Diante da finitude: um estudo sobre a condição humana e a educação para a morte no pensamento de Sêneca
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Diante da finitude - Marcelo Augusto Pirateli
1. BREVES PONDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO DE SÊNECA
Em suas obras filosóficas, Sêneca não apresenta uma exposição sistemática dos temas filosóficos que procura tratar. Os conceitos doutrinais estoicos e os problemas levantados são abordados por Sêneca por meio de uma argumentação na qual fica evidente que o pensador romano tinha como preocupação provocar ou estimular em seus leitores uma certa disposição interior para que eles mesmos pudessem garantir, dessa forma, uma conduta prática orientada pela doutrina moral estoica.
É preciso destacar que os interlocutores de Sêneca, tanto os de suas obras filosóficas quanto os de suas tragédias, certamente se constituíam de um público pertencente ao mesmo setor social do qual ele fazia parte, isto é, pessoas oriundas da elite econômica e política da Roma Imperial³.
Podemos dizer que Sêneca era um mestre exigente, escolhendo como discípulos aqueles dentre os quais julgava ter a vocação para o caminho da filosofia e, com isso, a possibilidade de agir por meio da prática da virtude, seguindo os conselhos e ensinamentos de um guia ou preceptor competente⁴, a fim de criar as possibilidades de fazer vir à tona todas as potencialidades da alma que estavam ainda em latência⁵.
Uma das intenções de Sêneca ao escrever seus textos filosóficos e literários foi a de proporcionar uma forma de orientação que pudesse possibilitar tanto a seus contemporâneos, quanto aos demais homens dos tempos vindouros, um instrumento de aperfeiçoamento moral fundamentado na filosofia estoica. Dessa forma, aqueles que nele imergissem iriam se engajar em um processo de aperfeiçoamento moral, conseguindo alcançar, desse modo, a possibilidade de enfrentamento e de superação de todos os tormentos e temores próprios da condição humana.
Assim, conseguia-se atingir a tranquilidade da alma, que não é outra coisa que viver de forma plena o ideal de serenidade que marcava o sábio estoico:
Portanto, indagamos como a alma possa sempre se encaminhar num curso equilibrado, seja propícia para si, olhe alegre para sua condição e não interrompa esse contentamento, mas permaneça num estado plácido, sem jamais exaltar-se ou deprimir-se: isso será a tranquilidade (SÊNECA, Sobre a tranquilidade da alma, II,4).
Assim como os estoicos latinos, Sêneca afirmava que os homens que procuravam alcançar a sabedoria carregavam consigo o domínio dos vícios e das paixões⁶ e que, antes de se depararem com a almejada tranquilidade da alma, ainda se encontravam em uma condição na qual o filósofo denominava de proficientes, o que significava que ainda pertenciam a uma condição de imperfeição.
As pessoas às quais Sêneca dedicava suas obras filosóficas geralmente eram figuras que se encontravam nessa condição de proficientes⁷, portanto que não haviam conquistado a condição de sábios. Se analisarmos suas poesias dramáticas, Sêneca procurou utilizar-se das personagens de seus dramas para demonstrar como elas eram exemplos evidentes dessa condição de imperfeitos ou proficientes, estando a meio caminho da direção à sabedoria, o que se evidencia na maneira como esses personagens lidam com suas paixões, tormentos, desejos e temores⁸.
Sêneca apresentava um determinado radicalismo na elaboração de suas obras – fossem elas filosóficas ou literárias –, pois entendia como um debate filosófico qualquer tema a ser tratado. Nos diversos temas abordados em seus escritos, era-lhe extremamente essencial que qualquer produção tivesse sentido somente se o que estava em jogo fosse o aprimoramento moral, o conhecimento da condição humana. Ou seja, a possibilidade de se adquirir uma consciência da própria condição, possibilitando-se ao interlocutor, desse modo, a elevação do espírito⁹.
Desse modo, verifica-se que Sêneca busca exaltar a virtude no intuito de ensinar a seus leitores o caminho que, durante esse processo formativo e perfectivo, os levassem à sabedoria para que, assim, pudessem se contrapor de forma eficaz a tudo aquilo que pudesse comprometer-lhes o aperfeiçoamento moral¹⁰.
Para Sêneca, a filosofia tinha um caráter preceptivo¹¹, pois, por meio de suas advertências e conselhos, possibilitava-se a elevação da consciência moral, sendo propiciada a seus leitores, desse modo, a condição indispensável em direção à sabedoria: o domínio da razão. Senão veja:
Um homem será bom se a sua razão for desenvolvida e justa, e se estiver adequada à plena realização da natureza humana. É a isto que se chama virtude
, nisto consiste o bem moral, que é o único bem próprio do homem. Dado que só a razão dá a perfeição ao homem, também apenas a razão o pode tornar perfeitamente feliz (SÊNECA, Cartas a Lucílio, IX, 76,15-16).
O filósofo destaca a necessidade de seguir os fundamentos doutrinais, os preceitos, as exortações e as consolações do estoicismo para que os proficientes possam aderir ao verdadeiro bem e atingir, consequentemente, a sabedoria e o progresso da alma, superando as falsas convicções arraigadas na alma.
Apesar do caráter especulativo da filosofia, Sêneca apresenta em seus discursos uma maior preocupação com a ascese moral¹². Não apenas na busca da elevação da qualidade ética da vida humana, mas, outrossim, na preocupação com a ascensão da alma para que se atinja a perfeição, pois uma abordagem puramente teórica no campo da filosofia poderia comprometer o propósito ascético.
Assim, uma abordagem mais retórico-literária poderia transmitir uma ética fundamental que deveria ser disponibilizada para o seu público e, com isso, não apenas garantir a transformação ou a mudança de seu estado de ânimo, mas também, consequentemente, a busca por uma conduta moral elevada¹³.
Sêneca nos adverte que não deveria haver uma excessiva preocupação com as figuras de linguagem e com as palavras rebuscadas, mas que o mais importante seria ouvir os filósofos tendo em vista a busca pessoal por uma vida feliz. O significativo de tal experiência seria ouvir os preceitos úteis aplicáveis à vida real e, desse modo, conseguir fazer as palavras se converterem em ações verdadeiras¹⁴.
Sendo assim, em Sêneca resta demonstrado que, para alcançar uma alma virtuosa, não é preciso muita erudição. Ou seja: não podemos perder tempo com o algo não essencial, pois é preciso aprender para a vida e não para a escola¹⁵, destacando-se então a aplicação prática da filosofia¹⁶ como uma disciplina formativa e transformadora da alma das pessoas.
O filósofo nunca deixou de considerar a vida concreta dos homens e suas experiências dentro das relações sociais e políticas. Por isso ele ser considerado um filósofo da condição humana, pois não estava apenas preocupado em conhecer a natureza humana apenas por meio da especulação reflexiva, mas mais do que isso: visava oferecer aos homens de sua época uma orientação concreta para a vida no cotidiano.
Dessa forma, Sêneca apresenta inúmeras meditações sobre as mais variadas problemáticas da vida humana, desde questões relacionadas às obrigações sociais (e.g.: de como lidar com os bens materiais etc.), a como agir diante da alteridade entre as pessoas e também de como lidar e reagir perante a morte.
O pensamento senequiano é marcado pela participação do filósofo na vida pública e por sua preocupação com os problemas de seu tempo. Em seus escritos, demonstra uma clara preocupação com a vida, apontando a necessidade de enfrentar as vicissitudes com disposição, mesmo diante das próprias limitações e fraquezas enquanto ser humano. Concebia a filosofia como uma luta diária contra o mundo e contra si mesmo.
Enquanto filósofo, Sêneca se enxergava como um soldado sempre pronto para uma batalha, o que o levava a considerar a vida uma luta que se estendia a todos os homens. Contudo, a seu ver, talvez nesta batalha os imperfeitos não conseguissem superar os falsos valores impostos pela sociedade, sendo, consequentemente, derrotados¹⁷.
Considerando sua vida pública e privada, Sêneca sempre esteve inserido nos problemas próprios da sociedade em que viveu, não tendo vivido apenas uma meditação puramente especulativa.
Sua obra vai além, pois apresenta suas inquietações sobre os problemas de seu tempo, tendo em vista que ele seguiu uma carreira na qual conheceu a fama, o exílio – devido a relações políticas conflituosas – e o triunfal regresso ao centro do poder de Roma. Por fim, foi obrigado a cometer suicídio para evitar sua execução por ser acusado de participar de uma conspiração para derrubar o imperador de Roma¹⁸.
Em seus escritos encontramos reflexões sobre os mais variados problemas que inquietavam os filósofos, principalmente os temas de caráter ou de cunho ético. Suas reflexões estão pautadas em um quadro teórico cujo caráter se mostra extremamente prático, tendo em vista que buscou em suas análises tratar de questões concretas da natureza e do comportamento humano.
Isso nos possibilita afirmar que a leitura de seus escritos pode ser útil ou tem utilidade prática não somente para os homens na Antiguidade, mas também para os dias de hoje, por sua contribuição para o entendimento da natureza humana e dos valores concernentes à nossa existência.
3 LOHNER, José Eduardo. Introdução. In: SÊNECA. Sobre a ira; sobre a tranquilidade da alma. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014. p. 15.
4 SÊNECA, Cartas a Lucílio, XX, 34,1-2.
5 SEGURADO E CAMPOS, J. A. Introdução. In: SÉNECA. Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p. VIII-IX.
6 SÊNECA, Cartas a Lucílio, XIV, 89,23.
7 SÊNECA, Cartas a Lucílio, III, 29.
8 LOHNER, op. cit., 2014, p.