Erro de Qualidade de Pessoa: incidência e evolução no Direito Canônico
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Sobre este e-book
O livro traz um estudo, longe de ser esgotado, sobre o Erro de Qualidade de Pessoa no âmbito do Direito Canônico e sua incidência nos Tribunais Eclesiásticos. Sua aplicabilidade desde o Código de 1917 até as alterações realizadas com o advento do Código de 1983, perpassando pelas jurisprudências e doutrinas já existentes.
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Erro de Qualidade de Pessoa - Elisete Raposo
CAPITULO I O ERRO NO DIREITO CANÔNICO
1.1. INTRODUÇÃO
Errare humanum est
, o aforisma quer dizer que errar é próprio do ser humano. Dedicaremos este capítulo, para uma análise quanto ao significado da palavra erro
, sua ingerência na esfera jurídica e na vida das pessoas.
O vocábulo erro advém do latim, error, de errare
. Erro é ato ou efeito de errar. Qualidade do que é incorreto; imprecisão, inexatidão. Ideia ou conceito que não condiz com a realidade; engano, desacerto, equivoco. Comportamento censurável, desvio⁴. Falta ou pecado; falha; defeito; incerteza associada a uma mediação; possibilidade de falha; desvio do que é correto; inexatidão; incorreção em texto. Erroneamente, advérbio que significa de modo errôneo; equivocadamente. Errôneo, adjetivo cujo significado está em contradizer a verdade; juízo falso⁵.
Errar é o antônimo de acertar. Quando acertamos não precisamos nos justificar, nem reparar o fato ou o ato ocorrido. Não há do que se redimir. Parece simples num primeiro momento, contudo, veremos que o erro sempre implicará em consequências e mudanças nos mais variados aspectos da vida das pessoas quer seja no âmbito físico, no espiritual; no jurídico ou moral, se for detectado e denunciado.
O erro não poderá em nenhum momento ser justificado pelo dolo ou ignorância. Em alguns casos ele vem acompanhado da ausência de vontade e muitas vezes a pessoa é induzida ao erro.
A consciência que erra por ignorância não perde sua dignidade. Isto não vale quando a consciência se acostuma ao pecado e não se esforça o suficiente para alcançar o verdadeiro e bom
⁶.
Considerando esta premissa, não poderemos ficar alheios aos erros e ao nos encontramos diante desses, deveremos agir de modo correto e eficaz, propiciando uma retomada do ordenamento com a justiça.
Juridicamente erro é entendido como a falsa concepção acerca de um fato ou de uma coisa⁷. É assentimento firme da mente no que é falso, porém, julgado verdadeiro, compreendido nos sentidos: formal e material. O erro formal estará assentado num falso juízo, improvável e imprudente. O erro material será o juízo provável e prudente, que a mente põe, fundamentando-se apenas em aparências e razões improváveis.
Saber com clareza e certeza qual seja o erro que importa falta de verdadeira vontade, que, por conseguinte torna o ato jurídico inválido é indispensável. No erro essencial, por exemplo, quanto à identidade do outro cônjuge, a ignorância deverá preceder ao ato, sendo, pois, pressuposto fático sem o qual, seu pedido visando à desconstituição do vínculo conjugal, não irá prosperar.
O erro e a ignorância apresentam-se com certa proximidade e afinidade, porém são conceitos distintos de conteúdo e significados próprios. L’ignoranza é la mancanza della debita conoscenza (carentia scientiae debitae)
⁸. O erro é a falsa representação da realidade, o falso ou equivocado conhecimento de um objeto [é um estado positivo]. Conceitualmente, difere da ignorância, pois esta é a falta de representação da realidade ou o desconhecimento total do objeto [é um estado negativo].
A falsa percepção da realidade indica que não há consciência do ato que se está praticando. Quem incide em erro, não sabe o que faz, porque não compreende nem tem conhecimento da realidade dos fatos. O erro excluirá sempre o dolo.
o erro essencial quanto à identidade de um dos cônjuges é de maior ingresso nas lides forenses em relação às outras causas porque, de um lado, é o próprio cônjuge ferido em sua dignidade e pessoa quem solicita uma tutela jurisdicional para desconstituir o vínculo conjugal e, de outro, como já disse anteriormente, porque o vocábulo identidade diz respeito, também, à personalidade da pessoa, surgindo, daí, vários tipos de erros
⁹.
No ordenamento civil brasileiro, o erro, implicará na subtração de informações essenciais acerca da pessoa com que se está contratando, no caso do casamento, contraindo núpcias. Tem por escopo proteger as partes do contrato, para que, se após a celebração venha a ser desvelado um erro, tornando a convivência impossível e inadmissível por parte da pessoa prejudicada, este pacto tenha tutela jurisdicional para ser anulado. Diferentemente do Direito Canônico, o matrimônio civil é nulo, porque ele existe de fato e de direito. A nulidade não é matéria prevista e tutelada no âmbito jurídico canônico.
O atual Código Civil Brasileiro, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Capitulo VIII – Da invalidade do Casamento, prevê nos arts. 1.548 a 1.558 as causas de nulidade admitidas no sistema jurídico vigente. De um modo muito especial, a matéria está regulamentada no artigo 1.556, que trata da nulidade por vício de vontade decorrente de erro essencial quanto à outra pessoa e no artigo 1.557 que considera os erros essenciais que atinge a pessoa do outro cônjuge, sendo estes, considerados impedimentos dirimentes privados, haja vista, que somente o cônjuge afetado pelo erro poderá peticionar pela nulidade de seu casamento¹⁰.
1.2. NOÇÃO DE ERRO: TIPOS DE ERRO
O erro consistindo em um juízo falso ou em um falso conhecimento de um objeto irá conter uma afirmação ou negação em relação a este mesmo objeto, não se adequando à realidade¹¹, provocando no entendimento uma certeza tal que a vontade passa a querer aquilo que o entendimento apresenta como bom¹².
Torna-se necessário compreender-se bem em que consiste o erro em si, sua natureza e qual a sua influência no negócio jurídico. Com efeito, o erro é um ato da inteligência que depende essencialmente, de um juízo falso; juízo que tem como causa a apreensão falsa da realidade (falsa rei apprehensio)¹³.
Quando falamos de erro, temos um ato praticado pela inteligência e pela vontade, contudo o mecanismo deste ato volitivo não se move quando não é estimulado; ou seja, não agirá se a inteligência não apresentar um objeto que atraía, que apeteça.
Segundo José F. Castaño, canonista e consultor na elaboração do novo CIC, [...la inteligencia, a causa de un error o falsa aprehensión, presenta a la voluntad un objeto distorsionado de la realidad objetiva, un objeto disconforme con la verdad
]¹⁴. Neste sentido, podemos aplicar a regra de direito contida no Digesto "nulla voluntas errantis est".
O Direito Canônico no código vigente, promulgado em 25 de janeiro de 1983, traz as normas que regulamentam a vida na comunidade eclesial. Assim, o erro está tratado nos seguintes cânones: cân. 188 (CCEO cân. 968 e cân. 185/17) que trata da renúncia a um ofício eclesiástico; cân. 1096 (CCEO cânn. 819 e 1082/17) que trata da ignorância; cân. 1097 (CCEO cân. 820 e cân. 1083/17) erro de pessoa; cân. 1099 (CCEO cân. 822 e cân. 1084); que trata do erro simples, o cânn. 1323, n. 2 e 1324, nn. 8 e 9 (CCEO c cân. 1413 e cân. 2202/17 e ss.) que trata do direito e causas penais.
O princípio geral quanto ao erro estabelecido no cân. 15 é, de que tanto o erro quanto a ignorância a respeito das leis irritantes, invalidantes e inabilitantes, não impedem a sua eficácia, assim sendo, sobre estas leis, o erro não produz nenhum efeito jurídico. O cân. 126 explicita uma exceção a este princípio geral, portanto, os atos contrários às leis contidas neste e realizados por erro, são válidos e a razão do legislador prever tal exceção, está em querer proteger o objeto próprio e específico da norma¹⁵.
O erro aparece pela primeira vez, no códex atual, no cân. 126, do Lib I, no Tit VII - Dos Atos Jurídicos, como vício do negócio jurídico em geral, podendo ser causa de nulidade:
Canon. 126: Actus positus ex ignorantia aut ex errore, qui versetur circa id quod eius substantiam constituit, aut qui recidit in condicionen sine qua non, irritus est; secus valet, nisi aliud iure caveatur, sed actus ex ignorantia aur ex errore initus locum dare potest actioni rescissoriae ad normam iuris
.
O cânon aponta o erro, ao lado da ignorância como possível defeito do ato jurídico que uma vez recaindo sobre a substância do ato jurídico ou sobre uma condição sine qua non
, poderá determinar a nulidade do ato, versando sobre os elementos substanciais de um ato jurídico¹⁶, pois, caso contrário será erro acidental e, assim sendo, à luz do próprio dispositivo legal, todo ato poderia ser rescindido ou anulado pelo juiz através de sentença¹⁷.
El fenomeno dell’errore, quindi, che consiste in una falsa conoscenza di una situazione reale e si concretiza nel formulare un falso giudizio su di essa (falsun iudicium de aliqua re) ossia nell’ affermare il falso come vero, può accompagnare le vicende umane personali e interpersonali, e pertanto richiede la fizzazione dei confini della protezione sia dello stesso errante reguardo allá responsabilitá per gli atti compuiti nell’errore, sia degli altri soggetti contro il pericolo di subire le conseguenze di un atto nullo o annullabile
¹⁸.
O cânon 126 é genérico e alcança todo o código. Trata da substância do ato jurídico, e, nesse sentido, podemos dizer que se o erro recair sobre uma qualidade da pessoa ou sobre o próprio casamento, o negócio jurídico será válido, ‘nisi’, a não ser que, o direito diga outra coisa.
Ao comentar o cânon, Michel Thériault, canonista francês, afirma:
"El error es un estado positivo: el sujeto emite un juicio que conduce a la decisión de la voluntad. Pero es un acto falso, porque la evolución del objeto hecha por la inteligencia no se corresponde con la verdad objetiva ¹⁹".
Olhando a teoria da consciência humana, temos clara a possibilidade do erro, e, nesse diapasão, adentramos no limite da condição humana, limite este, que propicia um estado de consciência permanente no erro – errare humanum est
.
1.2.1. ERRO DE DIREITO
O erro de direito – error iuris
, versa sobre a ordenação jurídica do negócio considerado abstrato; sobre a estrutura do negócio onde recaia a vontade do sujeito²⁰. Como negócio matrimonial, o erro de direito tratará sobre o conteúdo do pacto matrimonial que originam os direitos e deveres próprios dele mesmo²¹.
A legislação canônica com relação ao erro se mantém numa posição restritiva, embora o código vigente apresente uma maior abertura, em relação ao Código Pio-Beneditino admite o erro que versa sobre a coisa em si, sobre a instituição matrimonial, ou sobre a pessoa, porém, restringe a relação do erro quanto às qualidades²².
Assim, no ordenamento jurídico canônico temos: o erro de fato, o erro doloso e o erro de direito.
A sistemática do erro é considerada pelos canonistas como fundamental e com ela podemos pensar no estudo do erro no matrimônio, logo, é claro que o erro acerca das propriedades essenciais e da dignidade sacramental, vem incluso no erro de direito.
Neste ato de consentimento tomam parte duas faculdades próprias do homem: inteligência e vontade. A inteligência poderá apresentar-se viciada por um desconhecimento absoluto (ignorância) ou por existir um conhecimento errôneo, uma ideia falsa (erro)²³.
O erro deverá ser relevante e estar presente no momento da celebração e ser a origem desta, e, portanto, o matrimônio não ocorreria se o erro fosse desvelado. Implica, pois, num conhecimento equivocado da realidade podendo ser erro de direito, "error iuris, quando incidir sobre a natureza do matrimônio, ou seja, sacramental, ou ser erro de fato,
error facti" quando incidir sobre a pessoa com a qual se contrai matrimônio ou sobre determinada qualidade bem como, característica individual desta²⁴.
Caracteriza-se, o erro de direito, pelos indícios de imaturidade da pessoa, subdesenvolvimento físico, idade, falta de apetite genésico, falta de controle emocional, infantilismo, falta de desenvolvimento normal, etc. Também tem grande relevância o critério da educação que recebeu; amizades que teve; o meio cultural, especialmente quando segue um sistema muito atrasado, se viveu muito isolada, sem amizades do outro sexo, etc²⁵.
O erro de direito, exige, por parte de ambos os cônjuges, um conhecimento mínimo, tratado nos cân. 1055, §2²⁶ (CCEO cânn. 776 §1 e 2 e 1002) que versa sobre a dignidade sacramental e cân. 1056²⁷, sobre a unidade e indissolubilidade do matrimônio (CCEO cân. 817), sendo certo que estes cânones definem o matrimônio como objeto do consentimento²⁸.
Se o erro versar sobre a natureza do matrimônio, teremos o erro substancial que exige o mínimo de conhecimento a respeito do cônjuge com quem se pretende casar conforme o cânon 1096²⁹ § 1 (cân. CCEO 819) ou ainda, o erro a respeito do próprio casamento de acordo com o cânon 1099³⁰ (cân. CCEO 822) ³¹.
A Conferência Episcopal dos Bispos do Brasil - CNBB se manifestou no sentido de evitar o mencionado erro de direito
asseverando:
Cuidem os sacerdotes de verificar se os nubentes estão dispostos a assumir a vivência do matrimônio com todas as suas exigências inclusive a de fidelidade total, nas várias circunstâncias e situações de sua vida conjugal e familiar. Tais disposições dos nubentes devem explicitar-se numa declaração de que aceita o matrimônio tal como a Igreja o entende, incluindo a indissolubilidade
³².
O erro de Direito, ou erro iuris
é, portanto, o erro a respeito da natureza do próprio matrimônio, isto é, acerca do que constitui juridicamente o matrimônio, podendo ter por objeto a substância do matrimônio ou suas propriedades essenciais³³.
1.2.2. ERRO DE FATO
O erro de fato, divide-se em: erro da pessoa e erro de qualidades da pessoa. O erro de pessoa é aquele que se entende como sendo erro diante daquele que o contraente se casa (é um erro de identidade). O erro de qualidade poderá ser físico, psíquico, moral, religioso, social, etc.
Deixando de lado as diversas reflexões abrangentes e genéricas quanto aos erros, partiremos para o estudo dos erros que viciam o consentimento matrimonial.
No conteúdo textual do cân. 126, temos que o erro poderá surgir tanto num negócio jurídico, como sobre uma pessoa, conforme determina os cânn. 1097 e 1099.
Ao elaborar o cân. 1097, o legislador prevê três hipóteses: na primeira (cân. 1097 §1), aponta para o erro de pessoa propriamente dito e neste caso, como exigência do direito natural, o casamento restará inválido, haja vista tratar-se de um erro substancial e ter sido dado o consentimento a outra pessoa diversa da qual se pretendia casar.
Esse tipo de erro não traz maiores dificuldades³⁴. Um exemplo clássico é encontrado na Bíblia no Livro do Genesis 29, 16-25, onde Jacó pretende se casar com Lia e casa-se com Raquel, a irmã gêmea; outro exemplo seria os casamentos celebrados por procuração. Fato semelhante pode ser encontrado na Divina Comédia de Dante Alighieri, onde Francesca esposa-se de Granciatto, quando pretendia casar-se com o procurador de seu irmão Paolo (Inferno Canto V).
Como podemos observar a norma contida no cânon 1097 § 1 não pode ser aplicada em matéria matrimonial, pois, trata-se de um direito natural.
A segunda hipótese, cân. 1097 § 2, 1ª parte, trata do erro que recai sobre uma qualidade da pessoa e que ainda que seja a causa do contrato não dirime o matrimônio. Já na terceira e última hipótese, cân. 1097 § 2, 2ª parte, exceção à regra geral contida no cân. 126, o legislador prevê o erro sobre uma qualidade direta e principalmente desejada e, neste caso, o consentimento restaria viciado por erro de pessoa quanto a esta qualidade.
Esta qualidade direta e principalmente desejada vem quase que se transformar em uma condição "sine qua non" (cân. 126).
Para admitirmos o erro, teremos que verificar a validade do consentimento:
"Para que el consentimiento sea valido y el matrimonio se contraiga realmente, se requiere que este se ponga entre pessoas habiles juridicamente con recta intención y plena liberdad, manifetado legitimamente y con el debito conocimiento del objeto. Esta ultima condición no se verifica donde hay error..., en cuanto que no se adecúa a la realidade, constituyendo definida y propiamente el error³⁵..."
O legislador nos cânones 1055-1057 houve por bem trabalhar o objeto específico do contrato matrimonial, logo, o contraente ao dar seu consentimento o dá, alcançando também, uma determinada pessoa que ele escolheu para contrair matrimônio.
Assim sendo, diante de um contrato personalíssimo, as partes contraentes tornam-se objeto essencial do contrato, isto é, objeto