Uma Paciente para Chamar de Minha
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Uma Paciente para Chamar de Minha - Ana Paula Balestre
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES
Ao meu filho e à minha família, que percorrem comigo esta jornada.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à amiga e socióloga Maria Helena Pinto, que me incentivou em tudo a que me propus até então.
A toda equipe da Comunidade Terapêutica Enfance, pela transmissão de uma psiquiatria possível no campo do social e pela contribuição inefável à sociedade.
À minha família, sem exceções, porque nos tornamos quem somos é que podemos abordar essa história como se não fora nossa.
Aos meus pais — sem dúvidas —, porque superamos todas essas coisas, eu os amo.
Às minhas duas irmãs amadas — mulheres admiráveis —, para que compreendam o que não pude fazer de maneira aprimorada.
À minha mãe, que jamais desistiu de crer nas promessas divinas.
Ao companheiro, Francisco, amigo e amado.
Ao meu filho tão amado e admirado, Davi Yehudi, para que saiba de onde veio e jamais se esqueça da força de seus antepassados — seja forte e corajoso!
Porque há esperança para a árvore que, se for cortada, ainda se renovará, e não cessarão os seus renovos. Se envelhecer na terra a sua raiz, e o seu tronco morrer no pó, Ao cheiro das águas brotará, e dará ramos como uma planta.
(Bíblia Sagrada, Jó 14:7-9)
APRESENTAÇÃO
Como alguém diz publicamente que odeia crianças? Eu as odiei por muitos anos, 32 exatamente. Preferiria a morte a uma gravidez. Sempre evitei amizades que tivessem filhos, salvo se fossem perfeitos. Para não gostar de crianças, eu tinha inúmeras razões; todas provindas das próprias crianças. Uma vez fui confrontada por um jovem que me perguntou quando eu teria um filho, e minha resposta pedia que ele rogasse praga em outra pessoa, não em mim. Ele retrucou que não me desejava um câncer, mas um filho. Apressei-me em replicar que seria a mesma coisa. Estupefato, ele finalizou: É isso que você diz para as irmãs da Igreja? Que os filhos delas são como cânceres?
. Nunca minha aversão a crianças havia sido confrontada de tal maneira. As pessoas sempre retrucam com aqueles clichês sobre hora certa
e relógio biológico
, mas agora algo havia realmente me posto para pensar. Eu era a tia da escolinha
, aquela que segura as feras para as mães darem glória a Deus e flertar com os obreiros; algumas, não todas. Eu era muito afeiçoada àquelas crianças, e foi esse o pesar na minha consciência. Naquela noite, refleti muito sobre meus motivos de odiar crianças. Suponho que minha vida pregressa possa explicar. Enquanto eu não compreendi aquela amarra, não pude me desvencilhar dela. Hoje tenho um menino maravilhoso de 11 anos, que não fora um confronto tão visceral, não existiria. Considero esse um bom exemplo do que é a diferença de ser e fazer. Obrigada, Fernando.
Sumário
CAPÍTULO 1
(EU, PSICANALISTA?) 15
CAPÍTULO 2
ARROZ COM OVO, AMOR COM BEIJO 19
CAPÍTULO 3
PERSONA NON GRATA 25
CAPÍTULO 4
FOGO, FEZES E FANTASMAS 31
CAPÍTULO 5
FORA DA CASINHA 41
CAPÍTULO 6
UM DESPERDÍCIO 49
CAPÍTULO 7
TRANSTORNO MISTO DE CONDUTAS E EMOÇÕES 53
CAPÍTULO 8
EM DECADÊNCIA 77
CAPÍTULO 9
MORANDO EM QUALQUER LUGAR 85
CAPÍTULO 10
PESSOA EM FORMAÇÃO 91
CAPÍTULO 11
A PASSAGEM DO HALLEY 101
CAPÍTULO 12
PRESTAÇÃO DE CONTAS 107
CAPÍTULO 13
SOCIEDADE INJUSTA PRODUZ LOUCURA 121
CAPÍTULO 14
O CHEIRO DAS ÁGUAS? 131
REFERÊNCIAS 139
CAPÍTULO 1
(EU, PSICANALISTA?)
Comecei a estudar a psicanálise por sugestão de um amigo médico e empresário, com o qual discutia sobre as possibilidades de uma nova carreira. Ele sugeriu que eu tinha o perfil adequado, portanto deveria considerar a psicanálise como uma terceira opção profissional. À época, eu trabalhava no setor comercial de uma importadora, concomitantemente, prestava serviços na área da minha formação acadêmica, a qual não especifico, para que não incorra na possibilidade de ser interpretada como quem intenciona representar determinada categoria. Essa formação não proporciona muitas oportunidades de trabalho no mercado privado, portanto eu apenas aguardava a convocação de um concurso público, todavia sem a garantia de que essa ocorresse. Eu buscava o que chamamos de plano B
, afinal, o mercado de trabalho é cruelmente competitivo, e não é tarefa fácil encontrar colocação profissional após os 40 anos de idade. Não digo ser impossível, mas, ainda, neste país, não há preferência para os mais experientes; há o oposto, e não é preciso apresentar estudos estatísticos para que se tenha tal conhecimento.
Não julgo ser razoável que um trabalhador com três décadas de serviço ainda precise buscar profissão visando à maior dignidade na vida vetusta, mero fruto da precarização do trabalho e diminuição de renda que nos assola ano após ano, ou pelo menos a maioria dos cidadãos. Foi assim que a psicanálise começou a me desassossegar de forma particularizada, mas não por esses motivos. Um terço do curso era o que eu tinha concluído até então. Ainda lia sobre as fobias, as neuroses, as fases psicossexuais e os mecanismos de defesa. Dedicava muitas horas mergulhada nas obras de Freud — mergulhada talvez seja exagero, boiando seria o termo adequado, ou seja, distante do que, anos à frente, me formaria uma psicanalista. Ao menos, este foi meu plano inicial: tão logo pudesse empreender em um consultório, deixaria em definitivo a vida cltista
e todo arcabouço de direitos trabalhistas que nos prendem a uma vida de tarefas burocráticas e invariavelmente mal remuneradas. Mas por que a psicanálise? Uma das grandes vantagens, a meu ver, é a de não se tratar de uma formação universitária, as que mais se empenham em encaixilhar a vida humana em conjuntos sistêmicos de hipóteses e interpretações niilistas. Acredito ter vivido situações tão diversas e singulares que seria improvável que me desse por satisfeita especificando a vida humana com chavões técnicos. Como eu imaginaria que uma mera opção de trabalho traria à tona as lembranças que decidi aqui compartilhar apenas como mais uma vida humana, que, sendo boa ou ruim, é a vida que existe e a que deve ser vivida.
As pessoas normalmente guardam álbuns de fotografias reveladas no auge de suas alegrias. Eu não! Cuidei de não trazer recordações da minha infância sequer na memória por longos anos. Foi aos 41 anos de idade e na segurança da vida corriqueira que fui surpreendida por minha irmã. Lá vinha ela com questionamentos, cujas respostas preferia não lembrar. Conversávamos descontraidamente como em todos os demais dias, porém, naquele, comentávamos sobre meu novo curso, e as coisas tomaram outro rumo. Paula, uma vez, o pai contou que você ficou no hospício, é verdade?
. E era! A conversa poderia ter se encerrado por ali, e a vida seguiria seu curso. Mas a Mana? Ah! Ela é muito curiosa, é insistente e, como toda boa virginiana, detalhista. Ela continuou. Você nunca mais voltou lá?
Não. Você nunca teve curiosidade? Não procurou na internet? Sabe se ainda funciona? Não tem vontade de ir lá?
Não isso e não aquilo. Para tudo, a minha resposta era não. Eu já havia soterrado aquela história há mais de três décadas. Quanto à psicanálise, eu ainda estava lendo nas obras de Freud a respeito dos mecanismos de defesa que, em termos populares, são alguns acordos psíquicos realizados por seu cérebro para você não enlouquecer de uma só vez, mas nunca li sobre mecanismos que suprimam a curiosidade. Com a provocação da minha irmã, pus-me a realizar uma breve busca na internet, ao passo que não foi possível cumprir a jornada de trabalho naquele dia. Bastou ter encontrado uma única imagem da instituição para que o pranto me tomasse de assalto. Ao chegar em casa, não consegui proferir ao meu marido explicação alguma sobre o que ocorria, só chorava. Não consegui dizer ao meu filho, então com 8 anos, o que estava acontecendo, quem havia morrido, ou melhor, quem havia ressuscitado.
Por que eu fui para aquele lugar? Tal indagação era como um gotejar em meus pensamentos em um tom de voz desconhecido. Na verdade, os porquês
eu sabia de cor e salteado, só não compreendia se aquilo verdadeiramente foi necessário, o que a psicanálise começou a, no mínimo, me auxiliar. Aquele lugar
a que me referi tratava-se da Comunidade Terapêutica Enfance, o primeiro hospital psiquiátrico para crianças no Brasil, ao menos, com a natureza de atuação a que se propuseram. Digamos que, ao invés de simplesmente militar, porque militantes ideológicos é o que mais temos, optaram em agir no sentido prático e objetivo da luta antimanicomial. Talvez por isso, mesmo entre os profissionais da saúde mental, tal trabalho ainda seja pouco difundido, infelizmente. Sou grata por acessar tal conhecimento de forma empírica.
Já havia se passado mais de três décadas da internação. Julgava ter suprimido meus desajustes dentro de mim, mas aquele choro ininteligível trazia mais, o que me empregueia desvendar. Nos postulados de Freud, deparei-me com a cura pela fala
e, assim, evadi-me da estreiteza da rotina diária para me aventurar, ou melhor, nos aventurar em um universo mais amplo da história que me fez chorar.
CAPÍTULO 2
ARROZ COM OVO, AMOR COM BEIJO
Tem pessoas que lembram da infância com uma grande riqueza de detalhes, que são capazes de trazer cheiros, gostos e sons como lembranças vívidas através dos anos. Quão felicidade é lembrar-se daquele cheirinho do talco da avó, do gostinho da bala soft e daquele tão esperado soar do sinal para o recreio na escola. Ah... que doces lembranças! Além dessas, eu me lembro de músicas, muitas mesmo! De todas as minhas memórias, eu sou apegada às musicais. É claro que me recordo da minha história, mas são as músicas que me conduzem a viagens pelo túnel do tempo — e por que não dizer ao túnel das emoções? Tenho por hábito recorrer às canções para organizar os acontecimentos da vida, identificar o ano ou a época dos episódios conforme as paradas de sucesso…
A primeira lembrança que trago é da minha avó, uma senhora da roça que fazia chouriço. Ela atravessava o terreno