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Histórias e vidas de bichas: escritos de si e das outras na cidade de Cubati-PB (2008–2015)
Histórias e vidas de bichas: escritos de si e das outras na cidade de Cubati-PB (2008–2015)
Histórias e vidas de bichas: escritos de si e das outras na cidade de Cubati-PB (2008–2015)
E-book424 páginas5 horas

Histórias e vidas de bichas: escritos de si e das outras na cidade de Cubati-PB (2008–2015)

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Sobre este e-book

As homossexualidades saíram do armário da historiografia tradicional e brasileira bem recentemente. No entanto, os estudos voltados ao tema, em sua grande maioria, colocam uma lente de aumento sobre as grandes metrópoles como recorte espacial. O objetivo desta obra contempla essas bichas ainda silenciadas por uma historiografia que demonstrou os movimentos migratórios desses sujeitos no século passado, saindo de suas cidades natais para construir outros laços de sociabilidade nos grandes centros urbanos e nas capitais do Sudeste, em sua grande maioria. Nessa virada de século, outros deslocamentos e permanências aconteceram. Muitos gays permanecem nos rincões do país, construindo outros laços de solidariedade entre bichas e outros dissidentes de gênero. O método genealógico é usado para demonstrar essa não linearidade das relações construídas, dos deslocamentos produzidos, buscando o emaranhado de acontecimentos que juntaram cinco bichas do interior, numa turma que tinha na amizade como modo de vida a construção de sua estética da existência. Atrelada ao método, a ego-história é utilizada como ferramenta, colaborando para a inserção do autor na pesquisa, junto com as outras bichas que compõem as fontes orais do estudo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de jul. de 2022
ISBN9786586723526
Histórias e vidas de bichas: escritos de si e das outras na cidade de Cubati-PB (2008–2015)

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    Histórias e vidas de bichas - Walber Ferreira da Silva

    Walber Ferreira da Silva

    Histórias e vidas de bichas: 

    escritos de si e das outras na cidade de Cubati-PB (2008–2015)

    São Paulo

    e-Manuscrito

    2022

    Ficha1Ficha2

    Prefácio

    [...] seriam na verdade quatro irmãos que atendem por nomes femininos [...] todo mundo sabe que é homossexual e ela mesma – que refere-se a si própria, seja qual for seu nome, sempre no feminino – acha ótimo ser. [...] sempre foi bicha, adora ser bicha.

    Essa breve descrição sobre ser bicha foi cunhada pelo escritor Caio Fernando Abreu pelos idos dos anos 1990. Texto que serviu para dar nome a personagens nesta história contada por Walber Ferreira da Silva sobre outras iguais, também bichas. São amigas donas de sexualidades dissidentes que, ao longo da vida, aprenderam a se amar como irmãs (que saem juntas, comemoram a vida, cuidam umas das outras, rebolam nas quebradas, brigam e, por vezes, até partilham o mesmo homem). O que elas têm em comum? São bichas [...] pintosas assumidas, despudoradas. Nos espaços da intimidade se tratam como bichas, interpelam-se no feminino e adoram ser bichas.

    Assumirem-se e tratarem-se como bichas não é apenas uma forma de dialogar num grupo fechado de homossexuais masculinos, mas também de assumir um posicionamento político em defesa da diferença, da alteridade, do direito de exercer a liberdade – que é princípio assegurado pela Constituição Brasileira –, de ser quem se quer. Usar o marcador bicha é encabeçar uma luta histórica contra as formas de repressão empreendidas contra os corpos de homossexuais e toda a diferença nelas contida. Autodeclarar-se bicha é, sobretudo, neste livro, um ato de muita coragem, especialmente quando falamos da vida cotidiana em uma cidade do interior do estado da Paraíba, Cubati, na qual a maior parte dos homens que deitam com as bichas se intitula hetero-macho-alfa-e-que-na-calada-da-noite-adentra-os-quartos-e-os-fundos-das-bichas. São homens que gostam de comer cu de outros homens, ou mesmo vez em quando ser enrabados, mas que em hipótese alguma dariam alguma pinta, quanto mais afirmar ficar com bichas ou se aproximar delas em público.

    Este é um livro sobre a amizade. Sobre as histórias de amigas batizadas por Dulce Veiga, Jacira, Telma, Irma e Irene. Amigas que construíram sua estética da existência dividindo suas agruras e conquistas, selando a amizade como forma de vida. Elas andavam de mãos juntas, mesmo quando brigavam. O fogo que provava a amizade, em vez de apartar, unia. Misturava-as a ponto de uma confiar à outra suas histórias mais íntimas, seus desejos mais safados, as trepadas mais loucas, as aventuras por detrás dos muros do campo do Palmeiras, os arrochos entre cactos e cobras que rastejavam sedentas por sexo.

    Aprendi com Walber Silva a importância de se definir como bicha. Especialmente porque este texto foi confeccionado quando a democracia brasileira e o movimento LGBTQIA+ sofriam sérios ataques por parte dos modelos autoritários de fascismo colocados em prática no governo Bolsonaro e imbuídos de disparates necropolíticos como a homofobia, a misoginia, o machismo, o sexismo, o falocentrismo, a falta de empatia e a ausência de respeito para com o outro. Walber Silva enfrentou micropoderes dentro do próprio espaço de saber que tentavam impedir de alguma forma que suas bichices viessem a público e se tornassem, além de um texto acadêmico, uma arma discursiva de luta. Walber resistiu e fez de seus escritos uma resistência.

    Para tanto, mergulhou nas memórias de suas migas bichas. Ouviu-as com atenção, com respeito e curiosidade. Escutou histórias que nem ele sabia. Foram longas horas de entrevistas entre amigas que, entre um cigarro e outro, entre um copo de cerveja e outro, ou entre um riso e outro, a depender da amiga entrevistada, fizeram ele colocar em prática o ofício de historiador, que ficara por longos anos adormecido. Com a produção que alinhava este texto, Walber Silva voltou a ser um historiador/pesquisador: aquele que sai em busca das fagulhas que chegam sobre o passado através de luminosidades buscadas na memória das sujeitas envolvidas; debruçou-se sobre esses ditos e fez deles escritos qualificados que chamamos de História. Uma história de bichas.

    Conheci Walber Silva como meu aluno no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Reafirmo que, após longos anos afastado da pesquisa e atuando exclusivamente como professor de História da rede básica de ensino na cidade de Cubati, resolveu estudar as dissidências sexuais num mestrado acadêmico. No fim de uma das aulas de Metodologia da História, recebi o convite para orientar a pesquisa que à época dava as primeiras rabanadas, para usar um termo do pajubá. Tomado de alegria com o convite, aceitei de prontidão orientar a pesquisa e me encantar com as histórias por ele problematizadas. De quebra, ganhei um amigo, também bicha.

    Sua dissertação de mestrado agora ganha a forma de livro digital no sentido de dar mais visibilidade e circulação a histórias das bichas na cidade de Cubati. Este livro está organizado em três capítulos. No primeiro, ‘A sala da casa das bonecas’: a derrisão das bichas, Walber focaliza os papos gestados na sala de estar, lugar dos encontros, das conversas entre as bichas, das audições de shows transmitidos pela televisão, dos jogos das Copas do Mundo, filmes, séries e de muitos diálogos entre elas e outros homens, dos mais inocentes aos mais maliciosos, da estética da amizade entre elas. 

    No segundo capítulo, Entre quatro paredes e prazeres: amizades e tensões em torno do desejo das bichas, o texto se move da sala para o quarto, e de lá Walber Silva nos conta sobre histórias picantes vividas nos quartos ou de quatro ou entre quatro paredes, como o lugar de descanso, do cuidado de si, um ninho de amor, ou o abatedouro, como já foi chamado, o lugar dos gemidos sufocados, do despir das vestes dos estereótipos, das penetrações, dos rótulos binários do ativo/passivo, dos toques de pele, da troca de fluidos, do cheiro da merda, das camisinhas usadas pelo chão, da linguagem corporal das bichas. 

    No terceiro capítulo, Lajedos, feiras, cozinhas e bares: lugares de experiências bichas e seus sonhos de Alice, somos contemplados com as histórias vividas e sonhadas na cozinha. Uma história regada a gostos, sabores, cheiros, odores próprios desse espaço de sociabilidade, que também foi responsável por gestar muitas histórias desses (des)encontros. Se com a língua sentiam os sabores, com a mesma língua ferina de bicha desembuchavam histórias de si e das outras.

    Por fim, resta-me falar da alegria de apresentar este livro escrito com tanto cuidado e respeito às bichas. Fui incumbido da tarefa de anunciar ao leitor as narrativas de si contidas nesse texto e que são responsáveis por ajudar tantas outras bichas a abrirem as portas de seus armários e se libertarem da rinite provocada pela poeira que as enclausurou por tantos anos. Sou grato por avisar que essa é uma excelente leitura, daquelas capazes de prender a atenção do leitor da primeira à última página. Um texto que, segundo Walber Silva, embebido nos escritos de Caio Fernando Abreu, acaba por concordar que bichas [...] são inabaláveis, intransmutáveis, pois bicha que é bicha nasce bicha, vive bicha, morre bicha, achando o tempo todo que Jaciras, Telmas, Irmas e Irenes não passam de bichas todas loucas por si e por eles.

    Prof. Dr. Azemar Soares Júnior

    Campina Grande, 23 de junho de 2022.

    Dia em que as bichas pulam fogueira, comem milho e soltam rojão.

    Dedico este texto a todes LGBTQIA+ interioranos que, um dia, deixaram suas cidades, para viver suas práticas de liberdade em outros lugares.

    AGRADECIMENTOS

    Agradecer a alguém é reconhecer nossa finitude, nossas limitações. É saber que o cuidado de si é atravessado pelo cuidado com o outro. Não estamos sozinhos. Não somos autossuficientes. Precisamos de um ombro amigo, de um afago na alma, de um olhar de carinho, mesmo que em silêncio, para poder continuar a labuta. Precisamos de alguns ausentes, presentes em nossas memórias, que nos inspiram e nos fazem acreditar em nós mesmos. Agradeço a minha ancestralidade próxima e distante e aos espíritos de luz que me guiam nesse rasgar-se e remendar-se todos os dias.

    Meus agradecimentos a UFCG, instituição pela qual estudei na graduação e agora me formo Professor Mestre em História. Sou grato por demais, ao Professor José Otávio em nome de todos os colaboradores que fazem do PPGH, um Programa de excelência. Sempre muito solícitos, estiveram nos ajudando para o andamento burocrático dos tantos peticionamentos, pelos quais, dei entrada no sistema.

    Durante esses dois anos de mestrado que se iniciou em 2019, devo meu reconhecimento à Prefeitura Municipal de Cubati e à Secretaria de Educação concedendo-me a licença para minha qualificação enquanto profissional e por disponibilizarem o transporte que me levava semanalmente a Campina Grande. Durante o percurso dos 83 km, até a UFCG, a companhia de outros estudantes ali presentes, fadigados de uma jornada diária e semanal de idas e vindas, me incentivou a continuar. Ser estudante universitário do interior e acordar de madrugada ainda, para pegar um ônibus as 5h30 da manhã e assistir a uma aula as 8 horas, não é fácil. Sou grato, sobretudo por saber que, antes dos anos 2000, essa realidade não era possível.

    Agradeço também aqueles que compuseram as minhas bancas internas e externas de minha qualificação e defesa, pelas leituras atentas e apontamentos em meu texto para que eu amadurecesse em minha escrita. Com a Professora Joedna Meneses e os Professores Leandro Colling e Elias Veras, meu texto tornou-se polifônico e político. Agradeço a serenidade, ética e conhecimento partilhado pelo Professor Paulo Souto Maior Jr., que chegou para deixar meu trabalho e minha experiência na academia, melhores. Como coorientador, sua delicadeza com as palavras me trouxe profundas reflexões. Fui abençoado pelo universo, que trouxe tantas vozes para dentro de meu texto e que aqui, independentemente de ter sido citados ou não, estiveram torcendo e vibrando em boas energias por meu sucesso.

    A primeira aula que tive com o Professor Azemar, foi impactante para mim. Nos reconhecemos em nossas dissidências pelo olhar. Tive medo de um sujeito, pelas muitas vozes que sugeriram um ser (des)humano. Com o passar das semanas, aquelas sextas feiras foram deixando de ser temidas, para ser ansiosamente desejadas, pelas boas leituras e discussões propostas, mas também pelo carinho que se construía por uma confiança cautelosamente estudada e conquistada, de ambos os lados. O perigo de uma história única, quase me fez perder um amigo, um dos melhores presentes que a vida, pode ter-me dado. Aos poucos, fui me dando conta, de tanta humanidade que ele possuía, de acolher pessoas no meio do caminho, de trazer para perto de si e dar o melhor conselho, de dar broncas que me faziam tremer na base, mas depois via quantas lições maravilhosas ele me dava, não apenas para a construção de um texto, mas para uma vida inteira.

    No meio do caminho, certa vez, participando de um colóquio de história, ele me disse: pare de dizer que você é incapaz!. Nunca esqueci dessas palavras. São elas que, me motivam todos os dias. Foram elas que, me tiraram da inércia, quando esgotado emocionalmente e não conseguia construir um único parágrafo. Foram elas que me motivaram a terminar esse texto. São elas que, me encorajam a continuar estudando. Com Azemar, dançamos entre palavras, por um texto que se construía com afetos e com a disciplina exigida pela academia. Parafraseando Dorival Caymmi – quem não gosta de Azemar, bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou é doente do pé. Deixo aqui meu abraço com muito carinho, de alguém que vai te levar no peito, por toda existência. Muito obrigado.

    Agradeço aos também queridos, professores das disciplinas que fizemos nessa pós-graduação. Suas aulas, foram importantes e inspiradoras para nossos escritos. As histórias de vida que o Professor Iranilson Buriti nos contou, de sua trajetória de um jovem interiorano e seu desfecho de sucesso, é inspiração para todos que viajam diariamente, para estudar nos grandes centros urbanos. Meu carinho e agradecimento também é estendido ao Professor Dinaldo Barbosa, incentivando-nos e inspirando-nos com tudo que nos ensinou sobre Direitos Humanos, além de suas diásporas realizadas pelo Brasil. Não posso deixar de lembrar, de outro reencontro que me emocionou. Desta vez com a Professora Vivian Andrade. Ela que conheci criança, enquanto eu era adolescente, agora se tornava minha professora na pós, soou como uma mensagem divina, das maravilhas que só Deus é capaz de explicar.

    Estendo meus agradecimentos aqui, a Professora Nilda Câmara que desde a graduação, ensinou a mim e a todos os seus alunes, histórias feministas, antirracistas, não homofóbicas, colaborando neste novo trajeto que, me fez ingressar no mestrado. Agradeço também aos queridos Professores Antonio Clarindo e Keila Queiroz, com eles aprendi outras histórias na graduação e nos corredores da universidade, agora na pós, entre um intervalo de aula e outra, seus abraços e olhar afetuoso, nos tiravam o enfado de uma viagem cansativa de Cubati a Campina para estudar. Gratidão, meus queridos.

    Dentre esses encontros casuais, pelos quais fomos conhecendo outras trajetórias de vida, meu agradecimento também especial a Aparecida Figueiredo, ela quem me apresentou (a partir da indicação de leitura da dissertação de Diogo Trindade) e falou tantas vezes do professor Azemar Soares Jr., me fazendo aproximar mais, daquele que seria meu orientador. Gratidão. Aos colegas que também guardo um carinho especial, sujeitos que me ajudaram tanto, neste percurso e que não posso esquecer: Rafael Coppi, Adolfo Veiller, Maria Gorete, Ramon Queiroz, Beatriz Batista, Alan Tassio, Eulina Souto, Guilherme Lima e Rafael Nobrega. Todos os orientandos de Azemar, que eu tive o privilégio de conhecer, incentivados a caminhar de mãos dadas, sempre. O meu muito obrigado pelas muitas colaborações.

    Pela universidade, agradeço ao encontro com um sujeito de outro interior, por quem quero carregar em meu peito a amizade para o resto de minha vida. Carlos Silva, me mostrou com seus cactos, que os espinhos, são a defesa para lugares inóspitos, e resistência para se manter vivo, num lugar tão árido quanto os interiores que encontramos as coroas de frade e mandacarus. Aqui também agradeço a um reencontro, de um outro sujeito generoso, Glayds Veiga. Com ele, estudei na graduação, quando a UFCG era UFPB campus II e o universo nos presenteou com esse reencontro na pós-graduação, agora mais maduros e com outras perspectivas de presente e futuro.

    Um agradecimento especial a minha amiga/irmã de coração, Valquíria Lopes. Um dia ela foi minha aluna, noutro dia, estávamos caminhando juntos nesta jornada do mestrado. Um ser humano de alma ancestral que, me acolheu em Cubati, assim que cheguei há vinte e um anos atrás. Seus vizinhos, ficavam brechando quando saia de sua casa, costume interiorano de uma vida pública e privada difusas. Pela boca destas pessoas, éramos namorados e enquanto eu, confidenciava os meus primeiros amores interioranos, de uma bicha forasteira, que encontrou numa jovem bruxa, os encantos do Curimataú. Com ela vivi tantas coisas. Tomei sopa em sua casa, feita por dona Chica (in memorian). Liguei para ela, em Brasília, pedindo para voltar e continuar os estudos, quando ela decidiu, não mais voltar. Eu a vi, casando-se e descasando, vi seu filho adolescente crescer e tornar-se adulto. Foram duas décadas de uma amizade que nunca esmaeceu. Te amo.

    Agradeço a minha família de casa, em especial às mulheres da minha vida, a minha avó Ana Silva (in memorian), a minha mãe Maria Almeida e a minha irmã Valdisa Silva, minha terceira mãe, que desde minha tenra infância, cuidou de mim, financiou meus estudos no ensino básico até a graduação e que me olha com a mesma doçura de quando eu era uma criança. Agradeço ao meu pai Genival Ferreira, aos meus irmãos Valter Silva (in memorian), Walmir Silva e Valdes Silva.  Parte do que sou, tem retalhos teus.

    Agradeço a cidade de Cubati. Aqui vivi e aprendi muitas coisas. Aprendi a ser o professor que sou. A cidade em que vivi paixões, dores e amores, me mostrou um céu estrelado que nunca vi em Campina Grande. Aqui conheci lajedos, senti o cheiro de terra molhada, me fez ver beleza em uma natureza que a paisagem urbana, jamais me deu. Agradeço ao meu amigo de adolescência Felício Aguiar que, me apresentou a esta cidade. Se não fosse ele, o Curimataú para mim, seria apenas um ponto no mapa da Paraíba. Se não fosse ele, não conheceria as outras tantas pessoas, pelas quais fui lidando e tornando uma outra família minha.

    Sou grato pela inspiração e generosidade da professora Geni Pessoa, a primeira historiadora a se formar em Cubati, em um outro contexto, sem ônibus que levasse estudantes a Campina Grande, precisando muitas vezes, vir a pé, do trevo até a entrada da cidade, por cerca de 7 km, fadigada de uma jornada, muito mais exaustiva que seus contemporâneos e ao chegar em casa, ainda tinha que lidar com a masculinidade hegemônica de um marido que não queria que ela estudasse. Ouvir dela, essa história, foi razão para não desistir. Também agradeço a minha querida Rafaella Teles, ex-aluna que, se apaixonou pela história e que com seus escritos, me fez pensar as histórias pelas quais, conto aqui.

    Sou grato aos pais e mães de meus melhores amigos. Pessoas que, apesar de não os verem cotidianamente, me acolheram como a um filho também. Agradeço a Rosilda Santos que, sempre me recebeu com tanta hospitalidade e carinho em sua casa, rindo de meus devaneios e histórias de uma vida em meio aos microfascismos diários. Também agradeço a Toinha, mãe ciumenta, mas reconhecedora da amizade por quem tenho tanto zelo, de seu filho. Estendo meus agradecimentos a dona Marilene Martins e seu Zé Branco que, contribuíram com informações pitorescas e necessárias a minha escrita. Agradeço a Pallomma Martins, pela existência que nos completa. Em uma turma de bichas, seu toque sapatão, nos faz sapatonas melhores. Te amo.

    E por falar nelas, sou grato eternamente, pelo encontro de almas. Bichas que riem juntas comigo, que choram em coro, que abraçam coletivamente. De corações cheios de generosidade, fazem parte das muitas identidades que carrego. Beto Pereira, sua espontaneidade me traz leveza a qualquer hora. Juliano Cardoso, outra irmã, com quem dividi doçuras, travessuras e outras "bedtime stories". Taciano Pessoa, um querido que me inspira todos os dias, a continuar meus estudos. Michel Santos, esse estimado amigo de alma leve, e encantos mil, que traz o colorido de uma vida em paz, com todas elas. Esse texto é um presente para vocês, minhas irmãs.

    Meu agradecimento também para Ceciliano Gomes, colega de trabalho e um amigo único. Heterossexual de uma masculinidade periférica e quem dera que fosse hegemônica. De uma generosidade, sensibilidade e doçura incomum nessa terra árida de empatia à diversidade. De uma inteligência e visão holística, que me rendeu bons conselhos, sendo um deles, a minha volta a universidade. Aqui ficam meus agradecimentos a sua esposa Cláudia Morais e sua filha Evinha. Seus sorrisos encantadores, pulsando vida, foram fonte, muitas vezes, de inspiração para minha escrita. Também não posso deixar de agradecer a Erika Aparecida, pela amizade ridente que, começou ainda quando era aluna e hoje, entre confidências e muitas histórias, é uma amiga com quem posso contar sempre.

    Muito obrigado a todas, todes e todos!

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO I - A sala da casa das bonecas: a derrisão das bichas

    1.1 O brilho da purpurina das bichas: performando sexualidades fora e dentro da casa das bonecas

    1.2 A sala aberta: a vida das bichas como escândalo

    1.3 Divas e bichas: os (des)encontros no bal masquét

    CAPÍTULO II - De quartos abertos ou vendo o céu estrelado: prazeres e tensões em torno das bichas

    2.1 O véu da noite que (des)cobre o desejo de bichas e heteros no Campo do Palmeiras

    2.2 Entre quatro paredes e prazeres: amizade e tensões em torno do desejo de bichas

    2.3 Entre sonhos e entre laços: as sensibilidades de bichas e sua política-cadela

    CAPÍTULO III - Lajedos, feiras, cozinhas e bares: lugares de experiências bichas e seus sonhos de Alice

    3.1 Entre tanajuras, bichiniques e feiras: modos de subjetivação das bichas com a arte de cozinhar

    3.2 Do salgado ao azedo: os banquetes de alegrias e tristezas na cozinha das bichas

    3.3 Corpos que lutam na TV versus corpos que lutam na mesa do bar: os atos performativos das bichas fora da casa das bonecas

    3.4 Experiências e transgressões: os projetos solos e coletivos das bonecas

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    Entre dois homens, amor é igual a sexo que é igual a cu que é igual a merda. [...] – Por mais flores e risos e beijos e carinho e, droga, compreensão mútua e ma-tu-ri-da-de. Por mais apaixonado, por mais legal. Para mim, nunca. Fica um cheiro de merda por tudo. Mesmo que você não veja. Que você não sinta. No escuro, fica. No dia seguinte, mexendo nos lençóis, sem querer você vai acabar descobrindo uma manchinha fedorenta: merda, merda pura.

    A narrativa acima é do escritor Caio Fernando Abreu (1996, p. 111-112) e reflete a construção marginalizada a qual as bichas foram historicamente relegadas. Embora o autor ressalte a existência de amor e de carinho, sempre ficará um cheiro de merda, sempre dará em merda ou encontrará a merda. Metáfora de uma história que foi construída para dar errado, para ser escusa, fedorenta, melada. Uma história a causar náuseas, a ser rejeitada. Partindo dessa metáfora, convido o leitor a conhecer a minha história enquanto bicha, que está atrelada pela estética da amizade a outras pessoas que assim como eu, são bichas. Uma história, para usar um termo de Caio Fernando Abreu, dolorida-colorida.

    O historiador francês Jean Delumeau, em seus escritos disse algo que nunca esqueci. Segundo ele, as palavras têm muita vida. Na concordância com ele, faz-se necessário apresentar ao leitor a vida brilhante que dou a palavra bicha neste texto. Para muitos, um xingamento, cujo peso da palavra proferida pelos homofóbicos dava vida ao monstro da injúria. Foi assim desde criança que aprendi sobre a minha sexualidade, escutando provocações, piadas, ameaças, sendo xingado e humilhado e por vezes, a palavra bicha esteve presente, nos discursos da cisheteronorma, para dizer que eu estava sendo rejeitado, para dizer que eu era um anormal.

    Leandro Colling (2011, p. 8) em um de seus textos, diz que, é preciso fazer reivindicações políticas com o poder que temos de nos nomearmos, ainda que essa prática esteja carregada de riscos. É sobre este risco que corro, ao passo que, também faço uma reivindicação política do uso da palavra bicha, que em outrora me marcava negativamente e que nesse instante, tomo às rédeas da vida dela, da minha vida e de minhas amigas, chamando-nos assim, de bichas. Não usando o emprego da palavra de forma pejorativa, negando nossas existências e nossos desejos. Mas atribuindo uma outra vida à palavra. Uma vida ridente, de muita fechação, debochada e inventiva, sem a pretensão de dizer qual a forma correta de nos chamar, de nos nomear, mas antes, questionando esses discursos que nos classificou e classificam, como um xingamento.

    A teoria queer me ajuda neste instante, a perceber que, bicha na fala do homofóbico traz o peso do sentido de ser estranho e abjeto e que, estas pessoas que tentam nos ferir simbólica e/ou fisicamente, tentam atingir aquilo que é de mais íntimo em nós, a nossa sexualidade. É nesse espaço íntimo que, construímos a partir de atos performativos, nossos desejos, afetos, autocompreensão e aquilo que os outros entendem de nós mesmas, enquanto bichas. Precisava dizer isto de início, justificando a presença de bichas não apenas no título desta dissertação, assim como em todo o corpo do texto, pois se trata de uma bicha, falando das amigas, tão bichas quanto a que escreve estas linhas; bichas que se apropriaram daquilo que sempre foram chamadas. Reforçando a este entendimento, trago Javier Sáez (2016, p. 160-161), que diz:

    Todo ato performativo é baseado em uma repetição que não tem original, mas que produz um efeito de realidade a partir de sua própria repetição. Por isso mesmo, porque não se remete a nenhuma essência ou realidade natural, podemos nos apropriar desses atos repetidos e lhes dar um significado diferente. Ou seja, podemos promover um orgulho passivo, uma repetição de atos explícitos onde o positivo é o anal, a posição de receptor anal como algo prazeroso, produtivo e potente, onde invertemos essa tradição milenar. Já o fizeram os grupos queer com a palavra bicha ou sapatão que era negativa, mas quando nos apropriamos delas com orgulho passou a ser algo positivo nos círculos de militância queer. Desta forma, se desativa o insulto, apropriando-se dele.

    Antes de seguir, conto a que venho, o que se faz nas páginas deste trabalho que carrega a vida de cinco personagens transcritas em palavras. Vida palavra. Vida linguagem. Vida texto. Vida dada a conhecer. Nesse sentido, o objetivo desta pesquisa é analisar a vida de cinco bichas da cidade de Cubati, Paraíba, interior nordestino. Identificar nossas diásporas que produziram nossos encontros e a partir deles, construímos uma estética da amizade. Uma amizade como modo de vida. Vidas bichas. Assim como precisei dizer o porquê do uso da palavra bicha, neste texto também aparecem cu, pau e outras palavras que, lidas pelos mais conservadores, podem parecer chulas, mas optei por usá-las, porque entre quatro paredes, não falamos pênis, falamos de pau mesmo. É uma rola que mete, que fode e não um membro que penetra. Dito isto, quero deixar claro que não estou naturalizando essas palavras, mas são elas que operam os fragmentos de discursos que aparecem aqui. Neste sentido, me aproximo de Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2019, p. 46) que diz:

    Os desejos, os afetos, os corpos, as eróticas, os sentimentos e sensações minoritários, menores, vistos e ditos como fora da norma, dos padrões, das estruturas dominantes, dos discursos hegemônicos requerem, para que deixem de ser abjetos, para que se tornem objetos do conhecimento histórico, que se repensem as regras de produção e os códigos e modelos que presidem a escrita da história. É preciso que o saber histórico abandone aquilo que a teórica feminista Eve Sedgwick chamou de epistemologia do armário. Sim, existe uma epistemologia do armário, uma maneira de produzir conhecimento, paradigmas e modelos acadêmicos, códigos de produção do saber e da escrita que interditam certos assuntos, que interditam certas partes do corpo, que proíbem que se escreva de determinadas formas, que dado palavreado venha para o texto acadêmico, que dadas dimensões do íntimo e do privado não compareçam nem nos famosos compêndios de história da vida privada ou de história do cotidiano. A historiografia quase nunca entra na cozinha, no quarto e, principalmente, no banheiro. A historiografia raramente deita na cama, se enfia por baixo dos cobertores, se aloja por entre as pernas, passeia pelas bundas, ilumina o ânus. A historiografia preza pelas datas, pelos anos, não pelo ânus, com ou sem pelos. O corpo do personagem histórico não tem orifícios, corpo manequim, corpo prótese, corpo dildo, como diria com alegria e prazer irônicos Beatriz Precisado.

    A partir do campo das investigações sobre a História Cultural, pensando a cidade de Cubati¹, no interior da Paraíba, como um lugar de produção de práticas, de discursos, de sujeitos e suas tecnologias corporais. Cubati, com seus quase 8000 habitantes, é uma cidade da região do Curimataú paraibano. Está localizada a 82 km de distância de Campina Grande, cidade de porte médio, mas também sendo uma cidade do interior, com seus, pouco mais de 400.000 habitantes, faz com

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