Estética e Raça: Ensaios sobre a Literatura Negra
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Sobre este e-book
A obra reúne dezesseis textos de crítica e teoria literárias em que o autor não deixa dúvidas sobre seu engajamento social: "estou casado com a classe trabalhadora negra", e, sobretudo, seu comprometimento com uma crítica literária livre de paternalismos redutores e potencialmente perigosos.
Ao tocar em questões candentes como identidade negra na escrita literária, Azevedo não pretende fazer do conceito o único foco da sua intervenção crítica de modo a incensar autores e obras apenas por tal atributo; pretende, ao contrário, discutir a complexidade da vida social e das lutas cotidianas de sujeitos negros e, a partir daí, examinar como tais questões são tratadas esteticamente por autores negros, de Machado de Assis a Jeferson Tenório, passando por Ralph Ellison e Toni Morrison, por exemplo. E, nessa perspectiva dialética, elabora um pensamento crítico que desvela e combate, ao mesmo tempo, o racismo, como também o pensamento antimarxista que parece prevalecer na crítica cultural desta produção. E isso certamente não é pouco.
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Estética e Raça - Luiz Mauricio Azevedo
Sobre os começos deste livro
Cansado das análises que deixavam sempre a questão racial em segundo plano e da essencialização bovina da representatividade, decidi escrever este livro. Ele reúne textos novos e antigos. Alguma coisa do que será apresentado aqui já apareceu em outros formatos, em publicações como o jornal Correio do Povo, a revista CULT, a revista Nau Literária da Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da revista brasileira de literatura Brasil/Brazil (UFRGS) e da revista Parêntese. Também há produções veiculadas antes no site Literatura RS. O restante é tão original quanto a vida permitiu que fosse.
Pessoalmente me encontro sem condições de fornecer outro caminho que não suponha enfrentamento ideológico, suor e sangue. Portanto, gostaria de poupar os leitores e as leitoras que eventualmente pensam que vão encontrar neste livro um manual de lacração, um guia introdutório para estudos mais profundos sobre negritude; ou uma explicação teórica atenuante para o fato de terem sistematicamente alugado seus empenhos, seus afetos e sua cognição aos guardiões do Capital.
Há muitos lugares em que essas pessoas poderão achar conforto para expiarem suas culpas. Não aqui. Não contem comigo para o cordão dos revisores da meritocracia. Estou casado com a classe trabalhadora negra. E o fato dela não esperar nada de mim não apaga minha dívida. Afinal, foi com sua luta, com seu sangue, com suas mortes prematuras, com seus trabalhos degradantes, com suas sucessivas experiências de humilhação racial, que foi garantida a minha existência até que eu pudesse me tornar, finalmente, sujeito de mim. Essa dívida tenho com eles. E levanto todos os dias para pagá-la, com trabalho intelectual e com o desenvolvimento prático de tudo o que me foi dado. Caminho, portanto, sob os pés dos escravizados. Eles vivem através de mim. E sei que um dia eu viverei através daqueles que se dispuserem a aceitar a beleza profunda da raça à qual pertenço.
Estou disposto a continuar a repetir, até o limite da possibilidade biológica, o que acredito ser o fundamental na literatura: que os que estiveram e estão à frente das decisões podem nos obrigar a aceitar qualquer condição, mas não poderão nos obrigar a aceitar suas histórias, suas explicações, suas mentiras. A teoria que apresento é um modo de dizer que eles podem ter os instrumentos, todas as escolas, todas as universidades, todos os conglomerados midiáticos, todo o capital encarnado em um cartão black infinite, mas nós temos uma alma. E ela não está à venda.
Até agora os críticos literários brasileiros se dedicaram a entender a manifestação do racismo em sua forma literária, quando o que importa é destrui-lo.
Esse adorno,
você teria também em preto?
Uma teoria literária materialista não é coisa nova por aqui, mas, uma teoria literária materialista negra, sem dúvida, é. Basicamente, meu argumento vai na direção de um desejo íntimo de que a literatura não seja transformada em um novo jeito de segurar o chicote
, como tão bem definiu Ronald Augusto. Nos nossos dias, o crescente interesse de grandes grupos editoriais pelo tema alegrou muitos e assustou alguns. As vantagens são mínimas e os prejuízos são máximos. Acreditar no contrário não passa de autoengano. Não se pode destruir o templo e querer depois contemplar a beleza de seus pilares. Há sempre um preço. Gratuito é o rótulo que os eurodescendentes colocam nas coisas que alguém negro pagou para eles usufruírem. Tudo é débito.
Durante muito tempo o estudo da literatura girou em torno da compreensão aristotélica de que a literatura seria aquilo que pode, deve ou parece ser. Excluíam-se, portanto, as possibilidades de namoro entre ficção e verdade. Havia fronteiras. Sem dúvida, o conceito de representação era uma derivação do platonismo mais profundo, que em última medida comandava a noção de produção literária como imitação, rabisco, esforço humano de copiar a realidade com o objetivo de compreendê-la melhor. Não era uma definição de todo descartável. Se não era perfeita, pelo menos nos protegia da arrogância infértil da ilusão realista. Com modelos alternados de interpretação que ora se movimentavam na posição de conferir à literatura supremacia sobre a realidade, ora caíam no abismo da evidência de que palavras não mudam o mundo, a teoria literária sobreviveu bem por séculos. Não é dela a crise que trago aqui. O busílis, para mim, começa na manhã do dia 11 de setembro de 2001, quando aviões sequestrados por terroristas derretem todo aço, todo vidro e todo concreto que refletia de forma ampliada nossa realidade capitalizada. A queda das Torres do World Trade Center, e de todo seu complexo de sete prédios, não apenas alterou a forma como o mundo se relacionava, como também aniquilou a crença de que o realismo pueril da literatura possa fazer diante da brutalidade do real.
Por um lado, a forma literária se esforça para exercer a função controladora do sentimento de esgotamento do projeto capitalista, buscando interferir na produção dos imaginários, na construção de narrativas que expliquem por que a vida das pessoas é ruim como tem sido. Por outro, essa mesma forma-vilã não pode extirpar de si própria o caráter dúbio de sua natureza, e assim incentivar emancipações que poucas artes conseguem elaborar. O conteúdo revolucionário de uma obra literária – de toda boa obra literária – parece anteceder as vontades de seu autor, os interesses das editoras, as tentativas de controle da recepção das histórias, enfim, a tudo o que chamamos hoje de sistema literário.
Como se vê, em minha linha de pensamento o conceito de literatura depende obrigatoriamente de uma tautologia que me joga para a evidência de que o literário é aquilo que constitui literariedade. Sendo, então, um elemento do fenômeno literário, essa presença distintiva não é apenas acessória, ela é o fundamento do artefato de ficção. Ora, não há literatura sem a aceitação de um pacto comunicativo que presuma como literário o texto que eventualmente se apresente a quem lê. Não haveria, portanto, uma substância literária a priori, mas uma virtualidade literária, passível ou não de acontecer.
Nas salas de aula da Educação Básica, preservar o valor da fruição da literaliedade de textos tradicionais encontra frequentemente forte resistência daqueles que acreditam que seriedade é sisudez. Assim, há uma interdição para a circulação da ficção, e uma preferência psicótica pelo que se entende por retidão, em oposição ao usufruto da fantasia. O papel do ensino de literatura, nesses ambientes, passa a ser o de confirmação da importância do domínio da norma culta (também chamada, por eles, de português correto).
Carolina Maria de Jesus aparece aí nesse cenário como a escritora que tinha boas ideias, mas que foi impedida de ter acesso à escolarização e, portanto, não pode ser tomada como exemplo de bom uso de suas possibilidades linguísticas. Pelo contrário, para certos educadores a leitura coletiva de O quarto de despejo serve ao espetáculo de riso dos desvios da norma culta e ao triunfo da gramática normativa – último esconderijo de um tipo de indivíduo de mentalidade fragmentada, que se vê sufocado pelo politicamente correto, pelos cancelamentos, pelos discursos das ativistas, pelo Greenpeace, e pelos vegetarianos – a quem chama constantemente de turma da soja, cada vez mais celebrada como signo daquilo que não pode mais estar lá.
Curiosamente, no Ensino Superior a situação se inverte, e é como se não houvesse nada sagrado. Tudo deve ser permanentemente desmoralizado, desacreditado, reduzido, putrificado, deteriorado, separado em pedaços cada vez menores para dar conta de uma audiência crescentemente mais disposta a obter das cadeiras de um curso de Letras todo tratamento positivo que não têm nas lojas dos shoppings, nas abordagens policiais, nos consultórios dentários, nos bairros, nos condomínios, nas praças e nos cenários em que a vida se produz para além das palavras. Nesse ambiente a literatura de Carolina Maria de Jesus aparece como um salvo-conduto de triunfo. Importa mais o modo como ela se impôs como personalidade literária no mundo dos brancos; importa mais o debate sobre o que Benjamin Moser falou sobre a foto dela com Clarice Lispector; importa mais a negação do trabalho de Audalio Dantas; importa mais que tenha nascido em Minas Gerais.
De toda sorte, em ambos os cenários há uma má vontade com a literatura, e uma deliberada rejeição a tudo que possa significar literatura livre de amarras e esquematismos ideológicos tranquilizadores. Surpreendentemente, contudo, nenhum desses grupos se constrangerá ao gritar aos sete ventos que a literatura não pode ser panfletária ou que a literatura não pode ser instrumento de nada. A literatura, ela mesma, parece ser uma estratégia argumentativa para consumo externo, um