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O mundo e o resto do mundo: Antítese Psicanalíticas
O mundo e o resto do mundo: Antítese Psicanalíticas
O mundo e o resto do mundo: Antítese Psicanalíticas
E-book284 páginas3 horas

O mundo e o resto do mundo: Antítese Psicanalíticas

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Sobre este e-book

Esse livro refunda e repactua perspectivas de pensadores brasileiros e estrangeiros que envergam a psicanálise em elipse decolonial. Se o giro reenviaria ao centro e produziria um novo mestre, como é o risco nos circuitos revolucionários, a subversão em elipse decolonial da Psicanálise desloca o próprio centro. E, com movimentos minimais, aponta o múltiplo no Um. Nos ensaios, excertos e artigos desta obra, parte da coleção >Decolonização e Psicanálise<, a leitora recebe o convite à tradução, decidindo, desde o limite pulsional do corpo, o que é fenda, o que é estilhaço, o que é dor e o que é letra. Só não convide para descansar.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de jun. de 2022
ISBN9786586941975
O mundo e o resto do mundo: Antítese Psicanalíticas

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    O mundo e o resto do mundo - Andréa Guerra

    O mundo e o resto do mundo: análises psicanáliticasimagemcoleção = decolonização e psicanálise. volume = o mundo e o resto do mundo: antíteses psicanalíticas

    © n-1 edições + psilacs, 2022

    isbn 978-6586-941975

    Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.

    > n-1 edições <

    > coordenação editorial <.> peter pal pelbert · ricardo muniz fernandes <

    > direção de arte <.> ricardo muniz fernandes <

    > projeto gráfico <.> luan freitas de oliveira <

    > psilacs <

    > coordenação da coleção decolonização e psicanálise <.> andréa guerra <

    > coedição <.> rodrigo goes e lima <

    > diagramação e ilustração de capa <.> felipe dias <

    > conversão para Epub <.> Cumbuca Studio <

    > conselho editorial <

    > antoine masson <

    > jacqueline de oliveira moreira <

    > leônia cavalcante teixeira <

    > luciano da fonseca elia <

    > marcelo ricardo pereira <

    > mario elkin ramírez <

    [ sumário ]

    [ apresentação – andréa guerra ]

    seção 1 o resto e um mundo inteiro

    1. faustino, deivison. [ frantz fanon e o mal-estar colonial: algumas reflexões sobre uma clínica da encruzilhada ]

    2. mendelsohn, sophie. [ gaguejar o mal-estar na cultura ]

    3. matozinho, christiane. [ lacan pela mão de james joyce: uma subversão que nos serve ]

    4. moreno, david. [ psicanálise do resto, do resto do mundo ]

    seção 2 raça: a estrutura antitética do argumento

    5. hook, derek. [ recuperando biko: uma crítica da consciência negra à branquitude ]

    6. andrade, cleyton. [ o negro não existe: e os quantificadores de uma política não-toda ]

    7. lima, mônica. [ visão racializada do colonizado e o objeto olhar: fanon com merleau-ponty e lacan ]

    8. souza, marcelo. [ antirracismos cotidianos ]

    9. rosa, paulina e guerra, andréa. [ mais ainda... por que não existe racismo reverso ]

    seção 3 nem tudo é resto

    10. bispo, fábio. [ para uma decolonização da psicanálise ]

    11. ambra, pedro. [ jogar fora o saber com a água do estranho ]

    12. leal, eduardo. [ colonização, identidade e o que fazer do futuro ]

    13. pimenta , tomás e canettieri, thiago. [ deslocamentos significantes no mundo pós-colonial: reflexões a partir da política contemporânea ]

    seção 4 deslocar e clinicar decolonialmente

    14. ayouch, thamy. [ a psicanálise é o contrário da exclusão ]

    15. katz, ilana. [ infâncias contra hegemônicas para descolonizar a psicanálise ]

    16. ab’sáber, tales. [ ação (clínica) descolonizada do dinheiro, algumas implicações ]

    17. lima, rodrigo. [ prelúdio a uma psicanálise do povo brasileiro ]

    imagem

    > apresentação

    <.>

    O modo como a estrutura epistêmico-política do mundo ocidental se articulou em termos geopolítico, econômico, ontológico e linguístico definiu linhas de força e de visibilidade que ganharam na imposição capitalista de um universalismo hegemônico sua forma violentamente assentada de tradução. Algumas línguas e saberes foram, mesmo, aniquilados pelos epistemicídios¹ que deram causa, através da Conquista e dos processos de colonização, à invenção do mundo moderno. Modernidade/Colonialidade assim se estruturaram como Modo Colonial de Poder em torno da raça como índice classificatório do humano, num tripé exploração- dominação-conflito que, nesses dois eixos, colonialidade e modernidade, espraiam na configuração da disputa pelo controle dos quatro âmbitos básicos da vida humana: sexo, trabalho, autoridade coletiva e subjetividade/intersubjetividade.² Se toda tradução é um processo que nunca se completa, mas que permanece em sua indecibilidade,³ assim se instala, pois confronta o sujeito com uma alteridade radical e inassimilável.

    Em Psicanálise, essa alteridade ganha sua forma mais radical no corpo. Habitar o outro desde dentro configura as relações inconscientes em um plano material e hierárquico que, de saída, corrompe toda possibilidade de tradução, embota toda arrebentação pulsional em circuitos autistas, rasga o tecido linguageiro e fala pelos hiatos, pelas lacunas, pelo que não se escreve. Daí, diz-nos Lacan, nasce o laço.

    Eu enchi o ouvido de vocês com a lacuna, agora lacuna se reduz a laço.⁴ O impossível de traduzir ganha assento na falta estrutural do Outro. Do corpo ao Outro e do Outro ao outro, como habitar o mundo em coexistência radical com a diferença, sem que ela se torne fonte de subalternidade, aniquilamento, epistemicídio e necropolítica?

    Esse livro refunda e repactua perspectivas de pensadores brasileiros e estrangeiros que envergam a psicanálise em elipse decolonial.⁵ Se o giro reenviaria ao centro e produziria um novo mestre,⁶ como é o risco nos circuitos revolucionários, a subversão em elipse decolonial da Psicanálise desloca o próprio centro. E, com movimentos minimais, aponta o múltiplo no Um. Pluralidade nas ruas pela ocupação singular dos corpos no gozo. Lacan explora ao menos doze modos de pensar o Um.⁷

    O mesmo e o idêntico, referidos respectivamente à pulsão e ao significante, permitem pensarmos o Um a partir do sujeito e do discurso, dos modos de aparelhagem do gozo em uma topologia complexa na qual a escrita do Um inaugura modos plurais de ocupar-se singularmente o vazio. Porém planta possibilidades de entender o conceito em perspectivismo. O mesmo conceito sob múltiplos referentes, Uma perspectiva e múltiplas naturezas – e não o contrário. A denúncia dos modos hegemônicos e dos desejos de universal rui face à constatação de que a razão produziu o mundo desigual que habitamos, mostrando que as palavras encriptam gozo escrito sob a atualização cotidiana da violência assentida, invisibilizando os modos de sofrimento advindos do mal-estar colonial no Sul Global.

    A denominação categorial constrói o que nomeia.⁸ Porém há sempre o hiato, a fenda e o vazio sobre o qual o Um se assenta e o nome se constitui. Por isso, entender os modos como a classificação se organiza abre o horizonte crítico da leitura das hierarquias em nome das quais o império se edificou. Modos coloniais de poder, saber, ser e gênero são o avesso da operação moderna e sua condição de legitimidade e de legibilidade. Ler pelo avesso descortina modos e meios de gozo colonizadores, sob uso da violência, do endorracismo e do neocolonialismo. Dá a ver como testemunha.

    Esse livro é parte de uma coleção maior em que coletivos são instados à escrita que faz presente uma psicanálise que pensa sua decolonização e se exercita numa escuta advertida. Essa coleção de obras, > Decolonização e Psicanálise <, titubeia a pós-estrutura colonial e enxerta carne, cor, gênero e classe, cabelo e corpo, pulsão e inconsciente, onde a estrutura se descompleta. Numa complexa e desencadeada topologia, abjetos e objetos, letras e palavras, corpos e circuitos se encontram conectados. Não é preciso nem isomorfia, nem homologia, nem homotopia para que essa conexão mostre suas insuficiências.

    Quando a estrutura se desloca, suas marcas indicam a lógica do poder que a estratégia da linguagem ocultava.As rasuras sobre o que não estava lá. A geopolítica como origem traz a marca desde onde o ato de enunciação traumatiza um corpo. Desde a psicanálise, o ontológico se torna materialidade do ser descarnada pela linguagem que sempre, e por estrutura, coloniza. Deformação, apagamento, hiato.

    Esse livro busca conhecer o que se escreve pelas lacunas e como essa escrita se legitima e passa a habitar, desde dentro, corpos que sofrem e corpos que gozam sob o discurso colonial, como forma exótica e regressiva do discurso do mestre moderno.⁹ Nos ensaios, excertos e artigos desta obra, a leitora recebe o convite à tradução, decidindo, desde o limite pulsional do corpo, o que é fenda, o que é estilhaço, o que é dor e o que é letra. Só não convide para descansar.

    Andréa M. C. Guerra

    Outono, março de 2022


    1 > Boaventura de Sousa Santos, Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. São Paulo, Cortez, 1995.

    2 > Anibal Quijano. Colonialidad del poder, globalización y democracia, in: Revista de Ciencias Sociales de la Universidad Autonoma de Nuevo León. Ano 4, n 7-8, 2001-2002.3

    3 > Stuart Hall, Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite, in: Da diáspora: identidades e mediações culturais (pp. 101-131.) Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

    4 > Jacques Lacan, O Seminário, livro 9: A identificação, aula de 07 de Março de 1962 (inédito).

    5 > Andréa Guerra e Rodrigo Lima (orgs.). A psicanálise em elipse decolonial. São Paulo: n-1 edições, 2021.

    6 > Jacques Lacan, O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, 1969-1970, trad. bras. de Ary Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.7

    7 > Geraldo Arenas, Los 11 Unos del 19 más uno. Buenos Aires, Grama, 2014.

    8 > Maria Lugones. Colonialidade e gênero", in: Heloisa Buarque de Hollanda (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro, Bazar do tempo, 2020.

    9 > Andréa Guerra,

    O sujeito suposto suspeito: a transferência no Sul Global

    . São Paulo: n-1 edições, 2022

    seção 1o resto e um mundo inteiro

    faustino, deivison¹ <.> frantz fanon e o mal-estar colonial: algumas reflexões sobre uma clínica da encruzilhada

    ²<

    Para dar conta dos diálogos entre a clínica e a política, no pensamento de Frantz Fanon, tenho proposto como experimento teórico o conceito de Mal-estar colonial. Freud fala em das Unbehagen in der Kultur, comumente traduzido para a língua portuguesa como mal-estar na civilização, para tematizar a tensão entre as pulsões e as regras sociais internalizadas pelos indivíduos em um dado contexto cultural. Embora o pai da psicanálise entendesse a cultura como as realizações e os regulamentos que distinguem nossas vidas das dos nossos antepassados animais – o que pressupõe uma certa universalidade da Unbehagen – Mirian Debieux Rosa em suas reflexões sobre a psicanálise, a cultura e a política, nos lembra que embora todos encontram restrições pulsionais em troca da proteção e pertença, que nem todos pagam o mesmo preço pela chamada civilização.

    Mas qual é a questão que nos interessa aqui? Frantz Fanon, em seus diálogos a partir de uma encruzilhada entre a psicanálise, a fenomenologia existencial, o marxismo e o movimento de negritude, nos alertará para a importância da dimensão sociogênica da linguagem, sobretudo, dos caminhos singulares pelo qual se constitui a subjetivação. Por isso, ainda quando se propõe a fazer uma análise psicológica do racismo antinegro e dos seus efeitos subjetivos, alerta em Pele negra, máscaras brancas: a verdadeira desalienação do negro requer um reconhecimento imediato das realidades econômicas e sociais.

    O que Fanon está dizendo é que, originalmente, o sujeito analisado pela psicanálise é esse indivíduo da sociedade moderna do século XIX para o XX, uma sociedade vitoriana, onde o capitalismo já está deixando transparecer as suas crises sociais e culturais, agravadas, no âmbito individual por novos e intensos conflitos subjetivos provocados pelas transformações de toda ordem nas formas de sociabilidade e laço social. É sobre esses conflitos que a psicanálise vai se debruçar. Esse Unbehagen, esse mal-estar, esse desconforto, embora vivido individualmente, é de origem social e, portanto, localizado no tempo e no espaço. Ainda que o capitalismo vá progressivamente se universalizando progressivamente e se impondo como único registro válido na organização social em todo o globo, ele não chega da mesma forma em todo canto, pelo contrário, se universaliza a partir de um desenvolvimento desigual e combinado. Isso implica particularidades na forma de viver esse Unbehagen, retratadas por Freud. Há, então, um mal-estar próprio ao processo histórico de individuação na sociabilidade burguesa. Se é histórico – inclusive ele nem se apresentava daquela forma 100 anos antes em Viena, ou onde for – essa história também está sujeita aos atravessamentos da geografia (espaciais).

    O trabalho de Christian Dunker em Mal-estar, sofrimento e sintoma é muito interessante, neste sentido. Ele mostra o quanto as transformações na sociabilidade burguesa ao longo dos anos obrigaram, ou estimularam, debates de toda ordem sobre as alterações históricas na experiência do mal-estar. Se isso é verdade do ponto de vista da história, Fanon nos convoca a considerar também a perspectiva geográfica e os seus arranjos particulares em cada parte do globo terrestre, hoje dominada pelo capital. No entanto, em Fanon, a temática geográfica não remete apenas a uma desigualdade nas formas e expressões da individuação, mas, sobretudo, no quanto a consolidação do capitalismo dependeu da criação de espaços de exploração e violência total nas colônias cujo o eixo de coesão não é a pressuposição de acolhimento do sujeito no laço social, mas a impossibilidade quase absoluta de reconhecê-lo como sujeito contratante do pacto social, mas apenas como bem produtivo a ser negociado por outrem. Algo que tenho chamado em meus trabalhos de interdição do reconhecimento.

    Fanon está partindo da ideia de que as formas de poder e dominação na colônia têm uma natureza radicalmente distinta das formas de dominação nas metrópoles modernas, implicando, também, em formas distintas de expressão da experiência psíquica. Se a dominação burguesa na metrópole era mediada pela inclusão do sujeito no laço social a partir do reconhecimento de sua cidadania e individualidade – traço que constitui a emergência do direito moderno, mas também a sociologia e a psicanálise –, nas colônias o colonizado não é sequer visto como indivíduo, e seu status jurídico de propriedade o coloca para fora Direito, uma vez que ele sequer é reconhecido como humano. Então quais são os efeitos subjetivos dessa sociabilidade, tanto para colonizado quanto para colonizador? Essa é uma das perguntas que Fanon se faz. E para isso ele parte de uma ideia de que colonizador e colonizado são relacionais, como Mannoni já havia adiantado. Essa foi uma grande contribuição de Mannoni, inclusive com Fanon, embora depois ele cancele Mannoni lá no capítulo quatro de Pele Negra, Máscaras Brancas.

    Um outro questionamento importante que Fanon faz à psicanálise e outras áreas de saber euro-descendentes é: até que ponto esse saber que surge na metrópole dá conta de explicar a realidade social, [até que ponto] ele não está preocupado só com a dimensão psíquica, mas também com a experiência subjetiva? Até que ponto essa matriz epistêmica não generaliza colonialmente – de maneira metalinguística e identitária – a experiência ocidental? Essa pergunta ele faz para a psicanálise – que aqui é apenas um dos espantalhos mais qualificados – mas ele também faz para a filosofia, para a sociologia, para o marxismo, para a fenomenologia, etc. Para respondê-la, de um lado ele denuncia a participação colonial desses saberes, seja pela universalização da experiência europeia, inviabilizando a diferença, seja por colocar o colonizado fora da ideia de Kultur, ou de civilização. Daí o texto de Freud Reflexões sobre os tempos de guerra e morte, por exemplo, quando ele está espantado de ver branco se matando. É interessante pensar como os vários saberes ocidentais, quando dão conta dos não ocidentais – pensando que o próprio ocidente é um mito criado pelo colonialismo –, esses povos, essas experiências não entram como experiência no sentido humano, mas sim como um outro temático.

    E um terceiro elemento para pensamos é quando Fanon se pergunta qual a abrangência e os limites desses saberes para dar conta da experiência colonial. Ele aposta nesses saberes, mas também se pergunta quais são os limites. Podemos pensar tanto a experiência colonial em termos sociológicos, de contradições sociais, de violência, mas também podemos pensar em termos antropológicos, em termos de lidar com outros arranjos no campo da linguagem, da cultura, que preveem outros tipos de laços sociais ou mesmo de pactos civilizatórios, que sequer eram vistos como civilizatórios, é bom lembrar.

    Mas, quando a revolução argelina explode, Fanon se volta para a prática revolucionária, para a aposta na revolução social, e uma questão que salta aos olhos é que ele aposta na revolução como momento de elaboração coletiva dos traumas que tem origem política, e que tem efeitos subjetivos. Ele não faz uma relação mecânica entre sofrimento político e sintoma, mas está pensando o tempo inteiro como há uma dimensão do político que deve ser endereçada no próprio campo do político Mas ele não abandona a clínica em nenhum momento. [...] E aí eu gostaria de fazer alguns apontamentos sobre a prática clínica do Fanon, e deixar mais palavrões para a gente pensar e algumas perguntas em aberto.

    Uma delas é que, em primeiro lugar, a clínica, para Fanon, é apenas um dos momentos da práxis desalienadora. Ele aposta em uma desalienação, mas ela não se esgota na clínica. A clínica é fundamental, mas ela é só um momento. Um outro ponto é que há diferença entre as clínicas de Fanon ao longo do tempo. Há diferença entre a clínica que ele está fazendo na tese de doutorado em 1951 e a que ele participa com François Tosquelles em Saint-Alban na psicoterapia institucional, e há diferença depois na clínica que ele vai empreender na Tunísia, na qual ele rompe com Tosquelles. E o que está por trás dessas diferenças é o lugar do social no subjetivo e o lugar do social na clínica. É a pergunta que a gente sempre ouve quando vai falar de Fanon e da psicologia: mas e a clínica? Fanon se debruçou sobre essa questão e deu respostas diferentes ao longo da vida. Esse é um elemento importante. Um terceiro elemento é a relação entre organogênese e psicogênese. Nessas várias clínicas, Fanon, que não é psicanalista – mas é um psiquiatra que lança mão da psicanálise em alguns momentos –, tem que lidar com a questão do cérebro e de seus equilíbrios neurológicos e bioquímicos, pois esse é um dos objetos de sua profissão.

    É a partir daí que ele vai tematizar a relação existente entre a dimensão biológica e a dimensão mental. Então, novamente, o social e a sociogênese são chaves para pensar essa relação. Em sua tese de 1951, Fanon vai estudar as degenerações espinocerebelares e se pergunta: por que há pessoas com essa degeneração que ficam loucas? Será que existe alguma relação entre o cérebro e a loucura, ou a loucura é algo da ordem do simbólico? Essa pergunta o obriga a dialogar com todo mundo que estava disponível [à leitura] na época, que vai do próprio Freud, ou da tese do Lacan sobre o delírio – a grande questão sobre a qual Lacan se debruça em 1932 – até Vygotsky, Wallon, Merleau-Ponty, Goldstein, e Ajuriaguerra, o que permite a Fanon mostrar que o debate estava em aberto, que existiam diversas posições. Entre elas, ele vai tentar achar uma posição de encruzilhada.

    Dessa maneira, uma posição que está em jogo é a de Goldstein, que, para Fanon, aponta para uma lógica organogeneticista, quase biologicista, e, de outro lado, a de Lacan, que aposta tudo no simbólico como explicação à loucura. Fanon vai então propor uma costura a partir de Henry Ey, se posicionando ao lado dele no debate. Mas o que Henry Ey defende que Fanon traz de volta? Em primeiro lugar, a loucura para Henry Ey é uma patologia da liberdade; Fanon partilha dessa posição e isso muda o jeito dele de lidar com a loucura. Segunda questão, a loucura tem origem na linguagem, para ele – se aproximando então de Lacan –, mas dispõe também de implicações neuronais, cognitivas ou mentais.

    Fanon vai procurar uma saída de costura entre o mental e o cerebral (ou o biológico), mas, ainda assim, não abre mão de pensar em algo que hoje

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