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Supermercado Disfarçado De Deus
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E-book325 páginas4 horas

Supermercado Disfarçado De Deus

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Sobre este e-book

“ Agosto de 1961 o Brasil passa por um terremoto mas não na terra e sim em todo ambiente do país. Pelos anos seguintes a renúncia do presidente da República provoca rachaduras por toda parte. Nas instituições, na sociedade, na vida das pessoas. Um fervoroso adepto do “mito Jânio Quadros” tem a vida modesta virada dos pés à cabeça pelos caprichos do destino em um país voltado a devorar seus filhos”.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de out. de 2021
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    Supermercado Disfarçado De Deus - Jm Freitas

    Para Ana Carolina (In Memoriam): saudade eterna.

    Para Tina: companheira das dores e alegrias vida.

    Não matarás.

    -Sexto mandamento cristão.

    "Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor;

    o problema é o guarda da esquina"

    - Pedro Aleixo, na reunião que decretou o AI-5.

    SUMÁRIO

    CAPÍTULO I: RENÚNCIA

    CAPÍTULO II: BRIGITTE BARDOT

    CAPÍTULO III: CIRCO

    CAPÍTULO IV: CASAMENTO

    CAPÍTULO V: PERNAS

    CAPÍTULO VI: VELHO COBERTOR

    CAPÍTULO VII: PERFUME PECAMINOSO

    CAPÍTULO VIII: ÚLTIMO TRAGO

    CAPÍTULO IX: BOB CARLOS 64

    CAPÍTULO X: SEGUNDA IGREJA

    CAPÍTULO XI: BETH PIMENTA

    CAPÍTULO XII: DEUS NÃO É SURDO!

    CAPÍTULO XIII: GUERRA CIVIL

    CAPÍTULO XIV: MARCHA

    CAPÍTULO XV: COBRANÇA

    CAPÍTULO XVI: ERUPÇÃO

    CAPÍTULO XVII: CONTRAPROPOSTA

    CAPÍTULO XVIII: VAGA-LUME

    CAPÍTULO XIX: SALMO 23

    CAPÍTULO XX: MANSIDÃO DOS SONHOS

    CAPÍTULO XXI: KOMBI

    CAPÍTULO XXII: SOSSEGO

    CAPÍTULO XXIII: AMOR CRISTÃO

    CAPÍTULO XXIV: RÁDIO

    CAPÍTULO XXV: LETRA VIVA

    CAPÍTULO XXVI: NOITE ALTA

    CAPÍTULO XXVII: LANÇA SUTIL

    CAPÍTULO XXVIII: VINTE MIL

    CAPÍTULO XXIX: CRESCEI E MULTIPLICAI-VOS

    CAPÍTULO XXX: MONSTRO

    CAPÍTULO XXXI: SPEAK LOW

    CAPÍTULO XXXII: ÚLTIMA CONVERSA

    CAPÍTULO XXXIII: LÁGRIMAS COPIOSAS

    CAPÍTULO XXXIV: JURAS

    CAPÍTULO XXXV: REPRESENTANTE

    CAPÍTULO XXXVI: ML-7

    CAPÍTULO XXXVII: CAPITÃO PALHARES

    CAPÍTULO XXXVIII: PEDIDOS

    CAPÍTULO XXXIX: TELEVISÃO

    CAPÍTULO XL: FIGURÃO

    CAPÍTULO XLI: DITADURA

    CAPÍTULO XLII: CHÁ DE CAMOMILA

    CAPÍTULO XLIII: IDEALISMO

    CAPÍTULO XLIV: CONTINÊNCIA

    CAPÍTULO XLV: PRIMEIRO TEMPO

    CAPÍTULO XLVI: SEM LINHA

    CAPÍTULO XLVII: MANDIOCABRAS

    CAPÍTULO XLVIII: KGB

    CAPÍTULO XLIX: BATOM

    CAPÍTULO L: SATANÁS!

    CAPÍTULO LI: DESCONHECIDO

    CAPÍTULO LII: AUTORA A DA LIBERDADE

    CAPÍTULO LIII: AUSCHWITZ

    CAPÍTULO LIV: TINHOSO

    CAPÍTULO LV: COISAS EMBARALHADAS

    CAPÍTULO LVI: NONA SINFONIA

    CAPÍTULO LVII: RESULTADOS

    CAPÍTULO LVIII: CASABLANCA

    CAPÍTULO LIX: MILIONÁRIO

    CAPÍTULO LX: GRÂNDOLA, VILA MORENA

    CAPÍTULO LXI: CASTELO DE CARTAS

    CAPÍTULO LXII: BABACA

    CAPÍTULO LXIII: PURIFICAR

    CAPÍTULO LXIV: ADEUS ÀS ARMAS!

    CAPÍTULO LXV: CORRENTEZA

    CAPÍTULO LXVI: FORA!

    CAPÍTULO LXVII: LISBOA

    CAPÍTULO LXVIII: FUTURO 313

    MÚSICAS

    CAPÍTULO I: RENÚNCIA

    Na sala, além do empoeirado, patético e torto retrato presidencial pendurado na parede, havia um arquivo de pastas suspensas, três cadeiras e uma velha e solitária máquina de escrever Remington preta em uma mesinha de canto; sobre as duas pesadas mesas de mogno, jaziam uma infinidade de penduricalhos típicos de uma repartição pública: carimbos, bandejas, ofícios, memorandos, diários oficiais amarelados pelo tempo, papéis carbonos e canetas. Uma das mesas era ocupada pelo Dr. Braga, o chefe da Seção de Serviços Diversos da Comissão Executiva da Mandioca, uma repartição de quinto escalão do Ministério da Agricultura. O Dr. Braga, quando não estava bêbado, vivia a praguejar seus superiores hierárquicos:

    — São uns imbecis! Só gostam de papel e não de mandioca! Imbecis! - era seu refrão favorito diante dos infindáveis trâmites burocráticos.

    À outra mesa, sentava-se o seu diligente auxiliar, cuja alcunha era Outrossim. Seu nome era Carlos Ambrósio Mantolini, um ex-pracinha condecorado pela FEB. O apelido advinha do costume de, em meio a uma conversa, fosse qual fosse o assunto, proferir a palavra outrossim, sempre em tom grave e cerimonioso. Carlos era um modesto escriturário da burocracia federal, já próximo dos 40 anos; caucasiano, esbelto e alto; com ligeiras falhas nos cabelos negros que cintilavam de tanta brilhantina; lábios médios e bem desenhados; e olhos verdes transcendentes. De fato, Carlos não compreendia plenamente o sentido do termo que diariamente empregava, mas sentia-se em júbilo ao fazê-lo, pois imaginava despertar imponência e respeitabilidade, intimidando os colegas incautos. Nesse momento, ele imaginava igualar-se, por míseros segundos ao menos, a um bacharel, a um eloquente tribuno, a uma grande liderança política como seu ídolo maior: o presidente Jânio da Silva Quadros.

    Numa tarde brasiliense de uma sexta-feira bastante ensolarada (25 de agosto de 1961), após soltar sonoramente sua palavra típica numa conversa com colegas de repartição, Outrossim desfrutava do sentimento de onipotência que a expressão favorita lhe proporcionava, quando foi interrompido pela entrada intempestiva e atabalhoada do Dr. Braga na sala em prantos e visivelmente embriagado:

    — O Jânio renunciou! O Jânio renunciou! Deu agora no Repórter Esso. A oposição venceu! Marditos comunas! Mardito Lacerda! Marditos!!! Estamos desempregados! Os vermelhos do Goulart é que vão mandar! Vamos organizar a residência... digo, a resistência!

    O Dr. Braga se expressava no idioma típico e sinuoso dos bêbados, dificultando um pouco que seu atônito auxiliar o compreendesse. O início da fala fora, no entanto, bem claro como o céu azul daquela histórica tarde: o presidente de seis milhões de votos, político até então mais votado da história brasileira, acabara de renunciar ao posto supremo do país.

    E agora! O que será do Brasil!? - a pergunta martelava a cabeça do atônito Outrossim, E o que será de mim? O sonho acabou!? – se indagava aflito também.

    Logo, se recompôs e seguiu com suas conjecturas:

    Não! O povo não deixará o presidente sozinho! O nosso mito! O povo deve estar, nesse momento, protestando contra a renúncia, querendo a volta de Jânio nas ruas de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Porto Alegre... isso, sim! Mesmo aqui em Brasília, intensas manifestações populares certamente estão ocorrendo. A pátria em vassouras, se levantando por todo o país, impedirá o vil golpe de comunistas e corruptos contra Jânio!

    Mais aliviado por esse raciocínio, olhou com piedade o chefe ébrio e resolveu sair do prédio para andar pela Esplanada dos Ministérios, de onde acompanharia melhor os acontecimentos. Vestiu o velho e amarrotado paletó preto de Tergal, ajeitou a gravata azul clara com bolinhas amarelas e saiu sorrateiramente da sala, deixando o atordoado chefe afundado em bravatas.

    No corredor de acesso aos elevadores, encontrou o contínuo Lima visivelmente feliz.

    — E aí, rapaz? O homem renunciou! Dizem que ele se enrolou na faixa presidencial e abraçado à amante Dona Garrafa de Whisky fugiu pra Sampa! – disse-lhe o carioca Lima, exibindo um sorriso oceânico.

    — É mentira sua, seu calhorda comunista! - retrucou enfurecido e rubro, continuando em altos brados - O Senhor Presidente da República não é homem de fugir aos desafios postos! Jamais! E, outrossim, vou ao Palácio prestar minha total solidariedade ao Excelentíssimo Senhor Presidente!

    — Vai encontrar apenas o Excelentíssimo Senhor Porteiro e olhe lá! - ironizou o carioca.

    — Vai descer!!! – gritou, já impaciente, o ascensorista.

    Outrossim correu em direção ao elevador, abandonando o contínuo carioca. O elevador, embora novo como tudo em Brasília, era exíguo, quente e já estava com o ventilador quebrado, parecendo mais um forno ambulante.

    — É, Outrossim, parece que o homem renunciou mermo! – comentou Mané, o ascensorista.

    — Boataria! Boataria, Mané, dessa oposição vagabunda de comunistas, lacerdistas, brizolistas. Essa gente não presta! Estou indo agora apurar essa farsa!

    — Se renunciou é cabra frouxo, num merecia mais ser presidente. O velhinho,... o Doutor Getúlio,... que Deus o tenha!... é que muito fez por nóis humilde. Só saiu do Catete morto. Se mataram mermo, num sei, mas pelos menos não abandonou o barco, não foi covarde.

    Respondeu com um olhar, misto de raiva e desprezo, as palavras do ascensorista. Quis verbalizar seus sentimentos, mas lembrou-se a tempo das histórias e causos, que contavam pelos corredores do Ministério, sobre as atividades de Manuel Severino no bando de Lampião. Diziam que tinha sido homem de confiança do Rei do Cangaço e que tinha degolado muita gente. Verdade ou não, era melhor não polemizar. Sujeito ignorante, bruto e, sobretudo, com passado sanguinário – se justificou para, com preconceito e prudência, calar-se.

    Ao contrário do que pensava, ao sair da repartição, deparou com a Esplanada dos Ministérios erma. Apenas um vento soprando alto, carregando a poeira vermelha do Cerrado, perturbava a serenidade da paisagem. Agoniado e com mau presságio, correu, ou melhor, tentou correr em direção ao Palácio do Planalto, mas a distância de 500 metros e os mais de 20 cigarros que devorava diariamente impuseram uma caminhada mais lenta.

    Chegando ao Palácio, constatou a ausência de manifestantes e a presença costumeira dos "Dragões da Independência’, a engalonada guarda presidencial.

    Ora, se não há povo, não há renúncia. Tudo está em sua mais absoluta e perfeita normalidade. É mais um boato leviano dessa oposição de maricas, invejosa e incapaz de perceber a grandeza das medidas de Sua Excelência, como a proibição das brigas de galo e do uso de biquíni nas praias, visto que Deus não criou os galos para se digladiarem nem as mulheres para se exibirem em público, dando viuvez precoce às galinhas; desgosto aos pais, maridos e irmãos, e deleite aos marmanjos e vadios. Boato, sujo e irresponsável!.

    Outrossim já estava fazendo o caminho de volta para sua repartição, quando uma mão pesada lhe alcançou o ombro esquerdo:

    — Carlos Ambrósio! O homem renunciou! renunciou!! E agora?

    — Não é verdade! Isso é boato, Caetano!

    — É verdade, sim! O Auro de Moura Andrade acabou de ler a carta-renúncia e o Congresso Nacional, em reunião extraordinária, acatou! Eu vi com esses olhos que a terra há de comer e ouvi com essas orelhas grandes que Deus me deu!

    Caetano, sujeito gordo, hipertenso e afobado, era primo de Carlos. Podia ter lá seus defeitos, porém não era dado a mentiras. Além do mais, trabalhava como contínuo na Câmara dos Deputados. Entendia tudo do trâmite legislativo!

    — Parece que já entraram em contato, inclusive, com o vice Jango, que no momento está na China, disse Caetano, indicando ao primo que rei morto, rei posto.

    Jânio realmente renunciara. Outrossim agora estava convencido que a notícia dada pelo chefe Dr. Braga era verdadeira. Estava perplexo, sem rumo, sem o que dizer ao primo. Apenas suspirou e começou a andar a esmo, sem direção, deixando sozinho um também atordoado Caetano. Sentia-se traído como um marido, que é sempre o último a saber. Caminhou cabisbaixo por vários minutos, sem perceber o sentido dos seus passos, até enxergar de soslaio uma galeria e nela entrou, indo direto para o primeiro bar que encontrou. Sentou-se a uma mesa no fundo e pediu uma cerveja ao balconista. Enquanto engolia a amiga loira, companheira universal dos frustrados, a memória lhe trazia recordações de Jânio, lembrando-se da primeira vez que o vira, em 1946, num comício na Vila Maria, onde morava e que, nessa época, não passava de um bairro pobre, periférico e esquecido da cidade de São Paulo. Era eleição municipal, e Jânio se candidatara a vereador, deixando Outrossim impressionado com aquele palavreado difícil, o corpo frágil, o terno amarrotado com caspa na lapela e, sobretudo, o olhar estrábico e enigmático fixado na multidão. Outrossim sentiu naquele homem uma espécie de salvação, sua e do Brasil; um Dom Sebastião que iria, com fúria e sede de justiça, redimir os pobres, os anônimos e os abandonados à própria sorte como ele, um humilde funcionário da Funerária Municipal. Não havia dúvidas! Ao findar o discurso de Jânio, bateu palmas alucinadamente e foi ao encontro do candidato, carregando-o nos ombros junto com outros populares pelas ruas poeirentas do bairro.

    Jânio obteve a suplência da vereança, mas como em 1947 os comunistas foram cassados, assumiu como titular a partir desse ano. Exatamente em tal período, Outrossim estreitou relações com o vereador, tornando-se um fiel cabo eleitoral. Levava-lhe queixas dos moradores do seu bairro contra a prefeitura; pedidos de asfaltamento de ruas; de instalações de postos de saúde, escolas e creches; além de convites de casamento, batizados e festas de aniversário. E foi num plenário vazio, às moscas, numa sessão de segunda-feira, que ouviu a palavra outrossim da boca do próprio Jânio. Encantado, ele a adotou, imediatamente, sem atinar muito para o significado.

    Em 1952, quando Jânio saiu candidato a prefeito, Outrossim foi um aguerrido militante, percorrendo boa parte da zona norte paulistana distribuindo panfletos, santinhos, brindes; infundindo o slogan da campanha janista: O tostão contra o milhão a plenos pulmões. Seu entusiasmo era tanto, que seus eloquentes berros, às vezes, irritavam mais os eleitores, que por infelicidade lhe estivessem próximos, do que conquistavam seus votos. Ainda assim, não desistia: instalava comitês em casas de vizinhos; ajudava eleitores a regularizar o título eleitoral; promovia festas para arrecadação de fundos à campanha.

    Jânio, empossado prefeito, não deixou de reconhecer o empenho meritório de seu leal correligionário. Logo no início de sua gestão, removeu Outrossim da funerária para o seu gabinete na prefeitura. Após anos lidando com mortos, iria trabalhar num local mais agradável, importante e, finalmente, com vivos. Aliás, muito vivos! Fora incumbido da relevante função de chefe-adjunto da Subseção de Serviços Gerais e Diversos da Coordenadoria Auxiliar do Gabinete do Vice-Prefeito. Um cargo com um nome tão extenso enchia de brio e orgulho Outrossim. Por todo esse entusiasmo, soletrava, para azar do interlocutor, toda essa nomenclatura sempre que era indagado sobre o que afinal fazia no serviço público.

    Os tempos de trabalho no gabinete do prefeito foram maravilhosos para Outrossim, haja vista que presenciava a chegada de grandes políticos, líderes empresariais, militares de alta patente e até atrizes famosas, as quais chegavam sempre nos finais do expediente. Na família e entre os amigos, vivia a se gabar de seu novo cotidiano profissional e dos privilégios de conhecimento social que isso lhe proporcionava. É claro que a imaginação às vezes falava mais alto, e o que não passava de uma fugaz troca de olhares, virava uma longa conversa entre Outrossim e um figurão da República.

    Jânio, todavia, não se contentou com a Prefeitura e, sem terminar o mandato, lançou-se candidato a governador de São Paulo. A disputa era dura. Seu principal oponente, Ademar de Barros, já tinha sido governador duas vezes e gozava de grande popularidade. Ainda assim, Jânio conseguiu derrotá-lo. Outrossim, empenhadíssimo durante a polarizada campanha eleitoral, teve seu esforço novamente reconhecido por Jânio, que lhe nomeou oficial de gabinete do governador. Como ocorrera à época da prefeitura, não tinha função específica. Servia cafezinhos, arrumava cadeiras para reuniões, trocava lâmpadas e, na maior parte do tempo, nada fazia ou, quando muito, lia os jornais, praguejava os adversários políticos do chefe, cobiçava e era cobiçado pelas secretárias, cumprindo assim a extenuante jornada de trabalho.

    Após o governo estadual, não restava a Jânio senão a presidência. Antes de tentá-la, porém, o histriônico e esquisito líder populista elegeu-se deputado federal em 1958, tendo votação esmagadora. Parlamentar gazeteiro, Jânio ganhava tempo para articular sua candidatura presidencial. Durante o mandato parlamentar, Outrossim permaneceu lotado no gabinete do governador, um pouco a contragosto, pois não simpatizava muito com o sucessor Carvalho Pinto e seus jovens e engomadinhos assessores. Os contatos com Jânio começaram a escassear mas quando ocorriam eram sempre efusivos, cheios de abraços e interjeições, com poucas e fugazes palavras, o que não impedia Outrossim de considerar-se sempre um grande amigo íntimo e conselheiro do futuro presidente.

    1960: Além de ser o ano da inauguração de Brasília, a nova, futurista e moderna capital do Brasil, no longínquo, quente e seco Planalto Central, fora ano de disputa eleitoral pela presidência. O candidato governista, marinheiro de primeira viagem em eleições, Marechal Lott, era um militar de muito prestígio junto às Forças Armadas, porém sem o traquejo necessário à corrida eleitoral. Cometia gafes homéricas. Apoiado pelos comunistas, desatava a praguejá-los nos comícios em bairros operários, geralmente redutos vermelhos. Candidato do governo, afirmava que nesse só havia ladrões!

    Com um adversário tão frágil, não foi difícil a Jânio derrotar o Marechal Lott. No dia da eleição, em 3 de outubro,pressentindo a vitória de seu candidato e um consequente progresso do país e seu, é claro, visto que era brasileiro, Outrossim reuniu a família, parentes e vizinhos janistas próximos para um churrasco regado à cerveja, tapinhas nas costas, batucada e otimismo.

    Após o anúncio da vitória janista, poucos dias depois das eleições, Outrossim parte para a realização de sua mais ambiciosa aspiração: acompanhar Jânio ao Palácio do Planalto, ou seja, trabalhar de perto com o futuro Presidente da República e ajudá-lo a endireitar o Brasil. Desta vez, porém, a tarefa não era tão simples. Seu contato com Jânio, já durante a campanha eleitoral, fora muito raro. Os atritos constantes e crescentes com seu sucessor no governo estadual diminuíram a visita de Jânio ao Palácio dos Campos Elíseos, impossibilitando a oportunidade do ex-polidor de caixões solicitar, diretamente ao presidente eleito, um novo emprego público.

    Os dias se passavam, a posse presidencial se aproximava, e as chances de Outrossim trabalhar em Brasília pareciam cada vez menores. Tentara contatar intermediários, como políticos janistas, mas eles sempre alegavam dificuldades; que os pedidos eram muitos; que mais para frente, talvez, quem sabe existisse alguma chance. Outrossim já estava desanimado, sem muitas esperanças, num misto de conformismo e revolta com o abandono que lhe impunham, quando a Divina Providência ou o acaso, como diria um ateu, proporcionou-lhe o bilhete de passagem para ir trabalhar no tão sonhado Planalto Central do país.

    CAPÍTULO II: BRIGITTE BARDOT

    O deputado federal Otávio Brandão de Albuquerque era um dos cardeais da União Democrática Nacional (UDN) em São Paulo. Tido como um homem probo, com rígidos princípios morais, denunciante contumaz da bandalheira governamental, tinha como eleitorado cativo os membros mais conservadores, em política e em costumes, da classe média paulistana, a maior parte deles vinculada a uma vetusta Igreja Católica, como convinha afinal a um udenista de boa cepa.

    Dentro da UDN, Otávio Brandão fora um dos apoiadores de primeira hora da candidatura janista, contra a facção que desejava um udenista histórico como candidato próprio, pois vira nela a chance de seu partido, finalmente, chegar ao poder central, uma vez que Jânio tinha o que a UDN, com sua retórica bacharelesca e afetada, não conseguia: votos...muitos votos! Unindo o útil ao agradável, Jânio tinha como sua principal bandeira política o combate sem trégua à corrupção, valendo-se de simbólicas vassouras, e isso sensibilizava muito aos udenistas, cansados de apanhar nas urnas de Vargas e depois de Juscelino.

    Um bom pileque de fim de ano, no entanto, é capaz de embaralhar as cartas e ameaçar respeitáveis reputações. O caso é que o ilustre parlamentar bandeirante saíra de casa, na antevéspera de Natal, afirmando para sua carola esposa, Dona Catarina Pereira Brandão de Albuquerque, que estava indo desejar um feliz Natal ao Arcebispo de São Paulo. Na verdade, iria ao encontro de um grupo de velhos amigos beberrões, da época do Colégio Caetano de Campos, num respeitável bar no Largo do Arouche, cujo nome, O Porre, prenunciava em que estado geralmente saíam de lá os fregueses.

    Assim, de porre, o deputado Otávio Brandão, após uma infinidade de chopes e uísques em homenagem aos 15 membros da mesa, ao dono do bar, ao garçom que lhes servia, e a qualquer infeliz que passasse próximo ao grupo, saiu em direção ao seu automóvel, um reluzente e novo Simca Chambord preto, que ficara estacionado na Rua Aurora. Como não conseguia abrir a porta do carro, por insistir em utilizar a chave de casa, o deputado percebendo a presença de uma moça loira e alta, parada a cerca de dez metros de distância, lhe pediu:

    — Ô, broto! Brigitte Bardot! Brigitte Bardot! Me dá uma ajujudinha pra abrir essa joça? Por favor, minha linda!

    O broto, caminhando com andar de pernas cruzadas em direção ao parlamentar, lhe perguntou em tom meigo e sedutor:

    — Confuso, amore? Bebeu um pouco a mais, né?

    — Eu?! Que é isso boneca, só uns golinhos! só quero abrir essa carroça e depois a gente pode...

    — Pode, claro, mas me dê essa chave.

    O broto, percebendo logo a inadequação da chave à fechadura, aproximou-se de Otávio e começou lhe apalpar os bolsos da calça à procura de outra, o deixando excitado. Após encontrá-la e abrir o automóvel, a loira voltou-se para o parlamentar:

    — Consegui! E agora?

    A resposta de Otávio Brandão foi imediata: empurrou sua Brigitte Bardott para o interior do veículo e, apalpando vigorosamente o corpo dela, lhe disse:

    — Agora, benzinho, eu vou agradecer pela sua ajuda!

    — Olha, cara, o programa é 50 paus! Tá a fim? Tudo bem, ok?!

    — Ok, meu amor! Cinquenta? Ponha mais paus aí, quer dizer, mais 50... 100 cruzeiros!

    As primeiras carícias do deputado em sua Brigitte Bardot transcorreram em perfeita harmonia e normalidade. O problema surgiu quando o deputado quis aprofundá-las. Aí, deparou-se com o inesperado! Uma súbita lucidez lhe tomou conta. Reparou, então, nos pés grandes, nos ombros largos, nos braços peludos e, por fim, na peruca de Brigitte. Irado, começou a xingá-la e socá-la, devido ao engodo que fora submetido. João Darci, o verdadeiro nome de Brigitte, por sua vez, revidava os golpes parlamentares com vigorosos tapas nas orelhas e mordidas na saliente e curvilínea barriga de Otávio Brandão. O exagerado sacolejo e o barulho vindo do Simca Chambord chamaram a atenção dos transeuntes, não tardando para que uma viatura policial fosse averiguar o que ocorria. O calor da luta entre o deputado e o travesti impedia a ambos que atentassem para os insistentes apelos dos policiais para que abrissem as portas do automóvel. Sem alternativa, os policiais quebraram o vidro traseiro do carro, conseguindo com o estrondo atrair a atenção dos contendores.

    — Abram essa porra! - gritou o policial mais novo.

    Um súbito silêncio se fez. Constrangidos, os dois saíram do automóvel sob os olhares inquisidores dos policiais e curiosos dos populares.

    — O que acontece? - indagou o policial mais velho.

    — Esse bofe que me agarrou e tentou me violar, seu guarda!

    Tal resposta ressuscitou a fúria do deputado e o fez investir novamente sobre a falsa musa francesa, provocando a intervenção decidida dos policiais que, para contê-lo, o algemaram.

    — O que é isso?! O que é isso?! Vocês são loucos!? Eu sou deputado! deputado!!! Me ouviram?! Me soltem, seus cretinos! Serão demitidos!!! – bradava, em vão.

    — Você é deputado, e eu sou o papa. Algema a boneca também. Vamos levar os dois para a delegacia, ou melhor, as duas. Lá se entenderão com o doutor de plantão - disse o policial mais velho ao seu colega mais novo.

    Otávio Brandão insistia com os policiais sobre a sua condição de parlamentar ilustre, quando sua calça caiu devido à abertura do feixe dos suspensórios, diminuindo ainda mais a credibilidade de seus argumentos e despertando gargalhadas nos populares curiosos e gaiatos, que ainda o provocavam:

    — Cadê o decoro parlamentar? - perguntava um.

    — O Congresso caiu! - retrucava outro.

    O policial mais velho já ia

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