior e, pelo que vejo, imprimi duas cópias. Não sei o que fazer com a segunda. Revisei a primeira. Citei, com certo desdém injusto, os enormes erros de análise do Safatle e do Singer, dois intelectuais com quem sempre aprendo muito.

    No tom heroico que às vezes toma conta de sua inteligência, Safatle afirmou o seguinte: [] é como a Marine Le Pen na França, é um candidato feito para nunca ganhar. A função dele não é ganhar. A função dele é outra. A função dele é jogar a pauta do debate à direita e, segundo, é criar uma situação na qual qualquer um que for com ele para o segundo turno ganha.¹⁰ Singer, sempre ameno, deu uma entrevista para a revista piauí em setembro de 2016 afirmando a mesma coisa.¹¹

    Não foram só eles. É provável que a maioria dos meus leitores tenha em algum momento desdenhado das possibilidades eleitorais do ex-capitão. Lembro-me de um café com vários professores da Universidade Federal de São Paulo, onde concluí uma pesquisa de pós-doutorado.¹² Ríamos do último avanço dele nas pesquisas e nos perguntávamos: você conhece alguém que vai votar nesse cara? Não nos lembramos de nenhum nome. Não vai ser eleito nunca.

    Na verdade, conheço algumas pessoas que colaboraram para a catástrofe eleitoral que acabamos de viver. De vez em quando descem comigo no elevador. Chegam a falar bom dia. Não temos amizade. De forma alguma, são capazes de conversar sobre a exposição do Ai Weiwei que acaba de abrir no Ibirapuera. Estou tentando me lembrar de um assunto que lhes interesse. Não consigo.

    Sempre desdenhamos das pessoas que não sabem onde fica o prédio da Bienal de Arte de São Paulo. Não percebemos a tempo o que estávamos fazendo. Ficávamos com uma risadinha garantindo que essa gente tosca não chegaria jamais a lugar nenhum. O desdém nos guiou nos últimos anos.

    Todos rimos das bobagens acachapantes e vulgares do Olavo do Carvalho.

    30 de outubro

    Sinto-me desconfortável com a obrigação cronológica. Já se passaram três semanas desde que o mito foi eleito. (Esse fragmento, portanto, foi colocado depois que os seguintes já estavam prontos.) Não acho razoável listar os estragos da equipe de transição. Vou investir na minha própria agressividade.

    Desde antes da eleição, identifiquei certa falência epistemológica no meio intelectual. Uso essa expressão na falta de outra. Ninguém consegue nos explicar muita coisa. Achei que, depois do resultado, algo novo pudesse aparecer no campo da análise política. De forma nenhuma. Nossos intelectuais de sempre continuaram sendo convidados pelos mesmos espaços para dar as explicações de hábito. Será assim, com um tímido surgimento de novos analistas, ao longo de todo o ano que vem.

    Fiquemos com o Vladimir Safatle. Não se trata mais de uma pessoa em particular, e sim uma espécie de arquétipo, que podemos chamar de safatlismo: uma síndrome que acomete sociedades em estado de ruína.

    Comecei a escrever este diário, que não tem nenhuma obrigação com a cronologia, na mesma noite em que o candidato mais nefasto da história eleitoral brasileira foi levado à presidência por 57 milhões, 796 mil e 986 votos. Nosso professor passou os últimos meses garantindo que a desgraça não aconteceria. Depois, começou a nos explicar a eleição. Aqui um trecho de um de seus esclarecimentos, publicado logo após a catástrofe: Poucos perceberam que a aparente instabilidade [do mito] era operação bem ensaiada. Ela é apenas um exemplo do que significa governar hoje em dia.¹³

    Reivindicar a autocrítica dos outros, como Safatle faz o tempo todo, é confortável. Agora, não estamos mais olhando para trás e vendo os escombros da história. Acabamos debaixo deles. O nome deste diário poderia ser O que fizemos conosco?. Talvez eu adote esse título. Vou decidir na última revisão.

    Hoje, quero deixar clara a noção de safatlismo. Trata-se da mania de explicar tudo, sempre analisando os outros e nunca colocando em questão os próprios equívocos. Quando ocorrem, por mais evidentes e patéticos que sejam, a pessoa simplesmente continua o hábito da explicação, sem jamais anunciar (e muito menos discutir) o erro que cometeu. A linguagem no geral é eloquente, e o tom, heroico.

    31 de outubro

    Na edição de março/abril de 2012 da New Left Review, o historiador T. J. Clark escreveu o seguinte: A direita abandonou os lugares ou as tonalidades que antes lhe permitiam — para vergonha da esquerda — monopolizar a efetiva descrição e crítica da modernidade, graças aos quais conseguia encontrar palavras para falar da proximidade do Nada.¹⁴ Outro equívoco de análise política de um grande intelectual. Safatle não precisa ficar bravo comigo, portanto. Àquela altura, Silvio Berlusconi já ocupava o cargo de primeiro-ministro italiano havia anos…

    Não quero ser injusto. O polêmico ensaio de Clark também acertou bastante: Nos dias que correm, a linguagem política, à esquerda como à direita, participa integralmente da infantilização geral das necessidades e dos propósitos humanos, uma infantilização que se mostrou fundamental para o capitalismo de consumo.¹⁵ Vou observar essa questão adiante, ao tratar dos hábitos culturais do ex-juiz e futuro ministro, o ator Sergio Moro. Agora, interessa-me ressaltar que enquanto havia um vácuo de vivência política plena e prática, nas últimas décadas e no mundo inteiro, a extrema direita estava se preparando para voltar ao poder, e em mais lugares do que nos anos 1930.

    E o que a esquerda fez?

    Ao contrário dos dias seguintes ao segundo turno, agora estou muito irritado. Tenho medo de errar o tom. Se meu inconformismo aumentar, talvez sequer a revisão ajude a evitar certo ressentimento radioativo. Uma dose de agressividade, não quero perder. Por precaução, escoro-me no próprio Clark: é só alguém se atrever a perturbar seu universozinho de textos — propondo novas leituras em um tempo difícil — para que a subcultura cerre fileiras.¹⁶ Enfim, a esquerda estava escrevendo seus textos para depois debatê-los, escondida, nos grupos que criou.

    Não estou me referindo à atividade acadêmica. As universidades não foram controladas pela esquerda. Ela não tomou conta de nada, apenas se perdeu em um imenso espaço teórico sem grande rescaldo para a sociedade e muito menos qualquer preocupação eleitoral. Em alguns países, como o Brasil, seus candidatos amainaram o discurso (e portanto a prática) para serem eleitos.

    Ficamos amenos e inteligentes demais.

    1º de novembro

    Em uma carta de Pier Paolo Pasolini a Italo Calvino, o grande cineasta lamenta o comportamento blasé do outro:

    Torcer para nunca encontrar jovens fascistas é um ultraje, porque deveríamos, ao contrário, fazer de tudo para descobri-los e encontrá-los. Eles não são representantes fatais e predestinados do Mal: não nasceram para ser fascistas. Quando se tornaram adolescentes e capazes de escolher, sabe-se lá por quais razões e necessidades, ninguém, de maneira racista, imprimiu neles a marca de fascistas. É uma forma atroz de desespero e de neurose que impele um jovem a semelhante escolha; e talvez tivesse bastado apenas uma pequena experiência diversa na sua vida, apenas um simples encontro, para que seu destino fosse outro.¹⁷

    Durante o ensino médio, frequentei o Clube de Xadrez São Paulo. Havia um grupo de gente da minha idade e consegui, além de aplacar minha necessidade de jogo, arranjar uma turma. O mais pobre era um rapaz recém-chegado da Bahia com a mãe e duas irmãs. Para participar dos torneios, ele precisava trabalhar como árbitro. Frequentava uma escola técnica e pretendia cursar física na Universidade de São Paulo. Não se interessava por literatura, gostava de discutir política e de vez em quando aparecia com um livro de história e, mais raramente, filosofia. Defendia o Partido dos Trabalhadores com bastante energia. Quando chegou a hora de irmos para a faculdade, o grupo se dispersou. Mudei-me para Campinas, um outro acabou indo para Portugal e a amizade, como o xadrez, continuou pela internet, até desaparecer.

    Encontrei o ex-amigo petista alguns anos depois na USP. Para minha surpresa, ele estava com um livro do Olavo do Carvalho. Corria o ano de 2001. Morri de rir. Não me lembro da reação dele. Trocamos alguns e-mails em que eu o aconselhava, sempre de forma zombeteira, a não ler tanta merda. Recuperei as mensagens agora. Na penúltima, pede para tomarmos um café. No dia marcado, mandei uma mensagem com uma desculpa. Não me sentia com nenhuma disposição para, por mais que tivéssemos sido amigos, conversar com alguém que levava do Carvalho a sério. Ele nunca respondeu. Não tivemos mais nenhum contato.

    Achei o perfil dele no Facebook. É professor universitário em uma faculdade pública e defende ideias ultraliberais. Pelo jeito, não nota

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