Atos de Paulo
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Religião e poder no cristianismo primitivo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasLinguagens da religião: Desafios, métodos e conceitos centrais Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
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Atos de Paulo - Paulo Augusto de Souza Nogueira
I. Introdução
1. A importância dos Atos de Paulo
Os Atos de Paulo se constituem de um corpo de narrativas acompanhado de uma carta (a chamada terceira carta de Paulo aos Coríntios), composto entre o segundo e o terceiro séculos, que narram as atividades missionárias de Paulo em várias regiões do Mediterrâneo, seguidas de seu martírio em Roma.
Apesar de termos motivos para crer que os Atos de Paulo tenham circulado como um texto completo, muito próximo do que conhecemos hoje, já no começo do século III, não devemos concluir que suas diferentes partes tenham sido compostas num único momento, por um único autor. Ainda que certas ênfases perpassem toda a obra, há diferenças em enfoque e perspectiva que sugerem uma composição composta. É verdade que há coerência nas diferentes partes do texto em sua ênfase no celibato e na pureza sexual. Mas esse tema é muito comum na literatura do cristianismo do segundo e do terceiro séculos, sendo compartilhado, inclusive, por outros dos Atos apócrifos. A imagem de Paulo como pregador, missionário itinerante e poderoso milagreiro também é coerente em todas as partes da obra. Mas talvez seja esse o motivo de as diversas partes terem sido ajuntadas e editadas como um todo. Além dos pontos em comum, também há tensões entre as diversas partes, como podemos observar em uma comparação dos Atos de Paulo e Tecla com a provação de Paulo em Éfeso. A segunda parece ter sido redigida como resposta ou complemento à primeira. Ambos os protagonistas são presos e enviados ao combate com feras, nos dois relatos há visita a Paulo na prisão, duas mulheres de elite estão ligadas afetivamente ao apóstolo, os protagonistas são auxiliados por feras (Tecla pela leoa, Paulo pelo leão). A maior diferença entre os textos, no entanto, está na postura em relação ao batismo e à autoridade para batizar, que discutiremos mais adiante.
Nossa posição é, portanto, a favor de uma composição do texto a partir de blocos mais antigos, provenientes do século II, com outros do século III, que foram editados de forma a compor uma obra unificada. O Martírio de Paulo em Roma é, a nosso ver, a parte mais recente adicionada aos Atos de Paulo, com elementos que a aproximam da literatura de martírio do século III. Há, portanto, duas formas de avaliarmos os Atos de Paulo: os usos de suas partes em certos contextos da Igreja primitiva e a imagem de Paulo como um todo, construída a partir do conjunto da obra.
Os textos religiosos no mundo antigo pressupunham contextos específicos. Os mais óbvios são a propagação da mensagem cristã e a edificação das comunidades. O debate de temas teológicos e em torno a práticas comunitárias também pode estar nas entrelinhas dessas narrativas. Não podemos, no entanto, excluir práticas ainda mais específicas e circunscritas, como a leitura litúrgica em festas de São Paulo. Certamente esse deve ter sido um dos usos do texto do Martírio de Paulo. O cristianismo popular do terceiro século deve ter utilizado esse texto, entre outros, em suas performances litúrgicas.
Mas o impacto maior dessa obra decorre de seu conjunto e, em especial, de seu perfil narrativo. É o conjunto da obra que impacta na cultura ocidental, criando uma imagem de quem teria sido o apóstolo Paulo. Nos Atos de Paulo, acontece uma importante adaptação da imagem do apóstolo para os cristãos dos grupos subalternos. A religiosidade popular do mundo antigo era orientada a práticas mágico-milagreiras, que estavam voltadas para a administração da vida quotidiana: curas (com foco especial em curas de crianças e saúde nos partos), proteção contra inimigos, pedido de sinais e de sonhos premonitórios etc. Nessas práticas religiosas domésticas, os milagres são voltados para as necessidades concretas. No entanto, quando esse perfil religioso se refere à propaganda de um grupo religioso, os milagres se tornam mais espetaculares, impactantes e, portanto, merecedores da atenção das pessoas. São milagres diferentes dos realizados no dia a dia, mas provêm do mesmo contexto cultural. Se o milagreiro é poderoso para operar essas maravilhas, a piedade ao Cristo por ele anunciado também trará cura e salvação.
A esse elemento de propaganda milagreira dos Atos de Paulo, e também dos outros Atos apócrifos, se alia outro modo de narrar que igualmente provém da cultura popular: uso de elementos e formas do folclore e do mito. Nossas narrativas são tomadas por elementos que remetem à cultura mitopoética arcaica, como no caso dos animais falantes. São reminiscências de tempos de ontologias em que humanos e animais tinham relações e identidades fluidas. Nesse universo, os humanos interagem com os animais, estabelecem com eles parcerias. Nos Atos apócrifos, há sempre uma busca por redefinição do que constitui o ser humano. Isso se acentuará ainda mais nos textos do terceiro século, como os Atos de Tomé e os Atos de Felipe. Por isso, esse elemento que para nós parece divertido ou exótico deve ser analisado com atenção.
Por fim, queremos destacar o papel do apóstolo, que é narrado como um homem divino
, ao estilo de outras narrativas do período, como a Vida de Apolônio de Tiana, de Filostrato, desse mesmo período. Nesses relatos, o taumaturgo peregrina por diferentes regiões, realizando suas façanhas e ensinando. Apolônio era um milagreiro, mas a tradição rapidamente o transformou num filósofo. No caso de Paulo talvez possamos pensar num processo inverso, mas que leva a resultados similares: Paulo é um missionário e pregador poderoso, um teólogo
, que a tradição transforma em poderoso milagreiro. Os Atos de Paulo o adaptam aos gostos e às sensibilidades da cultura popular.
Uma palavra, ainda, sobre o tipo de cristianismo representado por essas narrativas em torno de Paulo: não é incomum encontrarmos na literatura sobre o cristianismo primitivo, acadêmica ou de divulgação, a associação desses textos com formas heterodoxas de cristianismo. Entendemos que, com uma ou outra exceção, isso é um equívoco. Não devemos pressupor que as definições sobre o que era ortodoxia ou heresia estivessem muito avançadas no segundo século. Tampouco devemos entender que ortodoxia seja sinônimo de doutrina neotestamentária. Além de o conceito ser anacrônico para o primeiro século, podemos vislumbrar, dentro do Novo Testamento, pluralidade suficiente de devoções, ensinos e práticas cristãs. O problema não é se os textos representam ortodoxia ou heresia, mas o estrato sociocultural. Os Atos