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O misterioso Crime do Sacopã
O misterioso Crime do Sacopã
O misterioso Crime do Sacopã
E-book303 páginas4 horas

O misterioso Crime do Sacopã

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Sobre este e-book

O livro faz uma revisão do célebre Crime do Sacopã, ocorrido no Rio de Janeiro em 1952, quando foi assassinado o bancário Afrânio Arsênio de Lemos. Embora, até hoje, segundo a historiografia oficial, ao crime tenha sido atribuída a motivação de passionalidade, nele, abordo sobre outras razões e respectivos desdobramentos, em que incluo aspectos da personalidade da vítima e dos personagens adjacentes, como o delegado, o comissário, o promotor, o principal suspeito (Tenente Bandeira, da FAB), que é o protagonista do enredo. Falo também do suposto pivô do crime, a jovem Marina Andrade Costa. Como consequência, a partir de jornais e revistas da época e de obras posteriores, levo ao leitor os testemunhos e evidências contra o acusado, ao mesmo tempo que, opinando a respeito, denuncio falhas nos processos investigativos e processuais, conduzindo o leitor à certeza de um lamentável erro judiciário. Jogo luzes no célebre julgamento e, em capítulo específico, faço - como se seu advogado fosse - defesa de Alberto Bandeira, indicando ao leitor os prováveis erros e a provável fabricação de testemunhas contra o acusado. No capítulo derradeiro, opino sobre os prováveis homicidas, tudo a partir de evidências, deduções lógicas e de informações contemporâneas.
IdiomaPortuguês
EditoraViseu
Data de lançamento15 de ago. de 2022
ISBN9786525423029
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    O misterioso Crime do Sacopã - Antonio Valentim

    Apresentação

    O amor é fogo que arde sem se ver,

    É ferida que dói e não se sente;

    É um contentamento descontente,

    É dor que desatina sem doer.

    INVARIAVELMENTE, nos crimes passionais ou em grandes comoções e normalmente em julgamentos históricos, os advogados cuidam de casos reais que ultrapassam em emoção e suspense, os romances de ficção, as séries sobre mistérios, os filmes de Hitchcock, drama, comédia, e as novelas de televisão. Entretanto tudo acaba em arquivos. O povo, o grande público, termina por jamais saber sobre essas histórias fascinantes de os dramas, mas também das misérias humanas. Naturalmente que o público nada sabe em razão dos processos estarem na rubrica dos segredos de justiça.

    Neste livro, sobre o Crime do Sacopã, em que é feita uma repaginada histórica sobre a justiça, tramas, mídias, interesses escusos e, porque não fakenews, do crime ocorrido no início dos anos dourados, o meu bom amigo Antonio Valentim, o autor, não poupou tinta: foi buscar o que não sabíamos, o que não lembrávamos, o próprio fato e principalmente as alternativas sobre o que realmente possa ter levado as personagens se envolverem no Crime da Lagoa.

    Sobre as trapaças da sorte, Nelson Rodrigues dizia: sem sorte não se atravessa nem a rua. Já o mineiríssimo Guimarães Rosa atestava quatro situações sobre a sorte humana. A melhor sorte estaria no homem certo no lugar certo – impossível melhor. No outro extremo, ou seja, no azar, estaria o homem errado no lugar errado - pior impossível. Já no também chamado Crime do Citroen Preto autor e vítima estariam em uma das duas situações intermediárias: o homem certo no lugar errado ou O homem errado no lugar certo. São duas condições interpoladas. O Imortal da ABL, médico e embaixador na Alemanha, João Guimarães Rosa era categórico: das quatro trapaças, o homem errado, mas no lugar certo é a segunda melhor.

    Tanto o tenente Bandeira, ao final incriminado, quanto o bancário Afrânio, única vítima, eram típicos Homens certos, mas no lugar errado e eu explico. O tenente-aviador, paraense, piloto, formado e preparado para fazer o Curso de Caça na Capital Alencarina, era, portanto, um homem certíssimo, mas naquele fatídico dia estava no lugar errado: o Rio de Janeiro. Por seu turno, o bancário Afrânio, do BB, como pessoa era tão certo ou mais que o exigido: era um voluntário da pátria, um herói, pracinha, também tenente na segunda guerra. No seu retorno da Itália voltou ao seu antigo emprego no Banco do Brasil. Assim, terminado o conflito deu adeus às armas em 1945, antes de dar adeus à vida em 1952. Era, portanto, um homem pra lá de certo, mas, eis que os dois homens certos, Afrânio e Bandeira encontravam-se por força do destino, no lugar errado: O Rio de Janeiro, no interior de um Citroën preto, à margem da lagoa Rodrigo de Freitas numa noite escura dos anos 50 e o pior - sem testemunhas. Poderíamos dizer mais sobre o lugar errado: O Rio de Janeiro era a cidade em que também morava Marina da inglória trama do destino.

    Há uma poesia de Drummond que converge com um musical de Chico Buarque para darem a fórmula e o encadeamento de um crime passional. Qualquer obra com passionalismo se encaixa na receita do itabirano de Andrade com o fluminense de Holanda. Eis a mistura: O tenente que amava a cabrocha Marina, que ouvia o piano de outro tenente e que além dos tenentes amava o bancário, que era casado com Ismênia, que se separou para casar com um certo capitão-médico, mas continuou a ver o bancário, que não largava o osso, e muito menos a carne, e que por isso fora ameaçado aos quatro ventos.

    É um não querer mais que bem querer;

    É um andar solitário entre a gente;

    É um nunca contentar-se de contente;

    É um cuidar que ganha em se perder.

    Não é muito comum, mas há autores, que, na confecção de seus livros, evitam o prefacio. Mandam suas obras ao prelo sem apresentador – evitam assim comprometer mais alguém além de si. Talvez o autor dessa obra, sabendo que a pulga da injustiça, também sentou na orelha de mais gente, optou por me convocar e permitiu este texto. O Crime do Sacopã já pertence à história e, por isso mesmo, Valentim não precisou contornar a regra ética de preservar os fatos, nem ferir a estética e muito menos a história. Ocorre que é impossível retornar ao Crime do Sacopã, bem como ao resultado judicial, sem se envolver com a áurea malsinada do tenente Bandeira. Para melhor compreensão do que escrevo, basta dizer: O aviador culpado na justiça foi até o último de seus dias afirmando inocência. Assim, ninguém fala o nome Sacopã (um antigo quilombo) sem que as malhas da dúvida, do mau destino, da injustiça, da trama e das agruras, fiquem sobre nossas cabeças, como um avião de caça espreitando o alvo.

    É querer estar preso por vontade;

    É servir a quem vence, o vencedor,

    É ter com quem nos mata, lealdade.

    Por fim, temos que reconhecer que Antonio Valentim, dentro da história recente, promoveu a formidável oportunidade de se rever a justiça, a força da imprensa e a evolução do comportamento social, sem se importar com o tempo. Temas como os Ossos de Dana de Teffé, o Advogado do Diabo e o Homem da Capa Preta estão na obra, não para ilustrar, mas por contexto próprio do julgamento do Sacopã – são partes do desfecho. Não custa lembrar que o julgamento do aviador, o tenente Bandeira, foi em 1954, concomitante ao crime de outro aviador, o major Vaz, que culminou com o 24 de agosto de Getúlio. Tudo resolvido à bala, sem contar, que naquela época, os códigos engatinhavam.

    Para prefaciar eu devo ter exagerado em reler, reler de novo e reler mais toda a obra, menos a conclusão, por acordo. Afirmo e reafirmo sem medo de errar: acabei toda a leitura com o gostinho de ter topado com o estilo de Machado de Assis, junto com a trama de Shakespeare numa mesma obra. Não tenho dúvidas da iluminação especial do amigo Antonio Valentim, ao se debruçar sobre o infortúnio do tenente Bandeira, conterrâneo da terra Marajoara. Quanto a mim, que assino o prefácio, na trajetória de leitor inveterado, é claro que me senti honrado. Entretanto confesso que ler e reler a obra quente, no forno, foi bem mais emocionante – era a obra que eu queria ter escrito.

    Santa Maria de Belém do Grão-Pará, 3 de janeiro de 2022.

    JOAN DE CASTRO ALVES

    Coronel-especialista-em-aviões da FAB, bacharel em Ciências Jurídicas pela UNAMA, engenheiro-mecânico pela UFPA, bacharelado e licenciado em História pela UFPA e ex-supervisor da Escola Tenente Rêgo Barros (Belém – PA)

    Capítulo primeiro

    Muito mais coisas há entre o céu a Terra do que pode

    imaginar nossa vã filosofia.

    William Shakespeare

    ERA EU ainda um imberbe terceiro-sargento em Anápolis quando, por mais de uma vez, casualmente ouvia falas de colegas mais antigos acerca de um tal tenente Bandeira, que, segundo eles, cumprindo prisão preventiva na Base Aérea de Santa Cruz, costumava ser visto a circular de bicicleta pelas extensas instalações daquela legendária unidade militar. Corria o ano de 1982, trinta anos depois do famoso Crime do Sacopã. Havia no discurso dos antigãos um quê de dúvida ou mesmo uma pitada de mistério que eu, desconhecendo totalmente a história do tenente Bandeira, não sabia decifrar. Nunca antes havia ouvido falarem sobre o tal tenente Bandeira, mas a partir daí passei a saber que ele foi condenado por um crime de homicídio.

    O crime aconteceu no Rio, às margens plácidas da Lagoa Rodrigo de Freitas.

    O ano era o de 1952, quando o senhor Getúlio Dornelles Vargas chefiava os Estados Unidos do Brasil; a cidade maravilhosa era administrada pelo engenheiro João Carlos Vital, prefeito do Distrito Federal; e o general Ciro de Rezende comandava a polícia do DF, corporação que, além de combater o crime, praticava em nome da justiça e da verdade – como faz até hoje – a tortura, a corrupção de testemunhas e a fabricação de farsas processuais.

    Tenente Bandeira: título militar e nome que se quedaram, desde então, adormecidos em minha irrequieta mente por trinta anos. Passadas mais três décadas, uma dúvida agora bem mais forte e, por isso, impossível de ser ignorada, instigando-me, volta e meia voltava-me à mente: o jovem aviador, condenado a quinze anos de reclusão, afinal foi vítima de mais uma lamentável injustiça ou realmente Alberto Bandeira foi um vil e impiedoso assassino? Noutras palavras: teria sido Bandeira vítima de erro judiciário ou de fato ele matou o rival sem ter tido a prudência de elaborar um álibi convincente? Perniciosas indagações que me perturbavam o espírito e, ainda hoje, após exaustivas pesquisas, cobram-me respostas conclusivas, que eu pensei nunca chegariam. O Crime do Sacopã foi, durante todo esse tempo, um indecifrável enigma a exigir-me solução, como o mitológico monstro a dizer-me:

    Decifra-me ou devorar-te-ei.

    Decifrar ou não o enigma jamais perturbou a serenidade de meus pensamentos, sabendo-me humano e limitado. Contudo, a quase impossibilidade não me impediu de debruçar-me às pesquisas e à escrita destas páginas, onde buscarei revelar à amiga leitora (ao leitor amigo) as gritantes falhas de todo o processo formal, guiando-me a partir do que noticiou a imprensa e de poucas fontes posteriores. Estas páginas inquietas – e inquietantes – clamam em favor da inocência de Bandeira e, por imparcialidade, também dizem sobre as evidências – várias delas forjadas – que vieram a público contra ele, e que, ao final, conduziram o jovem aviador ao cubículo 21 da Penitenciária Lemos de Brito.

    Não estamos aqui para explicar.

    A certeza e a convicção foram decretadas ao longo processo penal, com o indiciamento, a denúncia e o processo, fases policiais e judiciais, citações, inquirições, diligências, sindicâncias, perícias, resultando isso tudo no julgamento que levou o tenente à condenação a quinze anos de reclusão. Sua excelência o juiz João Claudino de Oliveira Cruz, às 16 horas de 27 de março de 1954, leu a decisão do conselho de sentença e, ao cabo, bateu o martelo, selando a sorte de Alberto Jorge Franco Bandeira. Sob o aforisma jurídico Quod non est in actis non est in mundo,¹ portanto, com base no que dizem os autos, cinco membros do conselho de sentença foram, de alguma forma, convencidos de que Alberto Bandeira matou um homem e, por isso o condenaram. Isso é como a história registrou.

    Neste livro, igualmente a José Abelardo Barbosa, o Chacrinha, eu não vim para explicar e sim para confundir. Venho ao menos semear a dúvida ou até mesmo dizer com toda a clareza da improbabilidade de que o aviador tenha assassinado o bancário. Por conseguinte, proponho-me, a mostrar o outro lado da questão e – ao mínimo confundindo – levar a dúvida à mente do leitor, senão a certeza. Setenta anos depois, almejo expor outra leitura da história e assim permitir aos amigos leitores e leitoras que tirem suas próprias conclusões.

    Tomando como gancho um outro crime.

    Depois desses três decênios, pesquisando a novelesca história do tenente Bandeira, o caso me remeteu a outro, acontecido em Belém – por sinal, torrão natal do militar condenado e também do autor destas páginas questionadoras. Em 2007, causou enorme repercussão o caso de dois irmãos cruelmente assassinados. A motivação foi agiotagem. A dívida se avolumava e já se classificava como impagável. Por telefone, os credores foram atraídos pelos devedores, que acenavam com um acordo; para isso um encontro foi marcado. Era uma armadilha. O crime, que muito repercutiu na mídia belemense, não tardou para ser elucidado, com a polícia seguindo o faro de denúncias de populares ao terem percebido o desmonte do automóvel de um dos irmãos agiotas, e assim rapidamente chegar aos mandantes e aos executores. Os acusados foram indiciados, denunciados, julgados e condenados.

    Caso encerrado.

    * * *

    A POLÍCIA, que dispõe de todos os aparatos legais, humanos e materiais, quando realmente quer, sabe ser eficaz levando às barras da justiça os responsáveis por quaisquer ilícitos penais. Não desvia nem enrola. Sabe-se, porém, que neste país de poderosos e bacharéis nem sempre a polícia trabalha com prontidão, como se houve a de Belém – ao menos nesse caso por mim exemplificado. Pudera! As vítimas eram pessoas endinheiradas; além disso, eram irmãos de um deputado estadual, que também era empresário do ramo de postos de combustível, nível social de destaque.

    Lembro aqui, com larga dose de saudade, do senhor Manoel Valentim, um exímio contador de casos e causos divertidos, que com seu jeito peculiar arrancava gostosas risadas de todos que com ele conviviam. Dizia meu pai que em São Miguel do Guamá, município onde ele nasceu e se criou, certa vez houve um crime. Era sabido que os criminosos fugiram para o sul da localidade, não obstante os policiais lotados no município dirigiram suas buscas ao norte, ou seja, caminharam no sentido diametralmente oposto. A população tinha clareza de que a polícia não pretendia localizar os delinquentes e aí entrava a anedota, pois cidadãos de bem estavam envolvidos no delito. De quando em vez, o seu Manoel, às gargalhadas, lembrava do caso, principalmente quando se deparava, pela leitura de jornais ou ouvindo rádio, com notícias semelhantes:

    Olha lá a polícia de São Miguel!.

    No Brasil, dependendo da vítima ou do mandante, a polícia se impõe como célere e eficiente ou, ao contrário, pode se apresentar como lenta, ineficaz e atrapalhada, empurrando indefinidamente com a barriga a resolução do caso. Havendo pressão popular e midiática, corre-se o risco de a bomba cair no colo de um inocente, um bode expiatório. Existindo testemunhas comprometedoras, elas também se arriscam a ser silenciadas – queima de arquivo, como se convencionou chamar. Tudo indica que tenha sido esse o caso do Crime do Sacopã, como a crônica policial carioca registrou o novelesco homicídio. Testemunhas aí não foram silenciadas, mas sutilmente manipuladas, afastadas ou inseridas, visando chegar-se ao ponto da convicção de que Alberto Jorge Franco Bandeira realmente matou o bancário.

    Percebo, ao estudar o caso, que, por precaução, as autoridades não chegaram de pronto a Bandeira. Tiveram alguns escrúpulos porque o suspeito pertencia a uma classe tida e havida como acima de qualquer suspeita – era oficial da Força Aérea Brasileira (FAB). Bem que tentaram chegar a outro, mas, não se tardou para que Rui Dourado e companhia, numa implacável cruzada, buscassem a culpa do militar, que, tendo a Aeronáutica lavado as mãos, era apenas um tenentezinho no dizer insultuoso do promotor Emerson Luís de Lima durante a grande comédia farsesca que foi o julgamento de Alberto Bandeira, a 26 e 27 de março de 1954. Entre um coronel e um tenente, a bomba estouraria em cima deste, o elemento mais fraco, como apontei noutros casos que abordei em O País dos Militares e dos Bacharéis.²

    Vamos nós então, nestas páginas questionadoras, aos riquíssimos detalhes do intrigante Crime do Sacopã, buscando abordar suas múltiplas facetas e seus diversos caminhos e possibilidades. Esse foi um dos mais célebres, intricados e misteriosos casos de homicídio que apaixonou a já cosmopolita Rio de Janeiro dos anos (nem tanto) dourados de 1950, época em que assassinatos ainda eram tratados como escândalo e não como estatística policial.

    Organizo a narrativa em seis capítulos:

    – Este;

    – O Crime do Sacopã;

    – Todos contra o tenente Bandeira;

    – No velho prédio da rua Dom Manuel;

    – Em defesa do tenente Bandeira; e

    – Capítulo Derradeiro.

    Atenção!

    Peço que nas próximas páginas as amigas leitoras (os leitores amigos) detenham-se com mais atenção às primeiras notícias dos jornais e revistas da época, veículos que deram larga publicidade ao crime. Nossas teorias estão apoiadas em fatos, por essa razão, chamo também a atenção do dileto leitor (da leitora amiga) para as poucas fotografias, pois uma delas – não tivesse o processo se constituído numa vergonhosa farsa – teria sido determinante para o desfecho do caso, mudando a sorte de Alberto Jorge Franco Bandeira.


    1 Quod non est in actis non est in mundo: axioma jurídico latino cuja tradução é: o que não está nos autos não está no mundo, significando que o mundo é a verdade dos fatos. Não é verdade, se não está nos autos; se não está nos autos, é mentira, ilações, e por isso não se leva em conta.

    2 VALENTIM, Antonio. O País dos Militares e dos Bacharéis. Rio de Janeiro: Autobiografia, 2021.

    O Crime do Sacopã

    Todos sabem que o amor e o ódio podem levar à desordem

    a própria lógica.

    Alexis Carrel

    O RIO DE JANEIRO ganhou em definitivo ares de metrópole quando El Rey lá aportou a 8 de março de 1808. Na época, o Rio, uma suja cidade, não estava preparado para sediar o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, precisando ser estruturada. A acompanhar Sua Majestade veio um séquito numeroso de ociosas gentes, que também fugiam das tropas napoleônicas. Esse povo, que chegou aos milhares, estranho e esquisito, de pele alva e de vestes extravagantes, escandalizou-se ao encontrar aqui outras gentes, como os pardos – embora em número reduzido – que já habitavam Pindorama desde antes da esquadra de Cabral chegar à Terra de Santa Cruz, e a partir daí dizimados. Havia também os pretos, que faziam todo o trabalho pesado, gente que em profusão nestas terras pisou a partir do primeiro navio negreiro chegado da mãe África, havia quase trezentos anos.

    Passaram-se anos, décadas e século.

    Nos anos de 1950, a já cosmopolita cidade do Rio de Janeiro de então era ainda uma cidade relativamente tranquila, mal ultrapassando a marca de dois milhões de viventes. Para lá convergiam todos os anos milhares brasileiros – e também estrangeiros – atraídos pelo glamour da Cidade Maravilhosa e pelas oportunidades que oferecia a então capital de um país ainda essencialmente agrícola, que nem automóveis nem motocicletas fabricava. Agora, os herdeiros da comitiva d’El Rey, em grande parcela, exerciam cargos públicos e no Rio de Janeiro fervilhava uma legião de funcionários com salário certo ao final de cada mês. O privilégio não se estendia à maioria da população carioca, fossem brancos, pardos e negros, pobres mortais que davam duro para ganhar o pão – sem direito à manteiga – de cada dia, na lida diária incessante de carregarem o piano para o primeiro grupo tocar.

    A orla sul da Lagoa Rodrigo de Freitas representava a moradores de Ipanema e do Leblon um aprazível recanto público, que, por conta da ostensiva vigilância de guardas-noturnos municipais, oferecia a seus frequentadores relativa segurança. Tais características, próprias do tempo e do lugar, favoreciam também ao encontro noturno de casais de namorados – ostensivos ou clandestinos –, que à noite costumavam reunir-se na avenida Epitácio Pessoa no trecho próximo ao aristocrático Clube dos Caiçaras, divisa entre o bairro da Lagoa, Ipanema e Leblon. Tal era o panorama da parte sul da Lagoa, onde numa ilhota artificial se localiza ainda hoje aquele elegante clube, tendo como grande referência o Jardim de Alá, parque que contorna as margens dum curso d’água orientado no sentido norte-sul, cuja função é escoar as serenas águas da Lagoa ao Oceano Atlântico, estabelecendo divisa natural a leste com o bairro de Ipanema, e a oeste com o bairro do Leblon.

    Numa outra realidade, desde quando Izabel assinou a Lei, no entorno da Lagoa, aos poucos, foram-se refugiando milhares de pessoas recém-libertas, que, reunindo-se aos quilombolas que já ali se haviam instalado, também eles passaram a construir seus casebres. Isso foi numa época em que aquele lugar distava da zona central do Rio – um fim-de-mundo, onde o vento fazia curva e Judas havia perdido as botas. Portanto, o entorno da Lagoa era ainda uma região erma, onde as gentes de bem não se interessavam em habitar. Na proporção em que a cidade ia crescendo, a pobre gente do lugar forçava-se ao deslocamento para leste, oeste e norte da Lagoa, ocupando espaços semirrurais que, mais tarde, passaram a ser conhecidas como a favela da Praia do Pinto, das Dragas, do Piraquê e da Catacumba.

    Passou-se o tempo.

    Agora, na década de 1950, apesar de quase nenhuma estrutura urbana, morar lá para eles não era desvantajoso, vez que a região lhes proporcionava a comodidade da curta distância entre a moradia e o local de trabalho, podendo deslocar-se a pé, sem gastos nem demora. A facilidade não durou muito. Na década de 1960, a reboque da grande reforma urbana promovida por Carlos Lacerda, governador da Guanabara, milhares de barracos do entorno da Lagoa foram demolidos. Em 1967, a favela da Catacumba foi destruída por um suspeito incêndio, desabrigando seus teimosos e miseráveis habitantes, que insistiam ainda em habitar naquele sítio. Diante de todas as desgraças, a gente humilde do lugar buscou abrigar-se em regiões mais longínquas do Rio, como a Cidade de Deus e Cordovil. Livre dos indesejáveis, o recanto privilegiado e abençoado por Deus, de onde se pode vislumbrar o Redentor, deu vez a uma voraz especulação imobiliária. Por conseguinte, hoje somente residências suntuosas e elegantes se veem ao entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas.

    Rua Nascimento Silva, cento e sete

    Você ensinando pra Elizete

    As canções de canção do amor demais

    Lembra que tempo feliz, ai que saudade,

    Ipanema era só felicidade

    Era como se o amor doesse em paz

    [...]

    Mesmo a tristeza da gente era mais bela

    E além disso se via da janela

    Um cantinho de céu e o Redentor

    É, meu amigo, só resta uma certeza,

    É preciso acabar com essa tristeza

    É preciso inventar de novo o amor³

    [...]

    Rua Nascimento Silva, cento e sete

    Eu vinha correndo do pivete

    Tentando alcançar o elevador

    A minha janela parece um quadrado

    A gente só vê cimento armado

    Onde antes se via o Redentor

    É, minha gente,

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