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Escravidão contemporânea através das janelas dos Direitos Humanos: análise do crime de trabalho escravo na perspectiva do sistema de proteção internacional
Escravidão contemporânea através das janelas dos Direitos Humanos: análise do crime de trabalho escravo na perspectiva do sistema de proteção internacional
Escravidão contemporânea através das janelas dos Direitos Humanos: análise do crime de trabalho escravo na perspectiva do sistema de proteção internacional
E-book525 páginas5 horas

Escravidão contemporânea através das janelas dos Direitos Humanos: análise do crime de trabalho escravo na perspectiva do sistema de proteção internacional

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A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e seus órgãos vinculados, em 2016, estimaram que no mundo existem mais de quarenta milhões de pessoas submetidas ao trabalho escravo contemporâneo e práticas análogas. O Brasil, por sua vez, sendo a última nação da América do Sul a abolir a escravidão enquanto instituição formal e permitida, abriga cerca de 369 (trezentas e sessenta e nove) mil pessoas submetidas ao trabalho escravo contemporâneo em seu território, conforme índice endossado pela OIT em 2018.
Nesse sentido, o Governo Brasileiro reconheceu a persistência do trabalho escravo em solo nacional frente aos organismos internacionais, adotando medidas para sua coibição. Entretanto, o Estado Brasileiro sofreu represálias perante a Organização dos Estados Americanos e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, ostentando, inclusive, recente condenação por responsabilidade internacional na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em virtude de flagrante omissão em graves denúncias de trabalho escravo. Desse modo, a presente pesquisa tem como tema geral analisar a escravidão contemporânea sob o viés da proteção dos Direitos Humanos. Em delimitação temática, o escopo do estudo constitui-se no trabalho análogo ao de escravo brasileiro, tanto abordando o cenário fático, quanto o entendimento jurídico-penal sobre o problema
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de abr. de 2022
ISBN9786525236254
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    Escravidão contemporânea através das janelas dos Direitos Humanos - Gabriela Di Pasqua Pereira

    PARTE I: ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA E DIREITOS HUMANOS

    A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos.

    Hannah Arendt

    O BRASIL REPOUSA NO BERÇO DA ESCRAVIDÃO. Tanto é, que a história do País e, especialmente, da República Brasileira, por muitas vezes, se confunde com as lembranças do regime escravocrata no gigante da América do Sul, o último a abolir a escravatura do seu território.

    Acontece que, transcorridos mais de cento e trinta anos daquele 13 de maio de 1888, a escravidão ainda persiste em solo brasileiro, mas não se limita a ele. O problema atinge o mundo inteiro, partindo-se do indicador de 45.8 milhões de pessoas sujeitas ao trabalho escravo pelo redor do globo. Tal dado extrai-se do projeto denominado Global Slavery Index, organizado pela Organização não governamental (ONG) Walk Free Foundation,⁶ validado pela OIT⁷ No Brasil, o mesmo índice aponta o número de 369 mil pessoas submetidas ao domínio do homem sobre o homem.⁸

    Ao referido fenômeno, manifestado em diversas formas, concede-se as mais variadas nomenclaturas, como trabalho escravo contemporâneo, trabalho análogo ao de escravo, situação análoga a de escravidão, neoescravidão, escravidão moderna, trabalho escravo contemporâneo e escravidão contemporânea.

    Sublinha-se, nessa altura, que a doutrina majoritária faz ressalvas a utilização dos simples termos escravidão ou trabalho escravo, para se referir a figura delituosa do trabalho escravo contemporâneo, uma vez que a condição de escravo está formalmente abolida, pois ninguém pode ser juridicamente considerado nessa situação.¹⁰

    Assim, deve-se diferenciar a condição de escravo como propriedade, frente às circunstâncias similares de labor exercidas historicamente, praticadas na atualidade. Entretanto, o emprego da expressão em forma reduzida (trabalho escravo ou escravidão), não é dotado de impropriedade, uma vez que representa maior facilidade de entendimento do que o termo moderno.¹¹

    Iniciaram-se as abordagens sobre as novas formas de escravidão, no Brasil, aproximadamente a partir de 1970, quando foram feitas as primeiras denúncias sobre a existência de formas desumanas de exploração de milhares de pessoas, aliciadas, principalmente na região norte do País, com relatos chocantes de maus tratos, atos de violências e homicídios cometidos contra trabalhadores.¹²

    Durante anos, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) denunciou inúmeras fazendas vinculadas a empresas nacionais e multinacionais que exploravam a prática da escravidão em estados como o Piauí, Pará e Mato Grosso do Sul, por meio de relatos prestados por fugitivos de fazendas que procuravam os escritórios da CPT em busca de socorro.¹³ Apesar das inúmeras denúncias, por um longo tempo, o dispêndio empreendido para alertar o Estado sobre as práticas contemporâneas de escravidão no Brasil parecia ser desperdiçado ante à inércia das autoridades.¹⁴

    Foi somente a partir de 1990, o Governo Brasileiro, perante a sociedade brasileira, a comunidade internacional, especialmente organismos como a OIT, assumiu a existência do trabalho escravo no Brasil, tornando-se uma das primeiras nações do mundo a reconhecer a escravidão contemporânea em seu território.¹⁵

    Desde o ano de 1995, até o mês de setembro de 2019, estima-se que mais de cinquenta e quatro mil pessoas foram resgatadas em regime de escravidão contemporânea, junto a fazendas de gado, soja, algodão, café, laranja, batata e cana-de-açúcar, bem como em carvoarias, canteiros de obra, oficinas de costura, bordéis, entre outros ramos de produção brasileiros.¹⁶

    Trata-se de novas formas de escravidão, as quais se diferem das antigas características do trabalho escravo, do ponto de vista legal e econômico, mas as condições desumanas e a extirpação da dignidade do ser humano são em muito semelhantes àquela instituição histórica que transpassou tantos séculos.¹⁷

    Em termos figurativos, Kevin Bales formulou quadro demonstrativo (Figura 1), no qual se podem observar algumas distinções entre a antiga escravidão e suas novas formas:

    Figura 1. Diferenças entre a escravidão antiga e a nova escravidão.¹⁸

    Fonte: Bales.¹⁹

    É de referir que há material bastante didático sobre a temática, emitido por meio de relatórios de inúmeros organismos internacionais de proteção, mas a realidade é exacerbadamente dinâmica e complexa, exigindo revisão de medidas e procedimentos, pois não se pode falar apenas de uma forma de escravidão contemporânea.²⁰

    A realidade, de qualquer modo, é que o trabalho escravo contemporâneo extirpa a dignidade do ser humano, em vários níveis, sendo oportuno fazer alusão ao estado de exceção descrito por Arendt:

    Abolir as cercas da lei entre os homens — como o faz a tirania — significa tirar dos homens os seus direitos e destruir a liberdade como realidade política viva; pois o espaço entre os homens, delimitado pelas leis, é o espaço vital da liberdade. O terror total usa esse velho instrumento da tirania mas, ao mesmo tempo, destrói também o deserto sem cercas e sem lei, deserto da suspeita e do medo que a tirania deixa atrás de si. Esse deserto da tirania certamente já não é o espaço vital da liberdade, mas ainda deixa margem aos movimentos medrosos e cheios de suspeita dos seus habitantes.²¹

    Ademais, ainda de acordo com a autora, a degradação do escravo era algo pior que a morte, pois acarretava considerar o homem como um animal doméstico, ao passo que sequer se atribuía humanidade às pessoas designadas a servir a outras.²²

    Assim sendo, em virtude da persistência dessa grave violação de direitos humanos, neste capítulo de trabalho será analisada a escravidão contemporânea a partir do arsenal normativo-protetivo dos Direitos Humanos, partindo-se de uma perspectiva internacional, perpassando pela OIT e a Convenção sobre a Escravatura da Liga das Nações, até adentrar no sistema interamericano de Direitos Humanos, abordando os emblemáticos Casos José Pereira e Brasil Verde, os quais retratam o cenário do trabalho escravo no Brasil.

    1.1 DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E A PROIBIÇÃO DA ESCRAVATURA

    Imannuel Kant, na sua metafísica dos costumes, construiu o embasamento para o que se reconhece atualmente como dignidade humana, quando diferenciou a natureza do ser racional e das coisas. Nessa linha, Kant expôs que o homem, é, duma maneira geral, todo o ser irracional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.²³

    Com essa noção, Immanuel Kant estabeleceu que, em termos de finalidades, quando determinada coisa pode ser substituída por qualquer outra, ela equivale a um preço, mas na hipótese de algo estar acima de valores, há dignidade. Ademais, refere Kant:

    O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis); aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade.²⁴

    Tendo como norte a noção kantiana de dignidade, assevera-se que àquela fundamenta os direitos humanos, constituindo o âmago dessas garantias de proteção, as quais, tendo como primórdio a dignidade humana, a fazem valer mediante coerção jurídica.²⁵ Nessa perspectiva, endossa-se o conceito de dignidade humana desenvolvido por Sarlet:

    [...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.²⁶

    Após a humanidade erguer-se de uma Segunda Guerra Mundial, marcada pelo cometimento dos maiores crimes e atos representantes de verdadeiros desprezo e ódio à raça humana, tornando-se um período que deixaria ferimentos abertos até os tempos atuais, foi efetivamente compreendido o valor supremo da dignidade humana.²⁷

    Nasceria, a partir daí, uma fase histórica, iniciada com a promulgação da Declaração dos Direitos Humanos²⁸, bem como pela Convenção Internacional sobre a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio²⁹, ambas promulgadas no ano de 1948, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), solidificando o aprofundamento e a internacionalização dos Direitos Humanos.³⁰

    Com essa nova fase que a humanidade veria, celebraram-se dezenas de tratados e convenções internacionais protetivos aos direitos humanos pela ONU, assim como pela OIT, e organismos internacionais regionais. Nessa etapa, não apenas foram reconhecidos direitos de natureza civil, política, econômica e sociais, mas, também, afirmou-se internacionalmente a existência de outras espécies de direitos humanos, como o direito dos povos e os direitos da humanidade.³¹

    Os Direitos Humanos são assim, inerentes à condição humana, sem discriminação de qualquer característica particular de indivíduos ou grupos específicos.³² Essa noção, por sua vez, vem veemente embasada já no artigo 1º da Declaração Universal de Direitos Humanos, que assim pressupõe: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.³³

    Assinala-se que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não tem força jurídica vinculante, pois equivale à natureza de recomendação. Contudo, atualmente, é passível de entendimento que a vigência dos direitos humanos independe de previsão ou normatização no direito interno, já que se trata de direitos exigidos pela própria dignidade inerente ao ser humano.³⁴ Nesse sentido, Comparato diz que

    tecnicamente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem é uma recomendação que a Assembleia Geral das Nações Unidas faz aos seus membros (Carta das Nações Unidas, artigo 10). Nessas condições, costuma-se sustentar que o documento não tem força vinculante. Foi por essa razão, aliás, que a Comissão de Direitos Humanos concebeu-a, originalmente, como uma etapa preliminar à adoção ulterior de um pacto ou tratado internacional sobre o assunto, como lembrado acima. Esse entendimento, porém, peca por excesso de formalismo. Reconhece-se hoje, em toda parte, que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não.³⁵

    De acordo com Ramos (2020), os direitos humanos refletem valores essenciais, os quais podem ser taxados no texto constitucional, ou reconhecidos em diplomas normativos internacionais. A fundamentalidade desses direitos, por seu turno, dependerá se tais garantias foram inseridas no núcleo de direitos protegidos pela ordem constitucional ou tratados, sendo, nesse caso, de natureza formal, ou material, na hipótese de não estarem expressamente reconhecidos, ser indispensável à proteção da dignidade.³⁶

    De todo modo, existem quatro características comuns aos direitos humanos, que podem considerar seus traços distintivos das outras normas, quais sejam, universalidade, essencialidade, superioridade normativa e reciprocidade. Para Ramos "essas quatro ideias tornam os direitos humanos como vetores de uma sociedade humana pautada na igualdade e na ponderação dos interesses de todos (e não somente de alguns)."³⁷

    Por universalidade, entende-se que os direitos humanos são garantidos a qualquer pessoa, sem distinção ou privilégios. Já a essencialidade, a sua vez, pressupõe se tratar de direitos indispensáveis e indisponíveis. Com respeito à superioridade, significa dizer que não são propensos à abolição em prol de outro interesse, bem como tem caráter de preferência em relação a outras normas. Por fim, a reciprocidade sustenta que os direitos humanos possuem o condão de unir a comunidade humana pela titularidade, pertencente a todas e todos, mas, também, a passividade, sendo dever do Estado e da sociedade promover e proteger tais direitos.³⁸

    Nesse ínterim, importante ressaltar a sempre lembrada diferença entre direitos humanos e fundamentais, ao passo que os primeiros são inerentes aos documentos internacionais protecionistas, enquanto os segundos decorrem de uma ordem jurídica interna.³⁹ Contudo, conforme elucidado por Sarlet (2015), não há como afastar o fato de que os direitos fundamentais, a parte da distinção formalista, são direitos humanos em sentido material:

    Em que pese os dois termos (direitos humanos e direitos fundamentais) sejam comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação como determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).⁴⁰

    De outro lado, certos autores elegeram a nomenclatura direitos humanos fundamentais, dentre os quais se destaca Alexandre de Moraes.⁴¹ Em que pese a preferência pela utilização dessa expressão, não se afasta a distinção conceitual existente entre direitos humanos e direitos fundamentais, porquanto pertencem a planos de eficácia distintos,⁴² embora ambos discorram em comum sobre reconhecimento, proteção de valores e reivindicações equivalentes a todos os seres humanos.⁴³

    Desse modo, estabelecida a noção de direitos humanos e dignidade, tranquilamente possível de afirmar que a escravidão e suas formas análogas ocasionam uma ruptura entre essas proteções, uma vez que, presente uma situação de exploração do trabalho escravo, haverá violação de direitos humanos e, consequentemente, da dignidade humana, em níveis extremos, não somente pelo eventual cerceamento do direito de liberdade do indivíduo, mas, principalmente, pela anulação da sua condição de ser humano.⁴⁴

    O Direito Internacional começou a abordar temáticas relativas à proibição da escravidão e do tráfico de pessoas há muito tempo, especialmente a partir do Século XIX. Até mesmo, existem inúmeros diplomas normativos versando sobre escravidão, tendo como ponto de partida os textos no sentido da abolição da prática, que totalizam, entre 1830 e 1890, mais de trezentos documentos.⁴⁵

    Lembra-se, a partir dessa concepção, que o combate ao trabalho escravo no plano internacional foi iniciado com a Declaração Relativa à Abolição Universal do Tráfico de Escravos, no Congresso de Viena, em 1815. Embora o documento não tenha alcançado a efetividade esperada, não há como negar se tratar de um diploma internacional que reconhecia a incompatibilidade da escravidão com a noção, ainda que primária, dos Direitos Humanos.⁴⁶ Muitos anos após, criou-se o organismo internacional da OIT, bem como expediu-se a Convenção sobre a Escravatura de 1926, momentos históricos e importantes, os quais serão abordadas em tópicos específicos deste estudo.

    Nesse senda, versando sobre os normativos de proteção dos Direitos Humanos e a proibição da escravatura, iniciando com os documentos que compõem a Carta Internacional dos Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia-Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, elenca em seu artigo 4º que: Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.⁴⁷ Apesar do documento não ter efeito vinculante, imperioso repisar que os Direitos Humanos são exigíveis independentemente de previsão no direito interno.⁴⁸

    Na sequência, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos⁴⁹, adotado em sessão realizada na pela Assembleia-Geral da ONU, em 16 de dezembro de 1966, no artigo 8.1 estabelece que: Ninguém poderá ser submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, em todos as suas formas, ficam proibidos, enquanto o artigo 8.2 refere que: Ninguém poderá ser submetido à servidão, além de o artigo 8.3, alínea a, sinalizar que: Ninguém poderá ser obrigado a executar trabalhos forçados ou obrigatórios.⁵⁰

    No âmbito do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais⁵¹, também adotado pela Assembleia-Geral da ONU, em 19 de dezembro de 1966, no artigo 6.1, vincula-se aos Estados-Partes reconhecerem: o direito ao trabalho, que compreende o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito, e tomarão medidas apropriadas para salvaguardar esse direito. Na mesma esteira, o artigo 7º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aponta para o direito a condições dignas e justas de trabalho, estabelecendo que:

    Artigo 7º. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente:

    a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores: i) Um salário equitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual valor, sem qualquer distinção; em particular, as mulheres deverão ter a garantia de condições de trabalho não inferiores às dos homens e perceber a mesma remuneração que eles por trabalho igual; ii) Uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade com as disposições do presente Pacto;

    b) À segurança e a higiene no trabalho;

    c) Igual oportunidade para todos de serem promovidos, em seu trabalho, à categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que as de tempo de trabalho e capacidade;

    d) O descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feridos.⁵²

    Adentrando-se nas searas regionais, especificamente no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos (CADH)⁵³, usualmente denominada Pacto de San José da Costa Rica, assinado na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, na cidade de San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, tem lógica voltada à proibição da escravatura e da servidão, consagrada no artigo 6, item 1: Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.

    Na mesma linha, a CADH ratifica a proibição do trabalho forçado em previsão respectiva, a qual é estabelecida no artigo 6.2:

    Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa da liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de que proíbe o cumprimento da dita pena, imposta por juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade nem a capacidade física e intelectual do recluso.⁵⁴

    Sublinha-se que, junto ao artigo 6.3 da CADH, são comportadas as exceções ao trabalho forçado, dentre elas, eventual cumprimento de sentença penal, serviço militar, obrigatório ou em situações de estado de calamidade pública.⁵⁵

    A Convenção Europeia de Direitos do Homem⁵⁶, adotada pelo Conselho da Europa, em 4 de novembro de 1950, no seu artigo 4º, itens 1 e 2, também sustentou a proibição da escravatura, bem como do trabalho forçado, referindo que: Ninguém pode ser mantido em escravidão ou servidão, e Ninguém pode ser constrangido a realizar um trabalho forçado ou obrigatório.⁵⁷

    Por outro lado, a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, também conhecida como Carta de Banjul, aprovada pela Conferência Ministerial da Organização da Unidade Africana, em Banjul, Quênia, e adotada pela Assembleia dos Chefes de Estado e Governo da Organização da Unidade Africana, na cidade de Nairóbi, no Quênia, em 27 de julho de 1981, além de consagrar a proibição da escravidão, a qual é antecedida da afirmação do direito à dignidade e personalidade jurídica, refere a postura proibitiva relacionada a outras práticas análogas:

    Todo indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica. Todas as formas de exploração e de aviltamento do homem, nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e as penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes são proibidos.⁵⁸

    Afora os documentos de proteção universal e regionais destacados, no âmbito do Direito Internacional Humanitário, destaca-se a previsão do Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, datado em 1945, e do Tribunal Militar Internacional de Tóquio, de 19 de janeiro de 1946, ambos estabelecendo a proibição da escravatura e a qualificando como crime contra a humanidade.⁵⁹

    Outrossim, o Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra de 1949, relativo às vítimas de conflitos armados, declara, especificamente no seu artigo 4º, a proibição da escravatura e do tráfico de escravos, em qualquer tempo ou lugar.⁶⁰

    Além disso, a Agenda 2030 da ONU, que trata dos objetivos de desenvolvimento sustentável, no objetivo 8.7, incluiu a erradicação do trabalho forçado, a erradicação da escravidão moderna, do tráfico de pessoas e das piores formas de trabalho infantil.⁶¹

    Embora a abundante gama de documentos internacionais, dedicados à temática da escravidão, é consenso entre a comunidade internacional que a proibição da escravidão e suas formas análogas atingiram status de norma imperativa geral de Direito Internacional, formando o denominado jus cogens.⁶²

    Acerca do tema, Bobbio (2004) elevou à condição de jus cogens pouquíssimos direitos, dentre eles, o direito a não ser escravizado, atingindo uma categoria absoluta e que o posiciona em uma condição transcendente a outros direitos.⁶³ Ainda, com base no mesmo autor, tal condição não é comum a qualquer direito, tratando-se de uma situação de

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