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Outras histórias: Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África
Outras histórias: Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África
Outras histórias: Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África
E-book612 páginas7 horas

Outras histórias: Ensaios sobre a composição de mundos na América e na África

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Sobre este e-book

Um dos pontos de partida do projeto que gerou este livro consistia em investigar e analisar etnograficamente práticas e discursos que colocam em questão dois dos grandes temas sobre os quais tanto o Brasil, como 'nação', quanto as ciências sociais 'brasileiras' se estruturaram: os fenômenos de contato e mistura em geral denominados mestiçagem e sincretismo. Ou seja, tratava-se de retomar as questões levantadas por esses processos a partir de um ângulo propriamente etnográfico, permitindo, assim, a elaboração de contribuições que pudessem efetivamente enfrentar os clichês dominantes.

A proposta implícita nesse trabalho coletivo é a de uma permanente busca por meios para revelar, no sentido fotográfico do termo, mundos e pensamentos que permanecem reprimidos na maior parte das descrições existentes sobre "encontros", que costumam tomar como quase natural que a mistura leva à integração e que o múltiplo só serve para fazer o um. Trata-se de desfazer o privilégio concedido à fusão e à integração como resultado desses encontros, enfatizando, ao contrário, a constância da diferenciação.

Como bem define o antropólogo José Carlos Gomes dos Anjos, prefaciador da obra, "este livro promove um deslocamento dos exercícios mais imediatos de contraposição às formas colonialistas de pensamento por meio de um percurso por intensidades que dispensam a captura identitária, o ressentimento e os ajustes de contas teóricos. Trata-se de pensar o que pode ser a antropologia quando o que está em jogo são as relações entre diferentes povos que se demarcam há cinco séculos das formas coloniais de imposição de regimes genocidas de pensamento. As narrativas dominantes que sustentam um implausível sentido de nação não são aqui desconstruídas, criticadas nem substituídas, mas magistralmente deslocadas. Os mestres desses deslocamentos — quilombolas, encantados, cabralistas… — são também os senhores dos modelos pelos quais devem ser interpretados. Nós nos habituamos a pensar que as narrativas dominantes sobre o encontro das três raças e seus graus de mestiçagem como uma ideologia que a todos submergiria, menos aos suficientemente críticos, os acadêmicos. A revelação deste livro é que ali onde poderíamos crer que se encontram as pessoas menos instrumentalizadas para desmontar esse mito encontramos as formas mais sofisticadas de pensar e trabalhar com as diferenças. O que experimenta é a possibilidade de que numa multiplicidade de situações de encontros das forças heterogêneas dos não herdeiros da modernidade ocidental estejam vigorando outros regimes de visibilidades e outras narrativas sobre encontros e misturas, diferenças, passagens e separações. Sob tessituras inusitadas, uma minoria em proliferação esmagadora, um tanto ou quanto alheia às cansativas operações críticas das diversas pedagogias da nação, instaura conexões, cria modos singulares de existência e fabrica passagens sob regimes especiais de interdições (que vários autores neste livro chamam de contramestiçagem e contrassincretismo). O que o livro oferece é um quadro em aberto sobre como os encontros entre forças de descendentes de africanos e intensidades indígenas geram gramáticas das diferenças largamente independentes dos brancos e suas vãs filosofias."
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento28 de jun. de 2021
ISBN9786559051786
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    Outras histórias - 7Letras

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    Sumário

    Apresentação

    Prefácio

    José Carlos Gomes dos Anjos

    [Universidade Federal do Rio Grande do Sul]

    Pensamento como percurso: ensaio sobre encontros afropindorâmicos

    Barbara Cruz

    Reflexiones sobre los predicados esenciales y el pliegue en el pueblo de Zaña (Perú)

    Luis Reyes Escate

    Trajetórias de resistência política, espiritual e epistêmica na Rede de Ananse e no Ilé Oggún e Yemayá (Bogotá, Colômbia)

    Luis Meza Álvarez

    De retomadas e ressonâncias espirituais no Pacífico Sul colombiano

    Lucas Marques

    A arte das vontades e a relação afroindígena no assentamento Dom Helder Câmara (Ilhéus, Bahia)

    Priscilla Mello

    Pescarias e alianças: estratégias kilombolas frente à guerra cósmica

    Luiza Dias Flores

    A explicação quilombola: composições territoriais e existenciais do quilombo Buriti do Meio (Minas Gerais)

    Gustavo Ferreira Fialho

    Nascimento, tempo e espaços de ser no encantamento: sentidos do encantar em um terreiro de tambor de mina em Monte Alegre (Pará)

    Anderson Lucas da Costa Pereira

    Variações e divergências na composição das linhas na encantaria marajoara

    Kauã Vasconcelos

    A Jurema no Recife e seus povos

    Noshua Amoras de Morais e Silva

    Variações Fulni-ô sobre a mistura e o segredo da contramestiçagem

    Ellen Fernanda N. Araujo

    Sobre modos de lidar com a terra: homogeneização, diferença e mistura

    Gabriel Holliver

    Contramestiçagem e contracolonização nas práticas de jovens ativistas na cidade de Praia (Cabo Verde)

    Natalia Velloso

    Misturas, mestiçagens e relações raciais em Moçambique

    Helena Santos Assunção

    Honrar los sagrados espiritus: rehabilitar relaciones entre vivos y muertos para armonizar el territorio en el Río Atrato

    Natalia Quiceno Toro

    Posfácio – Recontando outras histórias

    Marcio Goldman

    Referências Bibliográficas

    Sobre os autores

    Texto de orelha

    Apresentação

    Apresentar um livro ou um conjunto de textos costuma servir para autenticar de antemão a autoridade de ‘especialistas’ dos que são apresentados assim como daquilo que se apresenta (o que os especialistas conhecem e sabem). Costuma servir, também, para antecipar ideias e conclusões antes que o caminho que a elas conduziu seja de fato conhecido. Decidimos tentar evitar esse caminho que consistiria em dizer não apenas quem somos, de onde viemos, o que fizemos e fazemos, mas sobretudo o que supostamente sabemos… Preferimos lembrar, com a filósofa Isabelle Stengers, que se há alguma importância nas apresentações, esta reside muito mais no modo de se apresentar do que em seu conteúdo propriamente dito. Porque nossa relação com eventuais leitoras e leitores será muito diferente se nos apresentarmos como especialistas que conhecem e sabem, ou se expusermos o que aprendemos com todas as incertezas, dificuldades, tateamentos, desconhecidos que a prática da antropologia implica. Modo de apresentação que evidentemente só pode aparecer em conjunto com o que é apresentado. Limitamo-nos, pois, aqui a algumas informações que podem ter alguma importância e deixamos alguns poucos comentários sobre os textos aqui reunidos para um posfácio onde poderão ser lidos depois que a substância desses textos for conhecida por leitoras e leitores.

    Este livro se origina e, de algum modo, consiste em um fechamento parcial do projeto de Pesquisa Relações Afroindígenas: Teorias Etnográficas da Mistura, do Sincretismo e da Mestiçagem, desenvolvido entre os anos de 2017 e 2020 e financiado pela Chamada Universal MCTI/CNPq N˚ 01/2016 (Faixa C). Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por ter possibilitado o desenvolvimento dos trabalhos e também ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), Museu Nacional, UFRJ, pelo espaço institucional para o desenvolvimento do projeto, assim como pela publicação de seus resultados na forma deste livro.

    Em função dos conhecidos problemas com os cronogramas de liberação de recursos, a equipe de pesquisa sofreu algumas alterações, o que não significou nenhuma mudança de fundo em nossos objetivos iniciais. Além das autoras e autores que assinam os textos do livro, o projeto contou ainda, em diferentes momentos e de diferentes formas, com a participação de Camila Bevilaqua Afonso, Cecília Campello do Amaral Mello, Gabriel Banaggia de Souza, Julián Antonio Moraga Riquelme, Kelly Regina Santos da Silva, Lucinea dos Santos Ferreira, Luisa Elvira Belaunde, Mauricio Machado Siqueira Filho e Monique Barbosa Costa. Também foram interlocutores fundamentais Clara Mariani Flaksman, Edgar Rodrigues Barbosa Neto e Olavo de Souza Pinto Filho. A todas e todos agradecemos muito. Bem como a Marcia Rinaldi de Mattos e Noshua Amoras de Morais e Silva pela revisão dos originais.

    Os objetivos do projeto, muito grosso modo, consistiam em investigar e analisar etnograficamente práticas e discursos que colocam em questão dois dos grandes temas sobre os quais tanto o Brasil, como ‘nação’, quanto as ciências sociais ‘brasileiras’ se estruturaram: os fenômenos de contato e mistura em geral denominados mestiçagem e sincretismo. Ou seja, tratava-se de retomar as questões levantadas por esses processos a partir de um ângulo propriamente etnográfico, permitindo, assim, a elaboração de contribuições que pudessem efetivamente enfrentar os clichês dominantes. Para isso, propusemos seguir a pista do que temos denominado relação afroindígena e contramestiçagem,¹ de modo a possibilitar a recuperação da riqueza de encontros que em geral são submetidos à sobrecodificação das categorias sociopolíticas e intelectuais dominantes.

    Os quinze textos que se seguem apresentam ensaios etnográficos de casos que se distribuem por três países na América do Sul (Brasil, Colômbia e Peru) e dois na África (Cabo Verde e Moçambique). Com apenas duas (relativas) exceções, todos tratam de situações que poderíamos considerar africanas, no sentido de que trazem o que Nina Friedemann e Jaime Arocha denominaram "huellas de africanía":² não pegadas formando uma trilha que poderia conduzir a uma origem (interpretação que serviu de base a inúmeras críticas à noção), essas huellas significam muito mais as marcas de uma experiência africana que se desenvolveu, a partir do século XVI, tanto em terras situadas no continente africano quanto no americano. O que significa que os países ou estados-nação onde foram conduzidas as investigações são muito menos importantes do que essa experiência afro que não é homogênea, mas que de algum modo é comum a todas as situações estudadas. Experiência cujo ponto central é como fazer vida na irrupção de uma história catastrófica e genocida que, a partir do século XVI, atinge africanos e ameríndios: escravização, genocídio, colonialismo. História daquilo que se denomina orgulhosamente modernidade ocidental, história de todos nós, mas em relação à qual, como veremos, linhas de fuga nunca deixaram de ser traçadas.

    Acreditamos, também, que o caráter coletivo deste trabalho é essencial face à dificuldade de descrever e compreender as potências em jogo nos casos estudados por meio do nosso vocabulário conceitual tradicional. A proposta implícita nesse trabalho coletivo é a de uma permanente busca por meios para revelar, no sentido fotográfico do termo, mundos e pensamentos que permanecem reprimidos na maior parte das descrições existentes sobre encontros, que costumam tomar como quase natural que a mistura leva à integração e que o múltiplo só serve para fazer o um. Trata-se, para nós, de desfazer o privilégio concedido à fusão e à integração como resultado desses encontros, enfatizando, ao contrário, a constância da diferenciação.

    Esse caráter coletivo do nosso trabalho vem sendo elaborado há algum tempo em algumas instâncias. A mais importante ou mais duradoura talvez seja o espaço que vem sendo construído desde 2005 no contexto do PPGAS-Museu Nacional-UFRJ. Criado e coordenado por Eduardo Viveiros de Castro, o Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI) se ampliou e passou a ser denominado Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi). Mais, ou menos, do que um núcleo ou laboratório de pesquisa (o que ele também é), sempre gostamos de imaginar o NAnSi como um desses interstícios de que fala Stengers, destinados ao estabelecimento de um meio dentro da Universidade capaz de, ao mesmo tempo, aproveitar o que esta pode ter de melhor (e o trabalho coletivo sem dúvida está em primeiro lugar) e de proteger contra o que ela tem de pior (e que não é pouca coisa). De fato, ao longo desses mais de quinze anos, o NAnSi tem servido como ponto de encontro ou de encruzilhada de ideias, pesquisas e elaborações com origens as mais diversas. Mais de 300 reuniões (nos mais variados formatos) foram realizadas, e, além disso, estabeleceu-se uma rede entre um grande número de pesquisadores de diferentes instituições e países que funciona, justamente, nos interstícios do sistema institucional mais formal. É possível, assim, dizer que os textos que se seguem são de algum modo, e ao mesmo tempo, o resultado e a matéria desse trabalho coletivo.

    Finalmente, para encerrar uma apresentação que foi prometida como curta, um agradecimento para lá de especial a José Carlos Gomes dos Anjos pela gentileza em aceitar escrever o lindo prefácio que abre este livro. José Carlos é um desses poucos intelectuais em quem temos que pensar quando o pior da vida acadêmica nos faz querer deixá-la. Tê-lo como um de nossos parceiros e aliados é uma alegria difícil de exprimir; tê-lo introduzindo nosso livro é uma honra gigantesca.

    À memória de Peter Gow (1958-2021)

    Por ‘Of Mixed Blood’ e muito mais

    Prefácio

    José Carlos Gomes dos Anjos

    [Universidade Federal do Rio Grande do Sul]

    Deparei com artigos do organizador desta coletânea sobre a possessão na religiosidade afro-brasileira (Goldman, 1984, 1985) durante a minha pesquisa de mestrado em 1990. Vinculei minhas intuições e descobertas de campo às imensas possibilidades que se abriam sob a generosa perspectiva de ver, nos rituais, pessoas como multiplicidades, em processos nômades de composição com os orixás. Que os rituais que engendram essas composições deveriam ser lidos a partir dos modelos de interpretação daquelas mesmas pessoas que engendram e são engendradas nessas composições me parecia uma novidade e um desafio.

    Sobretudo, me parecia um oásis no imenso deserto de textos sobre conformações afro-brasileiras que mal disfarçavam um desprezo colonialista por seus objetos de classe e raça inferior, como então dizia sem pudor a antropóloga Alba Zaluar (1986, p. 115) num dos manuais de metodologia da época. Para pesquisadores negros como eu, que precisam compor a negrura de seus encontros antropológicos com outros sujeitos também enegrecidos por seus devires contracoloniais, a literatura antropológica nacional era simplesmente asfixiante. Porque se o ser do negro não é nunca um dado, mas o resultado de uma composição com outros devires negros e processos de enegrecimento, a ínfima e precária inserção, na pós-graduação, de estudantes negros exigia outras ferramentas que não as dos manuais feitos na medida das aventuras antropológicas de indivíduos oriundos das classes médias brancas. Quando se fazia necessário compor um lugar de pesquisa que não se fechasse na aridez de uma lógica do ressentimento identitário e que simultaneamente não nos obrigasse a renegar as forças que nos atravessam e que conformam regimes outros de sensibilidades, a antropologia praticada no país nos propunha a deserção. É nesse ambiente de desorientação que os inícios de uma antropologia simétrica me pareceram uma lufada. Creio que é essa mesma abertura que os trabalhos de Goldman continuam a representar para os vários autores negros de diversos capítulos deste livro.

    Cerca de uma década após o encontro com seus textos, aproveitei a única ocasião que tive de um encontro presencial para sugerir um compromisso distante e incerto: lecionar num dos semestres do primeiro programa de doutoramento em meu país de origem, Cabo Verde. Eu estava, já como professor na UFRGS, a colaborar em um convênio para a implantação de um programa de pós-graduação em Ciências Sociais na UNICV (Universidade de Cabo Verde). Que de um fortuito encontro nos corredores da ANPOCS pudesse sair uma aceitação imediata me parecia então altamente improvável, sendo eu absolutamente desconhecido e irrelevante naquele meio acadêmico. Mas ocorreu, assim mesmo, uma aceitação imediata e tratativas posteriores, que tornaram possível à primeira geração de doutorandos em Ciências Sociais da UNICV serem indelevelmente marcados pelas possibilidades de uma antropologia simétrica e por múltiplas ferramentas e vertentes para uma descolonização de saberes.

    Meu convite a Marcio Goldman para lecionar na UNICV tinha a ver com um desejo que vejo consumado aqui. Sob a tarefa de recrutar alguns professores de universidades brasileiras para que lecionassem e orientassem nesse primeiro programa de doutoramento da nascente universidade, me propus organizar uma linha de pesquisas adequada a um país recém-saído da colonização que, portanto, pudesse ter um teor do que hoje, com Nego Bispo, podemos chamar de uma postura contracolonial. É claro que o que foi fecundado na antropologia do Museu Nacional foi gestado em mais de uma década de experimentações e colaborações nacionais e internacionais densamente ramificadas. Em Cabo Verde ficou plantada apenas uma semente.

    Um prefácio pode ser várias coisas. Neste caso, aproveito a ocasião para uma pequena homenagem à felicidade de um encontro entre meus anseios de deslocamentos contracoloniais e um modo de praticar a antropologia em que o pensamento nativo intervém e desloca formas de pensamento e operações estabelecidas na disciplina. Este pré-texto é uma homenagem não apenas à pessoa (o que eclode aqui só pode ser suportado por um coletivo heterogêneo), mas ao acontecimento que conforma um conjunto de possibilidades.

    A homenagem consiste aqui em expor a forma como o livro me impacta, o ângulo pelo qual os textos aqui reunidos, de modos diferentes, me deslocam em relação aos meus exercícios mais imediatos de me contrapor às formas colonialistas de pensamento. O deslocamento se faz aqui por um percurso por intensidades que dispensam a captura identitária, o ressentimento e os ajustes de contas teóricos. Outras possibilidades, bem mais interessantes, se abrem. Impacta-me este livro como um acontecimento na ordem das possibilidades de se pensar o que pode ser a antropologia quando o que está em jogo são as relações entre diferentes povos que se demarcam há cinco séculos das formas coloniais de imposição de regimes genocidas de pensamento. As narrativas dominantes que sustentam um implausível sentido de nação não são aqui desconstruídas, criticadas nem substituídas. Elas são magistralmente deslocadas, quando formas sofisticadas de elaboração de pertencimentos e deslocamentos, intensidades e diferenças conformam fronteiras e interpenetrações inusitadas. Os mestres dessas composições – quilombolas, encantados, cabralistas... – são também os senhores dos modelos pelos quais devem ser interpretados. Inventariar as múltiplas possibilidades de se articular as diferenças é um modo de não falar da extrema pobreza do sentido burguês da unidade nacional, sua gramática retorcida em torno das figuras retóricas do mito burguês (Barthes, 2003, p. 170-172), como a vacina (alguns genocídios não apagam o fato de que a mistura racial aconteceu e ela é constitutiva da brasilidade) e a tautologia (o brasileiro é um povo miscigenado porque é miscigenado).

    Habituamo-nos a pensar que as narrativas dominantes em torno do encontro das três raças e seus graus variáveis de mestiçagem se constituem como ideologia que a todos submerge, menos àqueles que são suficientemente críticos (acadêmicos). A revelação impactante do livro é que ali onde poderíamos crer que se encontram as pessoas menos instrumentalizadas para desmontar o mito nacional encontramos o luxo das formas mais sofisticadas de se pensar e trabalhar com as diferenças. O que aqui se experimenta é a possibilidade de que numa multiplicidade de situações de encontros das forças heterogêneas dos não herdeiros da modernidade ocidental, estejam vigorando outros regimes de visibilidades e outras narrativas sobre encontros e misturas, diferenças, passagens e separações. Sob tessituras inusitadas, uma minoria em proliferação esmagadora, um tanto o quanto alheia às cansativas operações críticas das diversas pedagogias da nação, instaura conexões, cria modos singulares de existência e fabrica passagens sob regimes especiais de interdições (que vários autores neste livro chamam de contramestiçagem e contrassincretismo). O que o livro oferece é um quadro em aberto sobre como os encontros entre forças de descendentes de africanos e intensidades indígenas geram gramáticas das diferenças largamente independentes dos brancos e suas vãs filosofias.

    O que está em jogo nos textos seguintes não são nem alternativas, nem contraposições à narrativa da fusão das três raças; trata-se de descortinar, em cada lugar de encontro de forças culturais diferentes das colonizadoras, uma gramática da aproximação, do afastamento e da separação, da confluência e da transfluência (Bispo dos Santos, 1995). No inventário sempre em aberto dessas gramáticas afroindígenas dos encontros, conceitos como aproximação, afastamento, variação, distinção cultural, emergem articulados não a problemas canônicos da antropologia, mas àqueles que os nativos se colocam, que devem então passar a frequentar, de algum modo, a antropologia. Em favor de teorias etnográficas do contrasincretismo e da contramestiçagem, formas marginais de pensamentos ocidentais podem ser convocadas a ajudar a encontrar a melhor tradução cultural, mas não a definir os problemas que importam.

    Uma mudança no regime de relações entre pesquisadores e seus interlocutores em campo pressupõe uma genuína amizade e, sobretudo, a confiança na possibilidade de se engendrar boas descrições a partir das perspectivas sagazes e das habilidades dos nativos para lidarem com seus próprios e com os nossos problemas comuns a partir de ângulos inusitados. Uma especial sensibilidade e uma aproximação feita de afetos que potenciam o pensamento devolvem aos nativos o poder da definição do que realmente importa pensar em comum. Uma abertura para as múltiplas teorias etnográficas da mistura e da diferença é o que esse conjunto de operações oferece como uma lufada. É de novo não apenas possível pensar com as operações afroindígenas, mas, sobretudo, a partir de uma multiplicidade de lugares que não apenas a de um jovem pesquisador branco estranhando culturas diferentes da sua para voltar para casa com novidades detalhadas quanto às outras possibilidades de se ser humano.

    Este livro é uma janela para as dimensões contracoloniais de pessoas e povos que pensam nas bordas do grande desastre e que se fazem, de modos inusitados, herdeiros das possibilidades de se criar formas humanas em que pese as imensas probabilidades de genocídio. O nativo aqui é o lugar de onde emergem as redefinições das possibilidades de ver, ouvir e tornar sensíveis, de outro modo, as tramas modernas dos encontros de raças. Trata-se de um livro sobre os pequenos encontros à revelia do grande desencontro.

    Servir de cavalo de santo para as formas de pensamento que o colonialismo não conseguiu apagar é uma forma de política que torna audível e visível em outros lugares aquilo que os Outros dos antropólogos já dizem e mostram em seus lugares. É claro que nem uma entidade, nem o sentido de um acontecimento nos tomam sempre da mesma forma. Por exemplo, Hilário, amigo de Kauã, nos explica que um caruana encantado só afirma e inicia um trabalho com a luz apagada, no escuro, onde pode chegar com a firmeza do seu segredo. Já na Mina, desde o primeiro barravento e o desequilíbrio do médium, até a chegada do caboclo no cavalo, tudo ocorre na maior claridade, para quem quiser ver. De modo similar, na antropologia aqui praticada, o sentido do encontro afroindígena ora ocorre de reverberar no escuro dos pequenos detalhes das práticas cotidianas, ora de forma estrondosa nas declarações nativas carregadas de teorias. De um e de outro modo, os textos aqui reunidos, como cavalos desses sentidos, inscrevem em outros lugares, que não nos terreiros (onde sempre se sabe), o fracasso do colonialismo. Continuando na linguagem da religiosidade afro-brasileira, se poderia dizer que as formas de pensamento afroindígenas apenas irradiam, já que em sua plena potência essas experimentações destruiriam as fronteiras da disciplina. Mas essa irradiação já é suficiente para uma desestabilização dos regimes de visibilidades e de enunciação ao ponto em que se pode falar de um acontecimento discursivo.

    Se seguirmos Foucault (1994, p. 520) no sentido de que a verdade da ficção não reside em fazer ver o invisível, mas em fazer ver o quão invisível é a invisibilidade do visível, podemos alinhar essa antropologia simétrica praticada neste livro a uma estética que mostra o quanto quilombolas, indígenas, jovens suburbanos… exibem seus planos de existência a uma maioria surda. Uma maioria que quando ataca terreiros é incapaz de ouvir o amigo de Anderson que, de uma teoria e prática do encantamento, extrai: as pessoas precisam voltar a se encantar, só assim a gente ia ter uma possibilidade de ter um mundo mais humano.

    Tratar-se-ia, então, nessa antropologia, de uma estética da política contracolonial dos afroindígenas, a contribuição que a antropologia poderia oferecer enquanto uma sensível aproximação política. Uma linha de pesquisas que se faz como forma de luta contra as formas de colonização do pensamento dos povos que o ocidente ameaça permanentemente de genocídio é uma estética enquanto pode desestabilizar o grande equívoco da antropologia, a crença nas possibilidades de inserir a razoabilidade dos Outros no mesmo plano de uma metafísica ocidental simplesmente ampliada – esse é o acontecimento.

    Porto Alegre, 28 de fevereiro de 2021.

    Eu cheguei junto com vocês, andando com vocês, respeitando a fronteira. Esta é a questão. O saber orgânico anda com o saber sintético respeitando a fronteira. O saber orgânico chega na fronteira, e a fronteira para o saber orgânico é um espaço de diálogo. Então, cada vez que nós encontramos um outro saber a gente dialoga com ele, na boa. Se precisar aprender a gente aprende. Mas aprender aquele outro saber não significa que a gente perdeu o nosso, a gente estendeu o nosso saber. A gente enriqueceu, e agora nossa fronteira é mais à frente um pouco. É até o outro saber que a gente não sabe. O saber sintético é diferente. Quando ele chega na fronteira, ele não tem fronteira, ele tem limite, e ele não consegue dialogar com outro saber do conflito. Quando ele chega no outro saber ele puf!, não reconhece o outro saber, não dialoga e chega no limite. Então, como é que eu cheguei neste lugar com todos nós aqui? Vocês viram que esses conceitos, eles vão se construindo segundo as nossas conversas. Às vezes eu tenho a felicidade de chegar primeiro em um lugar e esperar os outros que ainda não chegaram. Mas também às vezes eu chego e vocês já chegaram e eu respeito quem chegou.

    antonio bispo dos santos

    Precisamos desesperadamente de outras histórias, não dos contos de fadas, em que tudo é possível para os corações puros, para as almas corajosas ou para as pessoas de boa vontade reunidas, mas das histórias que contam como situações podem ser transformadas quando aqueles que as sofrem conseguem pensá-las juntos. Não histórias morais, mas histórias ‘técnicas’ a propósito desse tipo de êxito, das ciladas de que cada uma precisou escapar, das imposições cuja importância elas reconheceram. Em suma, histórias que recaem sobre o pensar juntos como ‘obra a ser feita’. E precisamos que essas histórias afirmem sua pluralidade, pois não se trata de construir um modelo, e sim uma experiência prática. Pois não se trata de nos convertermos, mas de repovoar o deserto devastado de nossa imaginação.

    isabelle stangers

    (Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro)

    Pensamento como percurso: ensaio sobre encontros afropindorâmicos

    Barbara Cruz

    Introdução

    Este texto³ tem por fio condutor as proposições do pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos a respeito da noção de transfluência, procurando pensar suas ressonâncias em diversos contextos etnográficos de religiões de matriz africana. Ainda que não se trate de um trabalho propriamente etnográfico, está, não obstante, informado e infletido por reflexões sobre meu próprio trabalho em andamento acerca do terecô⁴ – religião de matriz africana eminentemente praticada na cidade de Codó, no Maranhão, onde a incorporação de encantados da mata desempenha papel central. Desse modo, o texto se divide em duas partes: na primeira, analiso a obra de Bispo dos Santos, com ênfase, sobretudo, na noção de transfluência; na segunda, proponho um movimento com as águas de seu pensamento a fim de pensar suas ressonâncias no campo das religiões de matriz africana e afroindígena.

    Tomo para mim o cuidado – e convido quem me lê a ter atenção para isso – de não pretender, de modo algum, que este trabalho seja algum tipo de conformação definitiva das proposições de Bispo dos Santos. Eu o convido de certa forma para este artigo, no sentido de que suas elaborações possam ajudar a pensar a discussão a que ora me proponho, o que não implica nem em enquadrar seu pensamento, nem em dar uma explicação conceitual ou resolver as questões que ele propõe em outros lados. Se sua fala emana do quilombo – e ele a profere, em seus próprios termos, como um relator, ponto de passagem para uma fala coletiva, tradutor entre mundos –, isso implica reconhecer que esse caráter territorializado de seu pensamento produz efeitos próprios e, também, que não tem como destino final o contexto acadêmico. Por outro lado, em seu percurso, ele ecoa em diferentes espaços, e é nesse sentido que pode iluminar e ajudar a fazer sentidos em outras partes. Fazer sua filosofia, essa especialização erudita de um pensamento como diz Anjos (2008), ressoar aqui neste texto é, espero, um exercício de diálogo nas fronteiras, tal qual Bispo dos Santos (2019a) propõe, onde o diálogo e a conexão são possíveis em um horizonte que não é de obliteração ou sobreposição, mas sim de ressonância e potencialização de forças.

    * * *

    Ao longo das Américas – sobretudo da América Latina e do Caribe –, o tema das misturas sempre encontrou eco nos discursos de identidade nacional, nas ideologias nacionais ou temas culturais fundantes que se revelam em múltiplas facetas: multiculturalismo, criolização, hibridização, mestizaje, miscigenação, políticas de embranquecimento, para citar algumas. No contexto brasileiro, teorias e ideologias, que variam desde a noção de democracia racial a uma defesa aberta de políticas de embranquecimento da população e da sua cultura (por meio de um violento projeto de obliteração das populações negras e indígenas), orbitaram em torno da ideia de mestiçagem. As noções de miscigenação, para a mistura biológica/racial, e sincretismo, para os processos culturais/religiosos, emergiram como conceitos dominantes, utilizados para descrever esse duplo processo de entrelaçamento étnico-racial no coração das teorias de construção da nação.

    Transcendendo os limites do campo das Ciências Sociais, a ideia de um povo miscigenado – no sentido de uma degenerescência a ser combatida ou de um elemento a ser exaltado – sempre esteve no centro de uma mitologia nacional, baseada em discursos implícita ou explicitamente racializados, que deixava de fora grande parte da população, ao mesmo tempo em que conformava as políticas e as noções de identidade que informaram os processos de construção da nação. Em que pesem as evidentes divergências e variações de abordagem, os pontos de vista guiados por tal perspectiva, como bem apontou Goldman (2017a, p. 15), parecem ter em comum o fato de adotarem uma concepção da diversidade que supõe que o destino inelutável de qualquer agenciamento entre diferenças seja a homogeneidade, quer essa se manifeste por depuração e purificação, quer por mistura e fusão.

    Entretanto, essa não é a única visão possível para conceber as interações que historicamente tiveram lugar no continente americano, sendo já há muito questionada tanto pela produção acadêmica quanto pelo movimento negro (ver, por exemplo, Nascimento, 2016 [1978]; Serra, 1995; Munanga, 1999; Anjos, 2006; Ferreira da Silva, 2007; Goldman, 2017a; Gonzalez, 2020). É nesse fluxo que Antônio Bispo dos Santos recoloca a questão em outras bases. Em primeiro lugar, ele compreende a colonização como todos os processos etnocêntricos de invasão, expropriação, etnocídio, subjugação e até de substituição de uma cultura pela outra, independentemente do território físico geográfico em que essa cultura se encontra (Bispo dos Santos, 2015, p. 48); enquanto a contracolonização diz respeito a todos os processos de resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contra colonizadores, os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nesses territórios (Bispo dos Santos, 2015, p. 48). Formulada nesses termos, a questão parte de uma recusa ativa tanto às atualizações coloniais, quanto às ideias que pretendem simplesmente promover um desfazimento desses modos de relação, consubstanciadas na noção de descolonização.

    Assim, ao menos no que concerne os povos afetados por processos tão atrozes, não se trata de desfazer algo que foi violentamente imposto e produziu inomináveis consequências, mas é preciso agir diante de tais violências e assimetrias. Perspectiva que inspira e ressoa no que afirma Goldman acerca da noção de contramestiçagem: "Contra, aqui, deve certamente ser compreendido no sentido clastriano de uma recusa ativa do Um e de uma afirmação das multiplicidades. (…) a questão que se coloca é quais seriam e como funcionam as máquinas de guerra afroindígenas mobilizadas para conjurar a mestiçagem e o sincretismo enquanto figuras da unificação estatal? (2017a, p. 25). Como se vê, a contracolonização concebe as reações às violências de atualização colonial, mas compreende também uma afirmação dos modos de vida que estabelecem relações outras com a natureza, o território, outros povos, as coletividades, tal como praticados pelos povos originários das Américas e aqueles violentamente trazidos da África. Nesse sentido, Bispo dos Santos combina os povos originários das Américas e os africanos trazidos para o Brasil na mesma chave da contracolonização, sem ignorar, no entanto, que entre eles e dentro deles haja especificidades e particularidades". É na própria pluralidade que reside sua força e suas potenciais conexões.

    Percursos de pensamento e rastros de encontros em perspectiva contracolonial

    Colonizadores versus contracolonizadores, monista-monoteísta versus plurista-politeísta, sintético versus orgânico, transfluências versus confluências… – Bispo dos Santos frequentemente parte de oposições para formular seus argumentos. A questão, no entanto, é que ele sempre ultrapassa uma diferenciação rígida, maniqueísta ou conformadora de tipos estáticos, como um juízo apressado poderia deduzir. Essas oposições iniciais diriam respeito, de um lado, a modos de relação inerentemente colonizadores, estabelecidos em uma chave hierárquica, baseados em uma visão vertical do mundo a partir de um pensamento sintético, na disposição de obliteração dos modos de existência que escapam a esses regimes relacionais. De outro, estão os contracolonizadores, os povos ameríndios e afro-diaspóricos, na ressonância de seus modos de relação e de percepção do mundo baseados na pluralidade, na afirmação dessa pluralidade e na coexistência das diferenças, no pensamento orgânico e nas intrínsecas conexões com a natureza, com os animais e com os entes que povoam diferentes mundos.

    Cada um desses modos de relação implica diferentes dinâmicas de saber. O saber sintético, atinente a um modo colonizador, é atravessado pela cosmofobia, o medo do cosmo, com uma consequente desconexão com o mundo, uma experiência de fragmentação e isolamento que, via de regra, busca estabelecer relações de propriedade com o conhecimento, a natureza, o território, o trabalho. De outro lado, atinente aos modos contracolonizadores, está o saber orgânico, voltado para o ser, para as experiências de existência em conexão, em linha de continuidade com os outros seres que compõem o mundo, incluindo aí ancestrais e descendentes. A horizontalidade e a circularidade que o atravessam escapam às pretensões universalistas e estão sempre referidas aos territórios existenciais que constituem as comunidades de onde emanam esses saberes: quilombolas, indígenas, povo de terreiro. Longe de experiências isoladas, podem ser entendidas como territorializadas, pois é a partir desses territórios que se abrem para as conexões.

    Traçar uma linha divisória entre dois polos consiste, portanto, apenas em um primeiro movimento necessário para estabelecer as bases de uma conversa mais complexa. Por um lado, parece tratar-se mais de mapear modos de pensar que atravessam coletividades, de forma que um pode afetar – ou ameaçar – outro, com muitas possibilidades de atravessamentos. Por outro lado, creio que essas oposições servem a uma elaboração mais ampla. Traçar essas linhas faz parte de um movimento anterior e necessário, que envolve a recusa de regimes violentos e indesejados de relação, no mesmo passo em que afirma outros modos de existência. Essa recusa, elaborada como oposição, cria espaço para conceber relações que partam das possibilidades de encontro como forças, não como ameaças. Quer dizer, utilizando uma imagem de Bispo dos Santos (2019a), trata-se justamente de perceber onde estão as fronteiras, possibilidades de diálogo e conexões, e onde estão os limites impostos, aqueles onde o diálogo não tem espaço e a relação não é possível em chave diferente da violência, da subjugação e do horizonte de obliteração. A partir daí, uma abertura para a experimentação de modos de conexão em outras bases torna-se viável, em um campo onde é possível compor relações em um horizonte de potencialização de forças e de afirmação das multiplicidades.

    Evidentemente essas experimentações e encontros não estão livres de riscos. E talvez o risco mesmo de qualquer encontro seja justamente virar Um, de forma que são necessários uma série de procedimentos e cuidados para evitar que o encontro se traduza em fusão, substituição ou obliteração. A partir daí, trata-se de cuidar para que se mantenha o que se propõe: um encontro, que concebe as especificidades e particularidades em contato e parte das experimentações e modulações criativamente vividas. À vista disso e inspirado na observação dos movimentos das águas, Bispo dos Santos (2019a, p. 68) propõe a noção de confluência, a lei que rege a relação de convivência entre os elementos da natureza e nos ensina que nem tudo que se ajunta se mistura, ou seja, nada é igual, princípio regente dos processos de mobilização provenientes do pensamento plurista dos povos politeístas. Confluência, portanto, como os encontros que preservam as singularidades em contato, nesses ajuntamentos sem mistura. Junto a ela caminha a ideia de transfluência, a lei que rege as relações de transformação dos elementos da natureza e nos ensina que nem tudo que se mistura se ajunta (2019a, p. 68). Se, como diz Bispo dos Santos, a noção de confluência lhe pareceu de observação mais direta, inspirado nos movimentos das águas pelos rios e pela terra, o conceito de transfluência é uma ideia com um percurso singular.

    Como um rio brasileiro encontra com um rio do continente africano? Essa pergunta marcou um aprofundamento da noção de transfluência. Inicialmente, o autor dispôs essa noção como regente das relações de transformação que incluem os processos de mobilização provenientes do pensamento monista do povo monoteísta,⁶ ou seja, que diriam respeito aos modos colonizadores de relação, que promoveriam transformações laminadoras das diferenças. No entanto, uma intuição já presente em seus primeiros escritos aflorou, colocando no centro da cena os desdobramentos dos encontros contracolonizadores, enfatizando os modos de relação concernentes aos povos afro-pindorâmicos, para usar suas palavras. Assim, nessa rotação de foco, as transformações podem ser percebidas em processos que respeitam as diferenças na chave de modos de relação contracolonizadores, deixando a primeira acepção do termo transfluência em segundo plano.

    Nessa linha de pensamento, no entanto, não creio que o primeiro sentido conferido à noção de transfluência – aquele que seria atinente às disposições laminadoras de diferenças – saia totalmente de cena. Isso porque embora se volte para uma percepção da afirmação das pluralidades, a questão não está baseada em uma noção de identidades estáticas, mas sim de fluxos, forças, linhas que atravessam coletivos. O risco de assumir e reproduzir as forças que reforçam hierarquias e violências não deixa de estar presente, sendo necessária constante atenção para escapar das armadilhas do caminho. Os movimentos de recusa ativa aos regimes violentos de relação, consequentemente, nunca são uma batalha ganha: trata-se antes de uma luta contínua. A questão parece, então, ser mais de uma mudança de foco que abre para um aprofundamento da proposição acerca das possibilidades que os processos de transformação podem comportar.

    Assim, a ideia de transfluência passa por uma dobra, fruto, creio, de uma singular articulação entre oralidade e escrita. Como argumenta Bá (2010), não há uma necessária oposição entre oralidade e escrita, ainda que as articulações entre ambas inevitavelmente variem a depender das circunstâncias. No caso aqui em questão, trata-se de uma forma de elaboração ancorada tanto na oralidade quanto na coletividade. Desse modo, o pensamento é um percurso onde a escrita não parte da pretensão de encerrar conclusões finalizadas, implicar um registro superior a outras modalidades de comunicação ou conformar o objetivo último de uma elaboração. Longe disso, comporta-se mais como um ponto de passagem, uma das inscrições ao longo do percurso do pensamento, servindo, nas palavras de Bispo dos Santos, para acompanhar o prosseguimento do fluxo filosófico do texto, algo que remete a uma certa passagem de estabilização de referências cruzadas, apontamentos historiográficos, sentimentos e experiências vivenciados (2019a, p. 16). Tudo se passa, então, como se a noção de transfluência, ela mesma, transfluísse em um tipo de atravessamento de fronteiras que podem ser de diversas ordens. Seja como for, os fluxos que passam para o primeiro plano são aqueles que conectam coletividades negras e indígenas, abraçadas por essa força compositora da confluência: nós transfluímos, através da cultura, a imposição colonialista. (2019b, p. 22). É preciso transfluir, romper, atravessar fronteiras – espaço-temporais, sociopolíticas, históricas – para poder confluir. Em outros termos, as confluências não estão dadas, não são garantidas: elas dependem de movimentos de transfluência.

    Tais movimentos, parece necessário ressaltar, não implicam em uma homogeneização e uma laminação das diferenças ou no estabelecimento de identidades fixas. Fosse o caso, recairíamos na mesma tentação de pensá-los em termos de alguma conexão entre coisas iguais, e as diferenças apareceriam como meros detalhes. A questão parece ser mais sobre o próprio modo de conexão, sem a pressuposição de que uma parte se imponha às demais e que faça da indeterminação, da diferença e da própria tensão da fronteira, uma força. Assim, os encontros, transfluentes ou confluentes, dão-se nas fronteiras; nem se chocam como limites, nem pretendem convergir para um centro único. Evidentemente é nesse ponto que também residem os atritos, conflitos e guerras (que, ainda assim, podem ser pensados em termos contra-hegemônicos, sem a pretensão última da fusão), mas também é essa condição que oferece a possibilidade de forjar alianças concebendo singularidades. Demanda, portanto, manutenção e cuidado. É esse território incerto e instável, a passagem entre o que se sabe e o que é desconhecido, o que viabiliza a possibilidade de um encontro potencializador. O encontro, então, diz mais respeito a experiências de aliança e de ressonância do que a um evento total e enrijecido, fixo no tempo; trata-se de algo que extrai força da própria tensão das fronteiras e está sempre acontecendo.

    Se tanto a confluência quanto a transfluência se fazem como que pelas águas, como estas carregam os sedimentos, as marcas e as inscrições que compõem o rastro de seus percursos. E é essa dinâmica que possibilita tanto a manutenção das conexões quanto as transformações que comportam, de um modo que permite que as forças se ajuntem sem se misturarem. Essa perspectiva ressoa aquilo que José Carlos dos Anjos (2008) chama de filosofia da diferença das religiosidades afro-brasileiras e está ligada a um modo próprio de relacionar-se daqueles que percebem as suas deusas e deuses através dos elementos da natureza como, por exemplo, a água, a terra, o fogo e o ar e outros elementos que formam o universo (Bispo dos Santos, 2019a, p. 30). Nesse sentido, os elementos da natureza estão longe de conformarem uma dimensão separada das outras: são a morada de seres espirituais, abrigo das memórias ancestrais, terreno de relação, criação, comunicação e existência em uma intrínseca relação com a terra.

    Encontros afropindorâmicos: experimentações por meio das águas

    Pedras, matas, cachoeiras, lagos, rios e mares são espaços relacionados a presenças ancestrais e à multiplicidade de seres que podem compor mundos. Nessa chave estão os entrelaçamentos de elementos da natureza e entidades que povoam a espiritualidade afro-brasileira. Orixás, caboclos, encantados, espíritos ancestrais e entidades de toda sorte estão frequentemente referidas a territórios. As encantarias de modo geral são espaços nos quais a própria existência das entidades – os encantados – é frequentemente referida em relação a elementos da natureza. Os encantados podem, em parte, ser percebidos como seres que transcenderam o momento da morte, encantando-se em uma árvore, uma pedra, um rio, que passam então a existir enquanto espaços de encantaria. Os fundamentos variam,

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