A ética do sobrevivente: Levinas, uma filosofia da derrocada
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Sobre este e-book
Ele parte em busca de uma filosofia tanto pessimista quanto otimista, para nós que sobrevivemos à sombra do evento traumático da derrocada e já próximos de abismos insuspeitados, até então inimagináveis – a título de exemplo, na possibilidade efetiva do fim do mundo, do nosso mundo, por assim dizer, no sentido literal da palavra.
Ele propõe uma leitura de Levinas. Para isso, ele se interessa mais particularmente por dois momentos da obra, digamos, simplesmente e correndo o risco de uma ligeira simplificação, o início e o fim: da derrocada pela que passa o cativo (os textos do período de guerra – os Cahiers de captivité, os romances inacabados e Da existência ao existente) até o sobrevivente e sua ética implacável.
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A ética do sobrevivente - François-David Sebbah
1. Avisos
Como podemos e devemos viver juntos hoje, nós que somos sobreviventes? Este será o propósito deste ensaio, exigido pela urgência e pela gravidade do momento em que estamos vivendo – e que se alimenta de uma leitura inédita de Levinas (baseada em seus Carnets e esboços de romances recentemente publicados).
1.1. Primeiro aviso
Este livro não mencionará explicitamente Fukushima, um dos nomes da catástrofe tecnológica, da catástrofe inextricavelmente natural e técnica; nem o Antropoceno, nome contemporâneo para o que a marca deixada pelo humano tem de radical e aterrorizante sobre a terra que ainda o carrega. Tampouco abordará, pelo menos diretamente, o colapso de sentido que representam os genocídios dos séculos XX e XXI. Ele também não evocará imediatamente a contestação tão rápida, como acontece no dia a dia, de valores que pelo menos oficialmente pareciam evidentes e que agora já não parecem mais – enquanto grandes nações do mundo levam ao poder aqueles que não hesitam em contradizê-los –, e tudo isso na câmara de eco¹ (já produtora?) do zumbido estrelado de uma globalização digital onde circulam mercadorias e pseudoinformações, e onde os seres humanos de carne e de osso se contraem em si mesmos – angústia de alguns, medo de outros. Mundo em que a fina película da civilização é rasgada pela angústia dos refugiados, pela loucura mortal dos ataques terroristas – e tantas outras feridas, tantas outras dilacerações.
É claro que o mundo em que vivemos não é apenas isso – nada de pessimismo excessivo. Nem tudo o que nos chega promete exclusivamente destruição e deserto de sentido. Mas o mundo em que vivemos, enquanto escrevo, em 2017, permite que isto aflore com máxima evidência. Não nos juntarmos, de olhos fechados, ao círculo dos profetas do infortúnio não deve nos levar a nos unirmos, de olhos fechados, ao círculo dos avestruzes que fazem política.
Este livro não lida explicitamente com nada disto
, apenas fala sobre isto
.
Segundo informações recentes, alguns metafísicos contemporâneos pensam ter estabelecido o hipercaos de um mundo sem nós mesmos, ou então, de um mundo para além do ateísmo e da religião, a possibilidade de um Deus que não deixaria os espectros essenciais
, as mortes horríveis do século, sem justiça.² O mundo sem nós, e novamente a tese de que Deus ainda não existe
, a chamada tese da inexistência divina
(de um Deus possível, mas de maneira alguma previsível, que viria como a justiça ela própria), alivia. Quanto a mim, não compartilho desses consolos.
Este livro atesta que seu autor fala como um sobrevivente e a partir da experiência da derrocada – uma condição irreparável – ainda que essa experiência não tenha, biograficamente, sido diretamente a sua.³ Em termos históricos, seu autor fala a partir da segunda metade do século XX, quando nasceu na França. Não se trata, contudo, de uma questão de sequência histórica e situada socialmente, mas da revelação de uma estrutura fundamental do existir humano, de um existencial
se preferirmos; ainda mais: trata-se talvez mesmo da estrutura e da tonalidade fundamentais do existir humano como tal: o existir humano como estar à beira do abismo
.
Não estaríamos falando então nada menos que da verdade do humano. Esta verdade, no entanto, não é única e nem primeiramente melancólica, apesar de algumas aparências: a felicidade e o futuro nela se encontram.
1.2. Segundo aviso
[...] em plena retirada, ou melhor, no meio da derrocada, ou melhor, junto à derrocada, no meio dessa espécie de decomposição de tudo, como se, não um exército, mas o próprio mundo inteiro, e não apenas em sua realidade física, mas também na representação que dele pode fazer nossa mente (mas talvez tenha sido também a falta de sono, o fato de que por dez dias nós praticamente não dormíamos, sempre seguindo a cavalo), então, o mundo estivesse a ponto de se despojar, se desintegrar, desaparecer em pedaços, escorrer como água, em forma de nada, e duas ou três vezes alguém gritasse para ele não continuar (quantos, eu não sei, nem quem eles eram: imagino, feridos, ou escondidos nas casas ou numa vala, ou talvez estes civis que se obstinavam incompreensivelmente em vagar arrastando uma mala furada ou empurrando à frente deles carrinhos carregados de bagagem sem sentido (e até nem mesmo bagagem: coisas que provavelmente são inúteis, simplesmente para não vagarem com as mãos vazias, para terem a ilusão, a impressão, de carregarem consigo, de possuírem qualquer coisa desde que estivesse ali colada – ao travesseiro perfurado com o guarda-chuva ou à fotografia colorida dos avós – a noção arbitrária de preço, de tesouro) como se o que importasse era andar, fosse numa direção ou noutra [...].
Estas linhas, Levinas não as escreveu. Elas vêm das mãos de Claude Simon, em La Route de Flandres⁴.
No entanto, os temas da derrocada, do mundo que se decompõe, que cai em pedaços, dos quase fantasmas vagando pelas estradas, carregados de bagagens absurdas, se encontram no interior dos Carnets de captivité e, sobretudo, nos romances inacabados de Levinas, levados ao conhecimento público por meio de publicações recentes.⁵
Levinas trabalhou por muito tempo num projeto de romance, nunca concluído, abandonado. Lendo os rascunhos recém-publicados, podemos razoavelmente supor que, na escrita literária, no romance, faltou a Levinas alguma coisa como a linguagem de Claude Simon. A linguagem da derrocada – genitivo subjetivo e objetivo – não chegou à sua pena. Alguma coisa como a linguagem de Patrick Modiano tampouco chegou até ele para descrever a vida dos sobreviventes no eco – a repercussão da derrocada – às vezes próxima, às vezes já perdida no nevoeiro do distante, mas ainda ali, obsessiva na vida dos sobreviventes –, entretanto, sem uma forma distinta.
Os romances de Levinas desmentem em demasia a experiência de provação que querem traduzir: uma narrativa excessivamente clássica, exageradamente presa nos códigos do romance do século XIX, produzindo com pleno domínio uma narrativa e um mundo: um narrador dotado de capacidade criadora, um autor impecável, um mundo restaurado. A linguagem da derrocada está faltando. Vê-se, nesse ponto, reconstituir-se o sentido na atividade de um sujeito. A derrocada se encontra negada na escrita que procura expressá-la. Um dos personagens do romance, sobrevivente da derrocada, tenta atacar o conferencista
, este personagem que sabe tão bem contar a história. Compreende-se. De certa forma, é o romancista Levinas que se levanta contra si mesmo: os romances não serão publicados.
No entanto, aqueles que leram, fosse apenas uma página de um trabalho publicado de Levinas, sabem-no sem dúvida: Levinas é um escritor, mas a singularidade de sua linguagem chegará por caminho diverso de suas tentativas de escrita literária, chegará pela escrita dos livros de filosofia.
A derrocada – exemplarmente manifestada no que Levinas chama de meu palco de Alençon
–, esta é a nossa hipótese, tem valor de épochè levinasiana: ela suspende a tese da existência do mundo. Porém, essa épochè fenomenológica não é uma redução fenomenológica já que ela não leva a nenhum fundamento sólido sobre o qual apoiar – e certamente não conduz a um ego transcendental
absoluto, fonte e garantia de qualquer sentido. A suspensão descobre um colapso sem fundo, uma lacuna: ausência de sentido, ausência de valor, e até mesmo falta de qualquer mundo
, uma vez que a percepção se esvai do mundo
(como totalidade aberta nos seus horizontes).
Portanto, experiência que não é apenas mais uma entre outras, isto considerando que a experiência pressuponha sempre uma atividade que já controla o que lhe acontece: ela é a provação da deserção do mundo. Desvelamento ainda bem mais vertiginoso do que aquele pelo qual o último Husserl, despindo o mundo de seu manto de idealidades matemáticas, o reconduz em direção às sínteses passivas e nunca concluídas por onde o ego se surpreende vendo-se irredutivelmente transbordado: esse mundo da vida
, ali – Merleau-Ponty o pressentirá – é incoatividade⁶, fazendo-se promessa de ser e de sentido. A derrocada como épochè, no sentido levinasiano, não promete nada, não oferece nada. Ela nos deixa à beira do abismo: se as sínteses ainda estão presentes, é apenas na medida em que testemunhamos sua deserção. Mundo quebrado
, dirá De l’existence à l’existant; mais exatamente, experiência alucinante de uma decomposição do mundo.
A partir desse palco primitivo
, sob a derrocada
, ou como os fenomenólogos a chamam, sob a épochè
, toda a obra de Levinas se deixa clarificar por uma luz violenta, que até agora, porém, chamou pouco a atenção de seus leitores. Uma fisionomia desta filosofia, para não dizer – seríamos tentados a pensar – o seu rosto mais secreto, o mais significativo, vem à tona, ainda que não diga tudo sobre a obra em sua extensão se soubermos considerar que a épochè levinasiana é a derrocada. Ou o contrário. O