As memórias de um francês em Ribeirão Preto: Splendeurs et misères de François Cassoulet
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Sobre este e-book
A partir das memórias do protagonista, o romance percorre as contradições sociais dos poderosos coronéis e dos trabalhadores da famosa região da baixada. São muitas contradições na recém fundada cidade. François será uma figura conhecida. Empresária ou testa de ferro? Mas tudo é efêmero. A falência, a doença e a pobreza transformam sua visão de mundo. Ironicamente, o francês desmontará discursos e versões que conferiam honra aos seus feitos. A história dos seus últimos dias, em um banco de praça, é um longo acerto de contas, uma prosa com o seu passado, uma conversa com a solidão, com a inaptidão e com medo da morte. Conversa que todos enfrentamos em algum momento das nossas vidas.
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As memórias de um francês em Ribeirão Preto - Matheus Marques Nunes
CAPÍTULO I
UM SOFISTA EMBRIAGADO E SOLITÁRIO OU O
PRIMEIRO DISCURSO DE UM LOUCO, SEGUNDO
LAUDO DAS AUTORIDADES DA URBE, EM UM BANCO
SUJO NA FAMOSA PRAÇA XV DE NOVEMBRO,
CENÁRIO INICIAL DESTA HISTÓRIA
Ver a nós mesmos como os outros nos veem
.
James Joyce
AS REFLEXÕES INICIAIS DO ANTIGO REI DA NOITE OU APRESENTAÇÃO SUSCINTA, PORÉM, INCOMPLETA, DE UM REFINADO MENDIGO FRANCÊS: FRANCISCO OU FRANÇOIS CASSOULET.
NESTA INTRODUÇÃO, ALÉM DISSO, O ATUAL VAGABUNDO, DESILUDIDO E SOLITÁRIO, FAZ ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FILOSÓFICAS ACERCA DE SUA INFÂNCIA. REVOLTA-SE CONTRA SEU MISERÁVEL DESTINO E URRA CONTRA O SEUS ARDILOSOS INIMIGOS. DESCREVE, CONFUSAMENTE, SOBRE SEUS SOFRIMENTOS E DESILUSÕES. SOFRE AO SER ABANDONADO POR FALSOS AMIGOS. ESBOÇA MUITAS ESCUSAS, NÃO CONVINCENTES, A RESPEITO DE SUAS RESPONSABILIDADES FINANCEIRAS. LAMBE SUAS FERIDAS, EMBRIAGA-SE, CONSTANTEMENTE, NO DECORRER DA SUA LAMURIENTA NARRATIVA. PROFERE MUITAS PALAVRAS COMPLACENTES E DESCULPAS VÃS. FINALMENTE, CONFUSO, INICIA UM PROCESSO PARA A COMPREENSÃO DE SUA DERROCADA FÍSICA E ESPIRITUAL.
Mantenho-me sentado na posição de lótus e recebo os primeiros raios calcinantes de um sol aparentemente matinal. Dor intensa, sensibilidade extrema ou talvez a minha falta de resiliência diante de qualquer incômodo. Sinto um incomensurável sol amarelado no meu rosto macilento e decrépito. Pele ardendo como ferida aberta.
Profundamente contrariado com a vida, recuso-me a abrir minhas embaçadas janelas oculares. Fecho-as, com todas as minhas forças, já não tão abundantes como outrora. Sinto um leve deleite de ditador não contrariado.
Afirmo, num gesto singelo e que ficará sem o devido registro histórico, a minha vontade diante dos medíocres sofrimentos e recuso, por alguns instantes, as banalidades rotineiras que rondam o meu despertar.
Ainda com os teimosos olhos fechados, obstinadamente lacrados para quaisquer novidades desagradáveis, busco meu retrato no espelho de uma vacilante memória que insiste em me trair. Consigo lembrar-me da face, precocemente encarquilhada, do rosto vincado por muitas rugas, finas teias que cobrem o canto do olho, traços de um retrato inacabado, sulcos profundos, infelicidade no canto da boca, tela do franco e indubitável processo da minha decadência moral.
Manhã ensolarada que revela, apesar das minhas recusas absurdas, das preocupações infantis e intempestivas, a decomposição, perceptível e acelerada, do meu aspecto físico.
Seria o reflexo da minha precoce senilidade e amolecimento mental?
O indelével testemunho das minhas inúmeras amarguras amorosas. Último fruto, símbolo da minha ruína financeira e física.
Tantas hipóteses plausíveis, perfeitamente coerentes do ponto de vista clínico e contábil.
Minha meditação matinal, apesar de todos estes fatores que marcam minha degradação corporal e de tantos desvarios que sempre me caracterizaram, foi extremamente profunda.
Sensações tão diferentes no transcurso dos meus breves amores. A ilusão do dinheiro que tão rapidamente se esvaiu. O meu pretenso sucesso nos negócios reprováveis pela boa e hipócrita moral burguesa.
Grande cogumelo após uma temporada de chuvas.
Construí um transitório império de casas noturnas. Mas, qual império de certa perspectiva não foi efêmero? Imaginava possuir um grande exército. Olhava orgulhoso para as tropas importadas de mercenárias sexuais. Escravizadas e conduzidas por um condottiere, olhar vagamente satânico, um mercador de vãs distrações, um fariseu, promotor das paixões mais abjetas, um Fausto, descendente de vis negreiros que dominaram as rotas comerciais do Atlântico Sul por todo o século XIX. Imaginava controlar tudo e não percebia que também era manipulado por forças que não podiam ser compreendidas pelo meu limitado conhecimento.
Sim, porém, tudo isso foi rápido, fugaz e terminou como num breve sopro. Nos outros dias, sombrios e bem mais duradouros, estava desalentado, desacreditado, prostrado, eternamente, no banco de uma praça, como o mais conhecido mendicante repulsivo de toda a região.
A intensidade do calor, na minha face vincada e acinzentada, aumentou. A luz filtrada pelas pálpebras decaídas tornou-se insuportável. Levanto-me, alquebrado, letárgico, procuro, sem desespero, algum refúgio contra o sol escaldante e quase mortal da inóspita cidade.
Em Ribeirão Preto, mesmo o sol matinal é causticante, desintegra as peles mais sensíveis ou mesmo o couro mais resistente.
Aqui o astro é soberbo e absolutista. Possui uma qualidade ácida. Ele é forte e ofuscante até para o bugre ancestral que aqui pisou no passado imemorial.
Você tem praticamente uma estrela de estimação que ocupa todos os lugares da sua vida. Uma luminosidade mimada, uma luz que comportasse como um filho único contrariado, sol prepotente que importuna o ano todo até o mais viril capitão do mato. Cada morador tem o seu próprio disco solar e o forasteiro também é agraciado com uma imensa estrela amarelada.
Recordo-me, que poucos dias após desembarcar, enormes tatuagens vermelhas marcaram, sobretudo, meu pescoço desnudo.
O sol é intenso e onipresente em todas as estações do ano. Parece impor-se até nas sufocantes madrugadas, aprisionado no solo basáltico emanando um sufocante calor e deixando-nos numa eterna modorra.
Porém, nunca me prendi a nenhum determinismo geográfico, no máximo, um pouco influenciado pelas ideias de eugenia e dos higienistas muito em voga a partir da minha juventude.
Sentei-me, então, em outro banco, próximo ao meu habitual retiro, com uma exígua sombra, suficiente apenas para cobrir a região do meu rosto e dar um repouso para minhas pálpebras extremamente cansadas.
Raio de sol, solzinho matreiro, bem na pupila dos meus olhos azulados e nublados. Aproveito para remover uma velha ramela dourada e petrificada no canto do meu olho direito.
Logo percebo, de modo cada vez mais angustiante, que a primeira derrocada da manhã se aproxima na forma de um antigo frequentador dos meus bordéis. O seu olhar me condena antecipadamente enquanto se aproxima com passos marciais de um carrasco com problemas digestivos.
Tenho uma certeza: ele não me estenderá a mão, nesta cidade quem empobrece não recebe mais nenhum aceno. Tenho outra certeza, decorrente da primeira, que serão inúmeras derrotas ainda pela manhã, seguidas por outras vespertinas e, finalmente pela convicção de sucumbir completamente ao anoitecer.
Sim, na madrugada, ao relembrar tudo o que foi destruído pelos meus erros pueris, sei que vou prantear como um grande e velho bebê de bigodes caídos. Olharei depressivamente para o vazio dos meus desejos. Beberei muito, culparei Deus, a sociedade, meus sócios, minhas mulheres, especialmente Fanny, um pouco menos Marie e finalmente aceitarei que o maior responsável por tudo sou eu mesmo. Então beberei ainda mais e saudarei a falta de aptidão que me acompanha a tantas décadas.
Sou um depósito abandonado de relíquias e reminiscências irrelevantes. Lembro-me constantemente da época em que o dinheiro vinha aos montes e isso parecia muitíssimo natural. Lucrar era algo tão inelutável, desejável e definitivo na minha vida como tomar um bom copo de vinho durante as refeições.
Agora minhas quedas e meu aniquilamento são as únicas leis universais que regem minha precária existência decadente. Uma vida foi destroçada levianamente, outra logo passou irrelevante, mesquinha e deu lugar a uma terceira farsa que insiste em se perpetuar durante os últimos meses.
Minha mente, isso segundo o diagnóstico preconceituoso das mais relevantes autoridades médicas da cidade, quase insana, diriam os apressados doutores, começa a divagar em um infinito oceano de loucura e devaneios persecutórios.
Executo a cada manhã minha ousadia final contra meus concidadãos nefastos, hirsutos, maldosos e invejosamente destrutivos.
Após tantas aventuras, de tantos movimentos, especulativos, de tanta extorsão, agora, permaneço parado e ouso, diante da perplexidade daqueles que me conheceram sem me entender, gargalhar diante de suas faces atônitas de pacatos burgueses transeuntes.
O prazer de receber, complacentemente, os olhares de reprovação de todos os concidadãos que desfilam por entre as alamedas da praça em que atualmente vivo minhas horas de tédio e desolação.
Algumas horas depois da minha meditação rotineira, começo a mexer os amolecidos membros. Lentamente, vou lagarteando, ensimesmado e cabisbaixo.
Meu olhar esgazeado, não revela minhas preocupações existenciais. Matreiro olho azul, cinzento, entristecido pela vida, de um cinismo incompreendido pelos demais concidadãos.
Nos últimos meses tenho os mais lúgubres pensamentos para cada pessoa que observo passar.
No banco da praça que serviu de refúgio, queimo os últimos vestígios dos meus antigos valores, um holocausto para os dissabores diários.
Sou considerado um alienado, diabólico arquiteto de vinganças mirabolantes que sempre são coroadas de êxitos imaginativos e delirantes.
Ironicamente, depois de décadas de agitação e fadiga, do amolecimento cerebral e do desvanecimento de todas as esperanças compensatórias, fico completamente parado, a mais sinistra estátua da praça.
Continuo, por horas, matando cada um dos transeuntes de Ribeirão Preto, apascentando carinhosamente meu orgulho malsão.
Meu olhar matreiro, tornou-se, naquela ensolarada manhã, uma injeção de sarcasmo, uma grande seringa, com uma enorme dose de desprezo, galhardia e ironia.
Meu julgamento também é severo ao avaliar o caminhar provinciano de cada transeunte que cruza meus domínios, reino diminuto, que se reduz a um naco de calçada do jardim público.
Ninguém retribui o meu desprezo de mendicante, nem mesmo por civilidade, permaneço, assim, um miserável e solitário francês marginalizado no imenso cafezal. Todos me ignoram e eu continuo invisível na cidade que assistiu a minha derradeira desdita existencial.
Enfim, quando já não é mais necessário, e isso sempre foi um dos fatores na dinâmica das minhas aventuras, percebo a necessidade daquela ATARAXIA filosófica. A apatia estoica que tanto me faltou quando ainda era um simples girino, uma larva ou um ratinho francês de pelos cinzentos e boca torta. A serenidade, não o riso histriônico, a bendita tranquilidade da alma, a espinha ereta e um coração calmo no banco da praça. O grande prêmio do maltrapilho François foi alcançado quando se tornou desnecessário, tão supérfluo como um oboé nas noitadas da Rua do Sapo.
Fracassei miseravelmente na busca por um caminho sábio e tranquilo. Desisti no primeiro obstáculo em procurar meu próprio caminho. Nunca descobri quem sou ou quais seriam meus sentimentos mais autênticos. Máscaras miseráveis que não esconderam minha pobreza e fraqueza. Perdia-me, inconstante, entre os mais absurdos e obtusos conselhos, dados por pessoas que nunca ocultaram a condição de inimigos mais ignaros e constantes que já existiram na face do sertão do Anhanguera.
O aspirante a burguês que deixou o velho mundo numa destas vastas e impalpáveis esperanças, tantas vezes se precipitou em direção ao mais desprezível ato por lhe faltar uma gotícula de sabedoria.
Hoje, ao menos não prejudico mais ninguém, ou melhor, tenho a sensação reconfortante de não o fazer propositalmente. Fico só coaxando, ininterruptamente, como num murmúrio de reprovação contido, com meus derradeiros esforços jogados na sarjeta da Rua Bonfim, corrijo, atual Rua General Osório, o militar matador de paraguaios e brasileiros rebelados contra o Império. Como um velho sapo desiludido, em plena decomposição, numa pedra ao sol, incinerando o meio da minha cabeça com esparsos fios, clamo por um pouco mais de sal.
Como um anfíbio, indeciso entre o passado, que nunca me agradou, e o presente, sempre de desespero, sem jamais aproveitar minhas caminhadas e nem me afundar suficientemente nas águas da indiferença. Enfim, um enorme ponto de interrogação do começo ao fim.
Por vezes, poderia dizer que sou chutado como uma lata de lixo na frente de um andarilho raivoso. Gritar, sim, afirmar, sem exageros, como sou desprezado. Demasiadamente melodramático. Sei. Afinal, tudo é mais simples, as pessoas não suportam rever o anfíbio que insiste em viver e relembrá-las, a cada respiração ofegante, dos seus pecadilhos, criminosamente enterrados na poeira dos cafezais que, por sua vez, substituiu o roçado, que anteriormente soterrou as antigas matas e os velhos caminhos dos bugres ancestrais. Ponto final.
Percebo ao meu redor que a cidade desperta e passa ligeira pelo meu ponto de observação.
Tudo era movimento naquela manhã. Entretanto, não tenho certeza, se estou suficientemente sóbrio para fazer tal afirmação. Pareceu-me, em outro momento, que tudo se tornou estagnado aos meus olhos áridos pela água que o passarinho não toma.
Naquele mesmo instante, alucinado, grito um palavrão redentor em alto e bom francês. Já não consigo perceber a realidade na mesma perspectiva anterior. Sinceramente, não sei, já não consigo decifrar o meu presente, muito menos relacioná-lo com o meu passado mais recente, nem com as brumas mais distantes da França da minha infância de solitário menino de aldeia.
Vazio e solidão. Sou um náufrago que se agarra a jangadas, todas inexistentes, ao desespero, desterrado no interior do inóspito continente sul-americano. Meus sonhos, minhas ilusões, tão mesquinhas, tudo foi destruído por pessoas ainda mais insignificantes do que todos os meus desejos!
Tenho que levantar e fazer minha peregrinação em busca de algum consolo metafísico. Quero também encontrar algum pão e uma dose de aguardente para amolecer meus ossos doloridos e reumáticos. No entanto, como poderia caminhar se estou tão confuso e faminto? Além disso, tenho tanto medo dos olhares que acompanham cada um dos meus passos.
Demônios noturnos e diabinhos diurnos, me acompanham com um sorriso amistoso e caritativo. Diuturnamente me emboscando. Atualmente eles ainda me atormentam, nunca foi diferente, sempre fui perseguido, mesmo quando era só um garotinho.
Todas as minhas experiências místicas e todas as alucinações acontecem em plena praça, porém, não é percebida por ninguém ao meu redor. Talvez fosse melhor trocar meu banco, por uma coluna, transformando-me, então, em um novo São Simeão Estilita.
Estranho refletir em como comi e bebi tanto e, paradoxalmente, nunca me senti realmente saciado. Caminhei meio mundo e me sinto tão perdido quanto no início desta jornada infame.
Vi tantas paisagens, somente para ter a certeza de ser um estrangeiro, em qualquer lugar que tenha chegado. Somente o tempo para limpar minhas botas embarreadas. Ilusão que consumiu muitas décadas, como se tudo fosse uma taça de vinho derramada ao final de um banquete. Fiquei tão preocupado em viajar para longe, mas nunca consegui realmente chegar a nenhum destino que acalmasse meus terrores noturnos.
Como a vida pode mudar tanto em tão pouco tempo? Como era mesmo, aquele pensamento? As palavras do antigo professor embriagado que dormitava na mesa cinco? Aquele loirinho, o mais decrepito bêbado do Quartier Latin? Como ele argumentava mesmo?
Sim, lembro-me vagamente de sua voz aguda sobrepondo-se ao vozerio dos desinteressados alunos: Impossível banhar-se no mesmo rio duas vezes.
Como reter o fluxo da nossa existência com essas trêmulas mãos de ancião?
As águas do Ribeirão Preto, do Laureano ou Retiro nunca são as mesmas, assim como eu nunca sou, apesar da minha mania de dizer isso reiteradamente para todos os matutos que encontro nos meus atuais descaminhos.
Sei que nada sei e que deverei me conhecer melhor, entender todas as besteiras que cometi e que me levaram até o meu desolado estado de plena liberdade. A ignorância santa do maltrapilho empresário falido andando pelas ruas de Ribeirão com uma lanterna na vacilante mão esquerda.
Meu pai, na sua meninice não tão pobre e nem suficientemente abastada, mas repleta de projetos malogrados, também andava com sua lanterna. Sonhou, como todos os demais meninos da sua desalentadora aldeia, ser Napoleão I. Mas, acabou, depois de algumas campanhas de êxito parcial e extremamente vexatórias, na frustrante posição de suceder meu avô. Foi mais um na família a tornar-se um mesquinho taberneiro ensebado, sem horizontes, esperanças ou honradez para manter a cabeça ereta diante do adversário mais insignificante.
Sua Josefina de Beauharnais, também era da nossa região como todas as medievais esposas da nossa infame família de vilões e servos de gleba. Prima distante de uma mulher de péssima reputação em toda a região, a senhora Emma Bovary.
Assim como a dissoluta prima distante, minha mãe decepcionou-se com seu matrimonio, com os pequenos gestos de tirania de meu pai e traçava incertos projetos para escapar da opressiva realidade. Não ousou, entretanto, acalentar nenhum plano para tornar meu pai célebre, não gastou nenhum vintém das economias do tirânico marido, não sonhou com Paris e não tentou o suicídio com arsênico.
Contentava-se com sórdidos encontros, marcados através da complexa linguagem de olhares da taberneira que sabia aproveitar cada oportunidade de amenizar seus dias de labuta ao lado do marido.
As discretas tocas da floresta serviam para os encontros carnais com os ousados fregueses da nossa taberna. Nos últimos tempos, também desfrutou de sáficos encontros proporcionados por uma jovem lavadeira na exuberância dos seus quinze anos.
Depois de alguns anos de um casamento mortalmente tedioso, fugiu com um médico que atendia os campônios da nossa região. Sujeitinho que enganou a todos com seu falso diploma e uma lábia magistral. Amante de um bom conhaque, semanalmente pernoitava na taberna, para alegria de minha discretíssima progenitora. Seu olhar penetrante, seus grossos bigodes trançados e seu hálito licoroso provocaram a derrocada que se anunciava profeticamente nas conversas de todas as comadres.
Meu napoleônico pai, vexado, preterido, ainda mais raivoso e inseguro, vivia sua própria campanha russa, todo encolhido, num canto do sujo balcão. Jamais voltou a procurar um médico em sua vida.
Certamente, a fuga da minha mãe com o pequeno sedutor, meu choro de bebezinho faminto e o olhar de piedade de toda a cidade acompanharam meu pai até a sua morte. Foi a sua herança maldita.
A taberna, quase como nosso ancestral totêmico, aprisionou nossa família, geração após geração. Ficava numa insignificante cidadezinha. Invariavelmente vazia durante a semana, repleta, raramente, aos domingos e feriados santos, com os mais borrachos moradores da redondeza. Espécimes de seres humanos mesquinhos e propensos aos mais sórdidos vícios. Todos nós, clientes e taberneiros, vegetando, envenenados, no mais puro ódio e inveja.
Meu pai sempre estava de mau humor. Era seu derradeiro estado. Colérico, vermelho e blasfematório. Soltava um bom dia, silvado e irado, num esforço de eremita contrariado. Angustiado, insuficientemente