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Sovietistão
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E-book541 páginas8 horas

Sovietistão

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Sobre este e-book

Com o colapso da União Soviética em 1991, as cinco repúblicas da Ásia Central até então controladas por Moscou obtiveram a própria independência. Ao longo de setenta anos de domínio soviético, Turcomenistão, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão, os países que, das cadeias de montanhas mais altas do mundo ao deserto, antes marcavam a rota da Rota da Seda, de alguma forma passaram diretamente da Idade Média ao século XX. E após vinte e cinco anos de autonomia, todas as cinco nações ainda parecem estar em busca da própria identidade, estreitas entre o leste e o oeste e entre o velho e o novo, no centro da Ásia, cercadas por grandes potências como a Rússia e a China, ou por vizinhos inquietos como o Irã e o Afeganistão. Os contrastes as unem: décadas de domínio soviético coexistem com administrações locais, a exorbitante riqueza do gás e do petróleo com a mais extrema pobreza, o culto à personalidade com costumes arcaicos ainda vitais.

Sovietistão é uma jornada inesquecível pela Ásia Central, uma das regiões mais misteriosas e carregadas de história do mundo, onde as paisagens mais impressionantes da antiga Rota da Seda se sobrepõem às ruínas da utopia comunista.

"Uma narrativa contundente sobre os confins do antigo território soviético" - Per Egil Hegge, Aftenposten

"Um livro brilhante sobre uma região crucial e instigante do mundo" - Jens A. Risnæs

"Sou todo superlativos. Soviestistão é o que considero um exemplo de excelente livro" - Torbjørn Færøvik

"Apaixonado e erudito" - Jon Rognlien, Dagbladet
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mar. de 2021
ISBN9786586683714
Sovietistão

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    Sovietistão - Erika Fatland

    determinados.

    TURCOMENISTÃO

    OS OPRIMIDOS

    Portão 504. Só pode ser engano. Os portões de embarque tinham números na casa dos 200: 206, 211, 242. Talvez eu estivesse no terminal errado ou — pior ainda — no aeroporto errado?

    No Aeroporto Internacional Atatürk, Ocidente e Oriente se encontram. Os passageiros são uma mistura exuberante de peregrinos rumando para Meca, suecos queimados de sol carregando sacolas do tax-free abarrotadas de vodca Absolut e empresários vestindo terno e gravata pasteurizados, além de xeques de talares brancos acompanhados pelas esposas cobertas de preto, carregando a tiracolo bolsas de grifes europeias exclusivíssimas. Nenhuma outra companhia aérea do mundo chega em tantos países como a Turkish Airlines, e quem quer que esteja a caminho de cidades de nomes estrambóticos deve fazer uma escala em Istambul. A Turkish Airlines voa para Chişinău, Djibuti, Uagadugu e Usinsk. E também para Ashgabat, meu destino final.

    No fim de um longo corredor, acabo por avistar o número assinalado: 504. A caminho do portão, que parecia se afastar um pouco mais à medida que me aproximava, a multidão ia aos poucos rareando. Finalmente, fiquei sozinha num canto esquecido do terminal, uma esquina do aeroporto Atatürk por onde poucas pessoas já passaram. O corredor terminava numa escadaria larga. Subi os degraus e adentrei um mundo de lenços coloridos, gorros de pelego de carneiro, sandálias e cafetãs. Ali, a estranha era eu, envergando uma jaqueta impermeável e calçando um par de tênis.

    Um homem de cabelos escuros e olhos estreitos me encarou. Nas mãos, carregava um pacote do tamanho de uma almofada de sofá, cuidadosamente embalado com fita adesiva marrom. Queria saber se eu podia carregá-lo. Fingi que não compreendia russo. «Sorry, sorry», balbuciei, e segui em frente. Que tipo de homem era aquele que não podia carregar a própria bagagem? Duas mulheres de meia-idade, em vestidos compridos de algodão roxo e turbantes da mesma cor em volta da cabeça, vieram em sua defesa: custava tê-lo atendido? Um favor tão simples? Abanei a cabeça. «No, sorry, sorry», e saí apressada. Jamais iria ajudar um turcomeno desconhecido carregando um pacote suspeito que fez disparar todos os meus alarmes.

    Consegui avançar uns cinco ou seis metros até ser abordada novamente. Uma mulher esbelta, num vestido longo vermelho, me segurou pelo braço. Será que eu não podia ajudá-la a carregar suas bagagens? Somente algumas?

    — Nyet! — disse eu, com voz firme, e me desvencilhei.

    Na sala de embarque, me dei conta de que aquilo fazia parte de um contexto maior: quase todos os passageiros levavam bagagem de mão em excesso, e eram recepcionados no corredor de embarque por funcionários da companhia aérea segurando balanças e com cara de poucos amigos. Assim que embarcavam, os passageiros tratavam de se livrar de outros pacotes que levavam sob as roupas, presos com fita adesiva.

    Aparentemente, não havia limites para o que essas mulheres conseguiam esconder debaixo de seus vestidos. Sorrindo aliviadas, não demonstravam a menor preocupação em serem flagradas pelas comissárias de bordo. Já estavam dentro do avião, afinal.

    Minha dúvida, no entanto, permanecia insolúvel: por que diabos todos levavam tanta bagagem? Uma das comissárias atrás do balcão deve ter percebido minha curiosidade e fez um meneio de cabeça para eu me aproximar:

    — São comerciantes — explicou ela. — Viajam a Istambul pelo menos uma vez por mês e compram mercadorias que depois vendem bem mais caro no mercado de Ashgabat. Quase tudo que é vendido no Turcomenistão é produzido na Turquia.

    — Por que elas não carregam isso nas malas? — perguntei. — Medo de que sejam extraviadas?

    A comissária riu.

    — Elas trouxeram malas também, acredite!

    O embarque foi demorado. Passageiros com excesso de bagagem de mão — a maioria — tiveram que empacotá-la em sacos plásticos baratos selados com fita adesiva e despachá-la como bagagem normal, no porão da aeronave. A bordo, o caos imperava. As mulheres ocupavam o assento que lhes convinha, sob protestos indignados de homens de barba branca vestindo cafetãs. Cada vez que alguém reclamava, outras vinte pessoas, homens e mulheres, se metiam na discussão.

    — Por favor, queira chamar a tripulação de cabine se houver divergências sobre a localização dos assentos — insistiu um dos comissários de bordo pelos alto-falantes, mas ninguém parecia dar a mínima. Espremida entre cafetãs e vestidos de algodão, não tive escolha a não ser seguir o fluxo da multidão confinada pelo corredor. Revirando os olhos, uma comissária ia abrindo caminho pelo mar de corpos.

    No meu assento, 17F, já estava aboletada uma vetusta senhora de meia-idade, num vestido lilás.

    — Acho que houve um engano, este assento é meu — disse eu em russo.

    — Você não vai querer separar três irmãs — respondeu a mulher, olhando para as duas matronas nos assentos vizinhos, que facilmente poderiam ser confundidas com ela mesma. As três me encararam com um olhar piedoso.

    Conferi meu cartão de embarque, apontei para o número e depois para o assento.

    — Este lugar é meu — disse.

    — Você não vai querer separar três irmãs, vai? — insistiu a senhora.

    — Onde vou sentar então? Como eu disse, meu lugar é aqui.

    — Você pode sentar ali. — Ela apontou para um assento vago na poltrona à frente. Quando fiz menção de abrir a boca e reclamar mais uma vez, ela me fulminou com um olhar que dizia: Você não vai querer separar três irmãs.

    — Não é na janela — murmurei para mim mesma, e obediente me sentei no assento que indicou. Não, eu não queria separar três irmãs. Mais que tudo, não queria passar quatro horas sozinha ao lado de duas delas. Quando o ocupante do meu novo assento apareceu, mandei-o tomar satisfação com as três irmãs atrás de mim. O homem logo desistiu de negociar e foi procurar um assento mais ao fundo. Enquanto o avião taxiava na pista, quatro passageiros ainda perambulavam pelo corredor em busca de lugares vagos.

    Normalmente, caio no sono assim que o avião decola, mas desta vez não pisquei os olhos. A meu lado, um homem recendia bebida e estalava os lábios enquanto dormia. A mulher alta sentada junto à janela pressionava nervosamente a tela à sua frente. Pelo visto não encontrava nada interessante, mas não parava de cutucar a tela.

    Para ajudar a matar o tempo, saquei o pequeno dicionário de turcomeno que trazia comigo e comecei a folheá-lo. Para os outros quatro países que estava indo visitar encontrei livros de autoaprendizado, acompanhados de DVDs, que adquiri num arroubo de coragem e otimismo. Para o idioma turcomeno, contudo, a única coisa que encontrei foi uma humilde apostila, um misto de dicionário e guia de sobrevivência. A última metade era dedicada a frases úteis como: «Você é casada?», «Não, sou viúva.», «Não entendo, por favor fale mais devagar». Gradualmente, o autor conduzia o leitor pelas intercorrências que poderiam surgir durante uma viagem pelo país: «Quanto tempo o avião está atrasado?», «O elevador funciona?», «Por favor, diminua a velocidade!». A seção de hotéis era motivo de preocupação: «O banheiro está entupido.», «A água está desligada.», «A energia acabou.», «O gás está desligado.», «Não é possível abrir/fechar a janela.», «O ar-condicionado não funciona.». Depois de abordar questões genéricas, porém inofensivas, o autor enveredava por uma sequência de emergências que poderiam acontecer, desde «Pega ladrão!» e «Chame uma ambulância!» até sentenças mais vagas como «Não fui eu!» e «Não sabia que era proibido!». No final, um capítulo curto, porém importante, abordava o tópico «barreiras policiais». Aprendi a dizer «Não atire!» e «Onde fica a fronteira internacional mais próxima?» e pus a apostila de lado.

    A mulher no assento da janela havia desistido de encontrar algo interessante na telinha e já roncava de boca aberta. Fiquei apreciando o céu avermelhado do crepúsculo. Nos oito meses seguintes, faria uma jornada por cinco dos mais novos países do mundo: Turcomenistão, Cazaquistão, Tadjiquistão, Quirguistão e Uzbequistão. Quando a União Soviética se desintegrou, em 1991, os cinco se tornaram Estados independentes pela primeira vez na história. Desde então, ouvimos falar muito pouco deles. Embora cubra uma área de mais de 4 milhões de quilômetros quadrados e abrigue uma população de mais de 65 milhões de pessoas, a região é completamente desconhecida da maioria dos ocidentais.

    Paradoxalmente, o maior esforço para torná-la mais «conhecida» no Ocidente coube ao comediante britânico Sacha Baron Cohen. Seu filme Borat: O segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão viaja à América foi um sucesso nos cinemas da Europa e dos Estados Unidos. Cohen escolheu o Cazaquistão como local de nascimento de Borat justamente porque quase ninguém ouvira falar do país, e isso lhe daria total liberdade artística. Os trechos do filme que retratam a cidade onde Borat nasceu nem sequer foram gravados no Cazaquistão, mas na Romênia. Na Rússia, Borat se tornou o primeiro filme não pornográfico a ser censurado após a dissolução da União Soviética. As autoridades cazaques ameaçaram processar a produtora, mas por fim perceberam que isso prejudicaria ainda mais a reputação do país. Um filme sarcástico ter se tornado uma espécie de referência dá a exata medida de como a região permanece desconhecida: o Cazaquistão é o nono maior país do mundo, mas até hoje continua sendo chamado de «terra natal de Borat» mesmo em reportagens de órgãos de imprensa conceituados.

    Quando os Estados pós-soviéticos dali são mencionados, recorre-se ao genérico «Turquestão», mesmo nome usado no século XIX, ou ainda a simplificações do tipo «Longinquistão». O sufixo «istão» vem do persa e significa «lugar» ou «terra». Turcomenistão significa, portanto, «terra dos turcomenos», enquanto Turquestão pode ser traduzido como «terra dos povos turcos». Apesar do sufixo comum, os cinco Istãos são surpreendentemente diferentes entre si: 80% do Turcomenistão consiste num deserto, enquanto mais de 90% do Tadjiquistão são montanhas. O Cazaquistão ficou tão rico extraindo petróleo, gás e minério que se candidatou recentemente a sediar os Jogos Olímpicos de Inverno. O Turcomenistão também é rico em petróleo e gás, enquanto o Tadjiquistão é um lugar miserável. Durante o inverno, a eletricidade em muitas cidades e vilas tadjiques não dura mais que algumas horas por dia. Os regimes do Turcomenistão e do Uzbequistão são tão autoritários e corruptos que podem ser comparados à ditadura da Coreia do Norte; não há imprensa livre e o presidente é onipotente. No Quirguistão, por outro lado, a população já derrubou dois presidentes em pleno exercício do mandato.

    Embora os cinco sejam, sob vários aspectos, muito diferentes, todos compartilham um destino comum e emergem da mesma origem: durante quase setenta anos, de 1922 a 1991, fizeram parte da União Soviética, um gigantesco experimento social sem paralelo na história mundial. Os bolcheviques aboliram a propriedade privada e outros direitos individuais. O objetivo era chegar a uma sociedade comunista, sem classes, e, para tanto, não pouparam esforços. Todos os setores da sociedade passaram por mudanças radicais. A economia era organizada de acordo com ambiciosos planos quinquenais, a agricultura foi coletivizada e a indústria pesada foi construída a partir do zero. A sociedade soviética era um sistema incrivelmente abrangente. O indivíduo era subordinado aos interesses maiores da coletividade: povos inteiros foram obrigados a se deslocar, e milhões de pessoas foram declaradas «inimigas do povo» por razões religiosas, intelectuais ou econômicas. Essas pessoas ou eram executadas ou enviadas para campos de trabalho forçado nas franjas do império, onde as chances de sobrevivência eram mínimas.

    O sofrimento foi enorme e, do ponto de vista ambiental, o experimento socialista foi um desastre. Ainda assim, nem tudo era um pesadelo na antiga União Soviética. Os bolcheviques investiram maciçamente em escolas e na educação, e quase conseguiram erradicar o analfabetismo em áreas onde era generalizado, como na Ásia Central. Também empreenderam um esforço gigantesco na construção de estradas e demais obras de infraestrutura, e procuraram garantir a todos os cidadãos soviéticos acesso tanto a serviços de saúde quanto a bens e manifestações culturais, como balé, teatro, ópera e música. Em todos os lugares, desde a Carélia, no oeste, às estepes da Mongólia, no leste, era possível se fazer entender em russo, e a bandeira comunista tremulava nos mastros até onde a vista alcançava. Desde os portos do mar Báltico até o litoral do Pacífico, a sociedade era organizada observando-se o mesmo padrão ideológico. Aos senhores, os russos, eram reservados os postos de comando na hierarquia burocrática. No seu auge, a União Soviética compreendia um sexto das terras do mundo e abrigava mais de cem grupos étnicos.

    Cresci assistindo aos últimos dias da União Soviética. Quando estava no segundo ano do ensino fundamental, os alicerces da grande união começaram a apodrecer e em pouco tempo ela se esfacelou. No segundo semestre de 1991, o mapa-múndi se transformou: as quinze repúblicas que formavam a União Soviética, também conhecida como União das Repúblicas Socialistas Soviéticas ou URSS, deixaram a união e se tornaram Estados independentes da noite para o dia, por assim dizer. Em poucos meses, a Europa Oriental ganhou seis novos países: Estônia, Letônia, Lituânia, Bielorrússia, Ucrânia e Moldávia. A Ásia Central, como dissemos, passou a ter cinco novos países: Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e Turcomenistão. No Cáucaso, três novos países viram a luz do dia: Geórgia, Azerbaijão e Armênia.¹

    Em 26 de dezembro de 1991, a União Soviética foi formalmente dissolvida.

    Apesar disso, os mapas antigos continuavam a ser adotados nas salas de aula. Periodicamente, o professor apontava para um deles e chamava a atenção para os novos países que surgiam, cujas fronteiras ainda não estavam demarcadas ali. Ano após ano, comparávamos os limites daquela imensa superpotência que deixara de existir com as fronteiras invisíveis, mas altamente reais, das novas nações. Lembro que fiquei fascinada pelo tamanho e pela proximidade geográfica com a Noruega. A União Soviética, um nome que ecoa o passado, da mesma forma que «Iugoslávia» e «Segunda Guerra Mundial», tinha sido nossa vizinha mais próxima.

    Travei meu primeiro encontro com a antiga União Soviética na companhia de um grupo de aposentados finlandeses. Estudei o último ano do ensino médio numa escola em Helsinque, na Finlândia, e decidi comprar uma passagem barata para viajar de ônibus a São Petersburgo. Assim que chegamos à fronteira, sentimos o peso do antigo regime: em cinco ocasiões, soldados armados entraram no ônibus para conferir todos os passaportes e vistos. Quando paramos para almoçar em Viburgo, vários idosos começaram a chorar.

    — Era uma cidade tão bonita — disse uma senhora.

    No entreguerras, Viipuri, como se chamava em finlandês, chegou a ser a segunda maior cidade do país, mas após a Segunda Guerra Mundial os finlandeses tiveram que ceder essa porção da Carélia à União Soviética. Por toda parte, a deterioração saltava aos olhos. A tinta descascava das fachadas das casas, as calçadas estavam cheias de buracos, as pessoas pareciam amarguradas e tristes vestindo aquelas roupas esfarrapadas e soturnas.

    Em São Petersburgo, ficamos hospedados num enorme bloco de concreto. Com ruas largas, bondes decadentes, prédios clássicos em tons pastel e vendedores de ingressos rudes, a cidade era ao mesmo tempo profundamente emocionante e hostil; era tão hedionda quanto bela, tão repulsiva quanto sedutora. Achei que nunca voltaria ali, mas assim que voltei para Helsinque fui comprar livros para aprender o idioma russo. Durante os anos seguintes, me vi memorizando vocabulário e declinações, lutando com aspectos perfeitos e imperfeitos e ensaiando diante do espelho as consoantes suaves e duras. Foram várias viagens a São Petersburgo e Moscou, mas também para os extremos da antiga União Soviética, para o norte do Cáucaso, para a Ucrânia e a Moldávia, e para as repúblicas rebeldes da Abcásia e da Transístria. Em todos os lugares, da exuberante Ossétia às palmeiras da península da Crimeia, da soporífera Chişinău aos engarrafamentos de Moscou, a União Soviética estava presente. Havia deixado sua marca indelével nas construções e nas pessoas, tornando os locais parecidos a despeito dos milhares de quilômetros que os separavam.

    Embora as opiniões sobre Putin e a Rússia atual variem da profunda admiração à impotência e ao repúdio, encontrei a mesma nostalgia soviética em todos os lugares que visitei. Assumindo o risco da generalização, afirmo que qualquer um com idade suficiente para se lembrar da União Soviética sente saudades daquela época. De início isso me surpreendeu, pois na escola só ouvíamos falar de campos de prisioneiros, deportações e espionagem, de um sistema econômico irremediavelmente falido e das catástrofes ambientais. Ninguém nos contou dos voos tão baratos que eram quase de graça, das estadias subsidiadas para operários em férias nas cidades à beira-mar, dos jardins de infância gratuitos e da educação universalizada. Até Gorbachev assumir o poder, o noticiário era repleto de esperança e boas-novas. De acordo com a mídia estatal, a vida na União Soviética era um mar de rosas, não havia criminalidade, não ocorriam acidentes e, a cada ano que passava, os triunfos alcançavam novos patamares.

    Quanto mais eu viajava pela Rússia e pela antiga União Soviética, mais aumentava minha curiosidade sobre a periferia do império. Vários dos povos colonizados pela Rússia no século XIX, e desde então oprimidos pela União Soviética, eram muito diferentes dos russos — na aparência, no idioma, nos hábitos, na cultura e na religião.

    Essa opressão era marcadamente verdadeira em relação aos povos da Ásia Central. Nas regiões mais ao norte, nos atuais Cazaquistão, Quirguistão e Turcomenistão, a maioria ainda vivia como nômade quando os russos chegaram. Não havia um conceito de país ou nação — os laços sociais eram frouxos, ainda baseados em clãs. Embora sedentários, os povos mais ao sul, no território hoje compreendido por Uzbequistão e Tadjiquistão, estavam isolados do mundo exterior havia tantos séculos que pareciam uma sociedade congelada no tempo. Os canatos feudais de Khiva e Kokand, assim como o emirado de Bukhara, que hoje pertencem ao Uzbequistão, foram uma presa fácil para os soldados russos. Tanto os povos nômades quanto os sedentários da Ásia Central eram em sua maioria muçulmanos. Nas ruas de Samarcanda e Bucara, as mulheres cobriam o corpo de acordo com os preceitos religiosos, e a poligamia era um costume generalizado, inclusive entre as tribos nômades. No século XI, essas duas cidades eram importantes centros científicos e culturais. Quando os russos chegaram, porém, a pujança intelectual já estava encoberta pela poeira do tempo: cem anos atrás, poucas pessoas na Ásia Central sabiam ler, e as poucas escolas remanescentes eram dedicadas principalmente a estudos religiosos.

    Ao longo das eras, diversos povos subjugaram a Ásia Central, dos persas e gregos aos mongóis, árabes e turcos.² Essas invasões constantes eram o preço a pagar por quem estava bem no meio do caminho entre Ocidente e Oriente. A localização privilegiada foi a razão do florescimento de tantas cidades ali durante o comércio da seda que ligou a Ásia à Europa, mil anos atrás.

    Até hoje, no entanto, nenhuma potência estrangeira interveio de maneira tão abrangente e sistemática no cotidiano dos povos da Ásia Central quanto os dirigentes soviéticos. A Rússia czarista interessava-se principalmente pelas divisas das lavouras de algodão e pelo controle dos mercados, por exemplo, e pouco interferia nos hábitos da população local. O emir de Bukhara foi autorizado a permanecer no trono, desde que fizesse o que os russos mandavam. As autoridades soviéticas, por outro lado, tinham uma agenda diferente e mais ambiciosa: queriam realizar uma utopia. Em poucos anos, os povos da Ásia Central foram forçados abandonar uma sociedade tradicional, unida por laços de sangue, e abraçar o socialismo materialista. Tudo, desde o alfabeto até a posição ocupada pelas mulheres na sociedade, precisou ser alterado, se necessário pela força. Enquanto essas mudanças drásticas ocorriam, para todos os efeitos, a Ásia Central desaparecia do mapa. Durante a era soviética, grande parte da região esteve hermeticamente fechada para os estrangeiros.

    Quais vestígios os anos de domínio soviético deixaram nesses países, nos seus habitantes, nas cidades e na natureza? O que restou da cultura original, anterior à União Soviética? E, acima de tudo: como Turcomenistão, Cazaquistão, Tadjiquistão, Quirguistão e Uzbequistão se saíram nos anos seguintes à queda da União Soviética?

    Foi com essas perguntas rabiscadas no bloco de notas que embarquei no avião para Ashgabat. Escolhi começar a jornada no Turcomenistão por ser o elemento mais incerto do conjunto. Poucos milhares de turistas visitam o país a cada ano, e os requisitos para a emissão de vistos são inflexíveis. Jornalistas estrangeiros quase nunca são admitidos no país, e os poucos que recebem o visto de entrada são escoltados em tempo integral. Afirmei nos documentos que era estudante, o que por si só não era mentira, pois ainda estava matriculada na Universidade de Oslo. Após meses trocando correspondências com o agente de viagens, recebi a confirmação de que o visto fora processado duas semanas antes da data de partida. Pude finalmente reservar os voos e começar a me preparar.

    A cada hora do voo noturno precisávamos adiantar o relógio em uma hora. O sol ainda brilhava vermelho no leste quando o avião reduziu a velocidade e começou a descer. Assim que o trem de aterrissagem tocou o chão, os passageiros abriram instantaneamente as fivelas dos cintos de segurança. A tripulação de cabine, há muito resignada, desistiu de admoestar os homens vestindo cafetãs que, equilibrando-se aos solavancos, percorriam o corredor em busca de suas bagagens de mão. Pela janela de plástico oval, vislumbrei o novo terminal do aeroporto, todo em mármore branco, reluzindo sob o sol da manhã.

    Nunca me senti tão distante de casa.

    A CIDADE DE MÁRMORE

    Todo aquele mármore me deixou impressionada. Os blocos de prédios se erguiam como uma floresta coberta de neve, espigada e imponente, mas desprovida de qualquer traço de personalidade. Em qualquer direção para onde se voltasse o rosto era mais do mesmo: mármore branco e reluzente. Como se fosse uma turista japonesa, comecei a fotografar desabaladamente através das janelas do carro em movimento. A maioria das fotos ficou imprestável.

    A avenida que cortava os blocos era digna de um Estado petrolífero: oito faixas de rolamento, iluminadas por lâmpadas em postes especialmente projetados. Os carros, que podiam ser contados numa só mão, estavam impecavelmente limpos. Os Mercedes eram a absoluta maioria. Pelas largas calçadas não se viam pessoas, exceto um policial de quando em vez, equipado com uma lanterna vermelha que quem sabe usasse para sinalizar aos carros apenas para matar o tédio.

    Era como se tudo nesta cidade pertencesse ao futuro, até mesmo as paradas de ônibus, equipadas com ar-condicionado. Os habitantes desse futuro, entretanto, não estavam ali. O contraste com o caos dentro do avião era impressionante: os suntuosos blocos de mármore não passavam de conchas vazias, as ruas estavam desertas. Só nos acostamentos da rodovia se via gente. Um exército de mulheres encurvadas, vestindo coletes alaranjados, com os rostos encobertos para se proteger do sol, trabalhando exaustivamente para manter a cidade imaculada. Pareciam guerrilheiras cortando o mato, roçando o chão, varrendo e escavando.

    — Ashgabat ficou uma cidade muito bonita graças-ao-nosso-presidente — observou Aslan, meu motorista, um homem pálido na casa dos trinta anos, pai de crianças pequenas. As últimas quatro palavras foram ditas muito rápido, quase automaticamente, como um muçulmano que dissesse «a-paz-esteja-com-ele» ao se referir ao profeta, ou como nós fazemos em ocasiões do tipo «obrigado-de-nada» e «há-quanto-tempo». Com o passar do tempo, fui descobrindo variações dessa menção ao presidente, sempre expressas com a mesma seriedade.

    Ashgabat foi construída para tirar o fôlego de quem a visita. «Veja só do que somos capazes!», gritam os prédios de mármore. «Olhe para nós aqui!» A imprensa do mundo pode não dar muita atenção ao que um pequeno país desértico da Ásia Central anda aprontando, mas o Guinness World Records há muito tempo acompanha as excentricidades ali. Em 2013, os moradores da capital comemoraram mais um recorde: Ashgabat é oficialmente a cidade do mundo com mais fachadas de mármore em relação à área ocupada. Diz-se que as jazidas de mármore de Carrara italiano estão se esgotando devido ao insaciável apetite dos turcomenos pela rocha branca. Os habitantes de Ashgabat já podiam se gabar de viver na cidade com o maior chafariz do mundo, apesar de 80% do território turcomeno estar numa região desértica. Nas estradas de oito pistas de Ashgabat, as dunas de areia estéril se estendem em todas as direções, mas, dentro das paredes de mármore branco, a água flui em abundância. Onde quer que se vá, ouve-se o som gorgolejante de água corrente. Além disso, Ashgabat tem a maior roda-gigante do mundo em ambiente fechado, uma fabulosa estrutura de vidro de 46,7 metros de altura, com cabines que giram lentamente em torno do eixo. A central de TV de Ashgabat, com seus 211 metros de altura, é a maior representação arquitetônica de uma estrela do mundo. Durante um período, o mastro de bandeira mais alto do mundo esteve em Ashgabat, mas o recorde já foi superado por outras ex-repúblicas soviéticas.

    O cobiçado mármore branco de veios cinza italiano é reservado aos prédios mais imponentes. Embora luxuosos, os blocos de apartamentos são revestidos com um tipo menos nobre da pedra. Para os prédios ministeriais, assim como para as esplêndidas mesquitas e palácios presidenciais, apenas o mármore mais caro e exclusivo é o bastante. Todos esses edifícios são projetados e construídos por empresas estrangeiras, sobretudo francesas e turcas. Os engenheiros fizeram um trabalho e tanto para dar às diferentes repartições uma aparência distinta: no topo do Ministério das Relações Exteriores repousa um globo azul, enquanto o Ministério da Educação tem a forma de um livro semiaberto. A faculdade de Odontologia parece um dente, em deferência, é provável, ao Novo Presidente, dentista por formação. O Ministério da Imprensa também tem o formato de um livro, porém com as páginas abertas. No canto superior direito, reluz a efígie dourada do Primeiro Presidente, como a capitular de uma iluminura.

    Os dois presidentes são onipresentes no Turcomenistão. Em todas as cidades há estátuas douradas do Turkmenbashi, o primeiro presidente do país, que ocupou o cargo desde a dissolução da União Soviética até morrer, em 2006. A capital está cheia delas, e todas se assemelham: um burocrata de costas retas, de terno e gravata, de semblante sereno e visionário. Seu sucessor, Gurbanguly Berdimuhamedov, mais conhecido como Novo Presidente, optou por uma manifestação mais contemporânea: retratos. Em todos os lugares da capital pode-se ver seu rosto enorme e paternal. Em quase todas as fotos lá está ele, exibindo um sorriso tão indecifrável como o da Mona Lisa. No aeroporto, ainda no controle de passaportes, fui recepcionada por um retrato dele, e, pouco depois, encontrei-o novamente no portal da cidade e, em seguida, na recepção hotel, onde uma parede inteira fora reservada para esse fim. No Turcomenistão nunca se está sozinho, por menos movimentadas que sejam as ruas. Os presidentes a tudo observam.

    Projetei meu corpo para fora da janela e pressionei o botão da câmera até meu indicador ficar dormente, registrando um hemisfério terrestre, cúpulas douradas, vias de oito faixas desertas. Aslan se ofereceu para reduzir a velocidade, mas jamais parou o carro. Como havia muitos policiais na rua, pediu que eu escondesse a câmera. Por insondáveis razões de segurança, era estritamente proibido fotografar os chamados edifícios estratégicos, como os palácios presidenciais ou os luxuosos prédios do governo. Também era ilegal fotografar prédios administrativos, os quais não eram poucos. Os memoriais e monumentos comemorativos, no entanto, consegui fotografar à vontade. Cada marco atingido pela nação independente era materializado em magníficas estátuas e fontes: o aniversário de cinco anos, o décimo aniversário, o 15o e o vigésimo aniversário deixavam suas impressões na paisagem urbana. O Monumento da Independência simbolizava a autonomia adquirida em 1991, enquanto o Monumento à Constituição celebrava a jovem carta magna do Turcomenistão. A nação deve ter absorvido muita coisa — e na cidade havia um grande espaço para preencher. As autoridades de Moscou nunca consideraram Ashgabat uma prioridade. Os russos fundaram um quartel aqui ainda em 1881, e gradativamente a cidade moderna foi crescendo no meio do deserto. Em 1948, a cidade inteira veio abaixo em questão de segundos, durante um violento terremoto. Centenas de milhares de pessoas perderam a vida. Os soviéticos reergueram a cidade dos escombros, mas sem muito entusiasmo. Construíram blocos habitacionais de concreto cinza, trouxeram atrações para o parque de diversões obrigatório, incluindo carrosséis e rodas-gigantes, reformaram um punhado de parques verdes e reabriram o museu regional com seu acervo de animais empalhados e cacos de cerâmicas. Hoje, os urbanistas soviéticos não reconheceriam a cidade que planejaram.

    — Aqui é a vila olímpica — explicou Aslan enquanto passávamos por mais uma fila de mastodontes de mármore. Cartazes gigantes de patins e cerimônias de entrega de medalhas enfeitavam as fachadas brancas. — A piscina está pronta, graças-à-visão-do-presidente. O rinque de patinação no gelo também está pronto, assim como os apartamentos onde os atletas ficarão hospedados.

    — Não sabia que o Turcomenistão sediará as Olimpíadas de Inverno — eu disse.

    Aslan me lançou um olhar reprobatório.

    — Vamos sediar os Jogos Olímpicos de Inverno da Ásia em 2017³ — pontuou ele.

    Não sabia que a Ásia tinha uma Olimpíada própria, mas não retruquei. Ainda não tinha almoçado e minha cabeça já começava a rodar. O ícone da bateria começou a piscar em vermelho na tela da câmera. Geralmente, organizo meus itinerários de viagem sozinha, mas aqui eu era uma escrava do programa feito pela agência de turismo. À exceção daqueles que passam pelo país com vistos de trânsito, todos os turistas que viajam para o Turcomenistão são obrigados a entregar seu planejamento de viagem a uma agência de turismo autorizada pelo Estado. Enquanto estão no país, essa agência fica responsável pelos estrangeiros 24 horas por dia, e raramente permite que fiquem sozinhos. Após a morte do Primeiro Presidente, as regras se abrandaram. Entre outras mudanças, agora os turistas podem se deslocar sozinhos em Ashgabat. Aqui, a força policial é tão ostensiva que sempre estarão sob vigilância ininterrupta. Mesmo assim, ao longo das próximas três semanas, pelo menos um representante da agência estaria comigo em todos os lugares, o tempo todo, exceto na hora de dormir. Três semanas é o máximo. Nenhum turista pode permanecer mais tempo no país.

    Aslan fez uma curva e entrou num espaço enorme e vazio. No final da praça havia um palácio. A fachada suntuosa repousava sobre colunas gregas, e no topo havia um globo, ou melhor, uma grande cebola azulada. Dois pégasos dourados saudavam os visitantes do alto das colunas.

    — É a residência do presidente? — perguntei, impressionada.

    — Não, você está louca? Nosso-bom-presidente mora fora da cidade, numa área restrita. Aqui é o Museu Histórico Nacional, inaugurado pelo Primeiro Presidente em 1998. — Aslan providenciou o ingresso e adentrei o museu pelas portas corrediças. Um guarda acendeu as luzes assim que pus os pés no saguão. O interior, amarronzado, remetia à era soviética e contrastava com o exterior barroco. Ao longo das paredes, mulheres de vestidos longos conversavam à meia-voz. Minha guia, Aina, tinha vinte e poucos anos e usava um uniforme estudantil: vestido vermelho longo com bordados no busto e um chapéu preto e liso. Os cabelos compridos estavam presos em duas longas tranças, como é costume entre as jovens turcomenas. Ela me cumprimentou secamente e pediu que a acompanhasse ao elevador.

    — O museu é muito visitado? — perguntei, a pretexto de quebrar o gelo.

    — Sim — respondeu Aina, sem nenhum sinal de ironia na voz.

    — Mas hoje não?

    — Não — respondeu ela, com a mesma expressão severa.

    Aina era uma máquina. Equipada com uma vareta, me conduziu com pleno domínio pelos 5 mil anos de história do Turcomenistão. Com uma voz monótona, foi cuspindo datas e nomes estranhos num ritmo acelerado. Várias vezes precisei lhe perguntar novamente quando e onde aquela cidade foi fundada e se aquele local ainda existia. Aina retrucava num tom irritado: «Como eu disse…».

    Enquanto Aina me guiava por vasos, joias de ouro e chifres ornamentados, me ocorreu como eu realmente conhecia pouco dessa parte do mundo. Aqui, culturas e cidades exuberantes existiram muito antes de Roma ser Roma. Grandes civilizações como os medos, aquemênidas, partos, sassânidas, seljúcidas; reinos poderosos como Margiana e Corásmia… Numa região tão exposta, na divisa entre Ocidente e Oriente, protegida por nada além do deserto inóspito, não faltou quem a invadisse e anexasse ao longo dos anos, o que torna o cenário histórico ainda mais complexo.

    — Eles não eram budistas no Oriente, então? — perguntei, confusa, quando Aina começou a discorrer sobre a cerâmica islâmica no Turcomenistão Oriental.

    — Como eu disse, foi antes da invasão islâmica do século VII.

    Segundo meu programa, a tarde era livre. Aproveitei a pausa para passear pelas ruas largas e desertas calçando sapatos leves, de verão. Era início de abril e o clima ameno lembrava um dia de verão norueguês. Os verões turcomenos, por sua vez, são tudo menos isso: a temperatura facilmente chega aos cinquenta graus. Não é de admirar que tenham investido em pontos de ônibus com ar-condicionado.

    Policiais me observavam desconfiados. Aqui e ali, um grupo de estudantes passava correndo, meninas de vestidos vermelhos, meninos de camisa e terno, e então eu voltava a ficar sozinha. Das fachadas dos prédios, o Novo Presidente me observava com seu olhar contido e imperscrutável. Por um momento, senti como se retrocedesse cinquenta ou sessenta anos e estivesse de volta aos dias de prosperidade da União Soviética. Naquele tempo, era o olhar do camarada Stálin que acompanhava as pessoas pelas ruas. Os artistas da época tinham a invulgar habilidade de trazer à tona o lado bom do ditador: apesar do temperamento severo, da personalidade paranoica e do poder absoluto que detinha, Stálin costuma ser retratado com uma expressão gentil, quase paternal. O fotógrafo por trás dos retratos do Novo Presidente parece ter o mesmo dom. O homem nas enormes fotografias emolduradas tem as bochechas salientes e um ar bonachão, mas não parece obeso, nem mesmo acima do peso. Pelo contrário, esbanja saúde enquanto observa as ruas da cidade com um olhar complacente e um sorriso enigmático.

    As luxuosas fachadas do shopping center, adornadas com ouro, mármore e luzes néon, não fariam feio diante das fachadas de lojas de grife em Dubai, mas nem tudo é o que parece. No interior, o shopping parecia um bazar mal-ajambrado, com corredores e prateleiras mal iluminadas exibindo roupas baratas turcas e cosméticos de segunda. Em todo o país, apenas três caixas eletrônicos aceitam cartões estrangeiros; um deles se destaca no suntuoso saguão do hotel Sofitel Oguzkent. A título de experiência, peguei o cartão e tentei sacar cinquenta dólares. Connection failed. A mensagem de erro de conexão ficou piscando na tela.

    Assim que escureceu, a cidade se transformou num espetáculo de luzes. Cada pedra de mármore era cuidadosamente iluminada, e as várias fontes e canais mudavam de cor continuamente. Nenhuma esquina era deixada às escuras.

    — Ashgabat é ainda mais bonita à noite — observou Aslan, que veio me levar para um dos melhores restaurantes da capital. Do andar de cima tinha-se a vista da cidade inteira. De início o terraço externo era todo meu, mas logo as mesas ficaram lotadas de comensais austeros. Os homens vestiam ternos de corte italiano feitos sob medida, as mulheres ostentavam vestidos justos e brilhantes. Nenhuma delas usava longos, tranças ou turbantes. Os garçons surgiam carregando coquetéis e sucos tão coloridos quanto as fontes iluminadas. A música trovejava pelos alto-falantes. Eram oito horas e a festa estava a pleno vapor.

    Quando terminei a última colherada da sobremesa, a festa já havia terminado e as pessoas estavam começando a ir embora. A capital turcomena fecha-se em copas inapelavelmente às 23h, tanto em dias comuns como nos feriados. Bares ou restaurantes abertos após esse horário se arriscam a ser multados ou interditados.

    De volta ao hotel, fui ao banheiro me preparar para dormir. Havia um cinzeiro na pia. Um ranço de fumaça de cigarros tomava conta do ambiente, mas não havia quartos para não fumantes. Em 1997, quando foi obrigado a parar de fumar após uma cirurgia cardíaca, o Primeiro Presidente decidiu proibir o fumo em todos os espaços públicos. Agora, em Ashgabat, cigarros só são permitidos entre quatro paredes.

    Vesti o pijama às pressas, quase intimidada. Li no guia que todos os quartos de hotel para estrangeiros são espionados. Quem sabe até não instalaram câmeras? Espiei atrás das duas naturezas-mortas na parede, revirei as gavetas, examinei o telefone, a TV e a geladeira, e não encontrei nada suspeito. Mesmo assim, não consegui me livrar da sensação de estar sendo observada. Deitei-me sob o lençol fino e senti as molas do colchão pressionando minhas costas. Assim que fechei os olhos, uma floresta de blocos de mármore veio em minha direção, todos decorados com uma foto do presidente de olhar infantil e sorriso misterioso.

    DITADORISTÃO

    Um governante injusto é como um fazendeiro

    que planta milho esperando colher trigo.

    Ruhnama

    A lavoura reflete o tom dourado. Vestindo roupas de algodão imundas, um grupo de agricultores põe as mãos na terra. Atrás deles, como um sol nascente, reluz a enorme cúpula. Não há carros transitando pela estrada larga e recém-asfaltada. Um alto portal de mármore nos dá as boas-vindas a Gypjak (Kipchak), cidade natal do Primeiro Presidente.

    Saparmurat Niyazov, mais conhecido como o Turkmenbashi, o Pai dos Turcomenos, o homem que entrou para a história mundial como um dos ditadores mais bizarros de todos os tempos, nasceu no dia 19 de fevereiro de 1940 em Gypjak, então uma pequena e desimportante aldeia nos arredores de Ashgabat. Seu pai morreu durante a Segunda Guerra, diz-se que combatendo heroicamente os alemães. Sua mãe morreu no grande terremoto de 1948, que pôs abaixo todas as construções de Ashgabat. Aos oito anos de idade, Saparmurat estava órfão, destino compartilhado por muitos turcomenos de então. A vitória sobre os nazistas custou caro à União Soviética: entre 20 milhões e 30 milhões de pessoas pagaram com a vida, e milhares de cidades e aldeias foram reduzidas a pó. A felicidade trazida com a paz foi eclipsada pela fome e pelas doenças. As pessoas morriam como moscas, e centenas de milhares de crianças foram obrigadas a crescer nas ruas e dormir ao relento.

    Adulto, Saparmurat valeu-se de sua tragédia pessoal para justificar tudo que lhe convinha, mas ele foi um dos mais afortunados. Nunca precisou morar na rua. As autoridades o puseram num orfanato, onde viveu durante pouco tempo até um tio assumir sua custódia. Pôde frequentar as melhores escolas de Ashgabat e estudar no prestigiado Instituto Politécnico de Leningrado, onde se graduou engenheiro elétrico. Embora os anos em Leningrado não o tenham transformado exatamente num figurão acadêmico, poucos turcomenos podiam exibir currículo semelhante naquela época. Como resultado, as portas da política se abriram para o órfão Saparmurat.

    Niyazov ascendeu rapidamente na hierarquia e, em 1985, após um escândalo de corrupção que custou o mandato da maioria dos políticos tradicionais do país, chegou ao topo e se tornou o primeiro-secretário do Partido Comunista do Turcomenistão. Aqui, destacou-se como um dos líderes menos favoráveis às reformas na União Soviética, opondo-se frontalmente à perestroika de Gorbachev e querendo preservar a coesão do país, desejo que também parecia enraizado no povo turcomeno: no referendo de março de 1991, 99,8% votaram pela preservação da União Soviética, se confiamos nos números.

    A vida na República Soviética do Turcomenistão, uma das mais pobres do império, nunca foi um paraíso, mas as condições de vida da maioria das pessoas vinha melhorando, paulatinamente, sob o jugo soviético. As crianças frequentavam a escola, e jovens

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