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Vias & Artérias
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E-book157 páginas2 horas

Vias & Artérias

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Sobre este e-book

Este livro é composto de 7 contos em linguagem enxuta e direta com enfoque em nossas expectativas e vicissitudes da vida.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de abr. de 2017
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    Vias & Artérias - H.c. Rau

    OUVINDO OS ROLLING STONES

    Sonhei com luzes, as mais diversas. Luminosidades, a da aurora até a do crepúsculo, passando por uma visão incandescente que quase cegava. A despeito das formas abstratas do sonho, um dado concreto ficou grudado nos olhos: Uma placa de madeira em formato de seta, indicando o nome do lugar, Água Doce, com saudações aos forasteiros que de longe viriam. Ao acordar, saí à procura de um mapa. Para meu espanto, havia mesmo um lugar chamado Água Doce não muito distante da minha cidade. Devia ser um município recém-criado, nunca ouvira falar dessa cidadezinha. A constatação de que Água Doce existia de fato despertou em mim vontade de viajar, coisa que não fazia havia anos.

    Saí de casa quando todos ainda dormiam. Muito cedo, ruas desertas molhadas de orvalho. Ar puro da manhã encheu meus pulmões. Lembrei-me de que, na noite anterior, estava um tanto deprimido. Agora, minha disposição havia mudado totalmente. Deixei recado preso à geladeira comunicando a meus familiares que iria viajar, ninguém deveria se preocupar, voltaria o mais tardar à noitinha. Decidira conceder-me um dia de folga, não era a primeira vez que isso acontecia nos últimos meses — prestes a me aposentar, já havia me livrado das tarefas do dia-a-dia.

    Jamais a perspectiva da aposentadoria me assustara. Tinha planos, ainda me considerava capaz. Minha vida sofreria apenas uma mudança de ponto de vista como, por exemplo, tomar um ônibus de manhã para Água Doce. O futuro, como tudo na vida, seria uma questão de approach.

    Antes de sair de casa e antevendo a longa jornada de ida e volta, tomei emprestado o walkman de meu neto. Apanhei também minhas fitas dos Rolling Stones que colecionei durante anos, fã do grupo desde que surgira na década de 60. Na minha opinião, ainda o melhor conjunto de rock do mundo. Todas as bandas de rock, formadas após o advento dos Rolling Stones, teriam sido moldadas pelo seu estilo inconfundível. A princípio, o que me chamou a atenção foi a rebeldia dos rapazes. Depois, impressionou-me o profissionalismo do grupo. Hoje, a coerência destes senhores ainda me espanta.

    Decidi ir de ônibus, porque já não gostava mais de guiar, ficaria cansado, não desfrutaria da viagem. Quando jovem, se dependesse de mim, ninguém empunharia o volante comigo no carro. Costurar o tráfego era imprudência que me permitia vez ou outra. Depois, ao me tornar policial, dirigir feito louco, com a sirene ligada, atrás de bandidos, deixou de ser infração. Adrenalina, contudo, era a mesma. Boa parte da minha vida fui investigador de polícia. Até o dia em que me cansei da sujeira, da falta de perspectiva. Pedi transferência para a retaguarda. Embora não tivesse formação apropriada, consegui uma vaga na Divisão de Processos Criminais. Esta transferência foi obtida graças às velhas amizades e por ter sido considerado, ao longo da carreira, um cara prático e correto.

    Logo que passei a acompanhar os inquéritos policiais, ficou claro que me faltava competência para desempenhar a função. Seria necessário estudar se tivesse alguma pretensão de evoluir e de participar efetivamente do trabalho em grupo. Ingressei em faculdade de direito. Enquanto trabalhava e estudava, ia ficando cada vez mais evidente que combater bandidos na rua era bem mais simples que incriminá-los no tribunal. Além dos procedimentos jurídicos, havia outros fatores a serem considerados. Este conjunto de questões, por vezes prementes, me incentivou a ler e, com o passar do tempo, a amar os livros.

    Quando me aposentar, pretendo abrir uma oficina de encadernação de livros. Aprendi a arte de encadernar livros com uma bibliotecária do fórum que costumava dizer que nosso trabalho era muito abstrato e que produzir com as próprias mãos poderia ser um hobby sadio. Toda vez que a encontrava, oferecia-se a me dar aulas de graça. Logo percebi que sua insistência era uma proposta de sedução. A moça não era bonita nem feia, companhia agradável sem, no entanto, despertar desejo. Era bem mais velho que ela o que não significava que fosse jovem. Estávamos em uma faixa etária em que, juntos em público, nossa diferença de idade não chamava atenção.

    A moça não me deixou em paz até o dia em que me levou para cama. Depois desse dia, me tratou como se nada tivesse acontecido. Se queria que fosse assim, melhor pra mim. Não pretendia mesmo ter amante de tempo integral. Poderíamos ter sido bons amigos, tínhamos em comum o amor pelos livros. Por ser bibliotecária e estar atualizada com os novos lançamentos, teríamos sempre o que conversar.

    O que ficou desse relacionamento foi o gosto que tomei pelas encadernações. Ao encadernar meus livros prediletos, fui aperfeiçoando a técnica de preservá-los contra a ação do tempo. Minha estante de livros contém jóias caras e raras. A leitura, além de proporcionar saber, passara a ser sucedâneo da comunicação com os outros. Em vez de desperdiçar energia conversando, preferia ler. Para mim, leitura, quando provocava riso, equivalia a orgasmo. Essa opção, ou talvez idiossincrasia, me levou a um certo isolamento que, a partir de uma certa data, foi incorporado a meus hábitos. Isto que vou dizer pode soar arrogante, acho que as pessoas têm pouco a me dizer.

    Ao longo da carreira, teria sido humilde até demais. Engoli sapos por achar que não valia a pena radicalizar. Não preciso de analista para saber que tenho acumulado ressentimentos, não posso garantir que efeitos retardados não venham um dia à tona, risco remoto, porém. A despeito dos altos e baixos, controlo bem minhas emoções bem como as dos que me cercam. Agora que estou quase me aposentando, tudo ficou mais fácil. Digo não com naturalidade toda vez que julgo estar com a razão. Depois, desdobro-me em gentilezas para mostrar o quanto estou disposto a colaborar. Ainda bem que certas pessoas que poderiam me cobrar favores já se aposentaram ou morreram. Devo estar ficando velho e cínico.

    Minha mulher diz que estou ficando surdo e ranzinza. Deve ter razão. O que não diz e gostaria de dizer é que eu estaria perdendo a compostura perante as moças. Teria me tornado um velho safado. Melhor que viado, teria rebatido com sarcasmo, se tivesse certeza de que não ficaria chocada e ofendida. Pilhérias à parte, reconheço que meus gestos e expressões denunciam uma certa aflição quando delas estou perto, mas seria exagero acusar-me de inconveniente ou, pior, de tê-las molestado. De todo modo, como sempre, minha mulher está coberta de razão. As formas femininas, especialmente as das jovens, têm me tirado do sério. A princípio, associei aquele sonho luminoso com imbróglio sexual. Logo, descartei a hipótese. O sentimento subjacente ao sonho nada tinha a ver com o desconforto que sinto ao aproximar-me de uma jovem.

    No ônibus que me levou à Água Doce, sentei-me ao lado de uma senhora, aparentemente da minha geração, que viajava com suas duas filhas adolescentes. Estas se movimentavam sem parar no banco da frente o que me deixou aflito, um tormento a visão de seus braços nus em movimento. Ocorreu-me que seria impossível amá-las como mereciam ser. Não por minha culpa nem por culpa delas, mas por causa da escandalosa diferença de idade. O máximo que poderia almejar seria um michê em quarto de motel do qual sairia arrasado. Ao mesmo tempo em que estes pensamentos me torturavam, comecei a entabular conversa com a senhora ao lado. Teria percebido a aflição que me dominava? Minha mulher, com certeza, teria notado e me censurado. Um certo distanciamento com relação às garotas tornou-se viável à medida que a conversa com a mãe foi tomando corpo. Entre outras coisas, fiquei sabendo que passariam férias em uma fazenda onde os namorados das meninas estariam à espera. Esta revelação me deixou de mau humor. Polidamente, encerrei a conversa. Pus o fone de ouvido, liguei o walkman, abri o jornal que estava em minhas mãos esse tempo todo.

    Como sempre, as manchetes do jornal estampavam crimes e corrupção. Passei para o seção de Economia, cujas reportagens chamavam a atenção para a crise moral e de credibilidade em que a Nação estava mergulhada. No caderno de entretenimentos, só vaidade e hedonismo. O mundo em que vivia pareceu-me um moto-contínuo recorrente. Um certo fastio me cobriu, me arrependi de não ter trazido um clássico da minha estante ainda por ler. Na minha idade, os intelectuais começam a reler as obras-primas da literatura universal. Não seria o meu caso que não tive e não terei tempo suficiente de ler tudo que gostaria.

    Enquanto revirava, impaciente, as páginas do jornal, encontrei o comunicado da missa de sétimo dia de um amigo, de nome Assis, do qual estava distanciado de longa data. Fiquei chocado, sobretudo por ter tomado conhecimento do passamento através das páginas sujas de um matutino. Tínhamos a mesma idade, havíamos trabalhado lado a lado em distrito policial. Além de colega de trabalho, fomos amicíssimos durante anos. Policial íntegro, cara decente.

    Tirei o fone de ouvido e, por algum tempo, minha consciência ficou à deriva. Quando voltei a mim, estava examinando minhas mãos que, por alguma razão, estavam diferentes. Notei que a pele das mãos estava sem brilho, havia ainda manchas pequenas que talvez merecessem atenção de dermatologista. Mãos de velho, ousei pensar. Olhei de soslaio para as mãos da senhora ao lado, também não gostei do que vi. Voltei a examinar as minhas a despeito da visão nada agradável. A pele em torno das articulações dos dedos estava enrugada, parecia até solta do osso. Chamou-me atenção a aliança de casamento que também perdera o brilho. Tentei tirá-la do dedo, não consegui.

    Inclinei o espaldar da poltrona. Cruzei as mãos sobre o ventre, descansei a cabeça no encosto. Com estas mãos, recordei, atirei para matar.

    Convivi, ao longo dos anos, com uma guerra surda e não declarada. As chacinas de hoje em dia não têm o impacto devastador que o do genocídio das Guerras Mundiais (de que, por alguma razão divina, me foi dado o privilégio de não participar), embora o efeito prático de ambas as tragédias, desconfio, não seja muito diferente. Lembrei-me do bandido que matei em uma perseguição. Era meio-dia, sol a pino. O marginal havia se escondido em uma favela. Éramos um grupo de quatro policiais. Na entrada da favela, decidimos nos espalhar. Assim, cobriríamos melhor a área de busca. Ao avançar sozinho por ruelas e becos de chão batido e esgoto a céu aberto, notei que janelas e portas dos barracos estavam trancadas, moradores estariam encolhidos, sequer respirariam. De repente, ouvi tiros, reconheci os berros dos meus companheiros. O nível de adrenalina subiu. Contornei a área de onde o som dos tiros teria vindo, surpreendi o marginal pelas costas, dei voz de prisão, o cano do meu revólver apontado para a sua cabeça. Mesmo assim, tentou me acertar, fui obrigado a fuzilá-lo. Após alguns segundos de profundo silêncio, fomos, o morto e eu, rodeados por um bando de favelados surgidos de algum formigueiro. Alguém, por trás, pôs a mão em meu ombro. Susto monumental, era meu amigo Assis.

    Desde o dia em que fui transferido para a Divisão de Processos Criminais, nunca mais empunhei arma de fogo. Nem por isso, deixei de interferir em vidas alheias. Tem gente na cadeia para o resto da vida por causa de processos movidos pelo meu grupo de trabalho. Estaria me eximindo da responsabilidade pessoal ao dizer que as punições teriam sido resultado da ação coletiva do grupo?

    Naquela manhã em que tomei o ônibus para Água Doce, a estação rodoviária, contrastando com as ruas vazias, estava apinhada de gente. Com alguma dificuldade, comprei a passagem do ônibus e esperei minha vez de embarcar. Enquanto aguardava, observava a movimentação desordenada do povo em volta. Para ter uma visão mais ampla do ambiente, subi dois lances de escada onde havia menos agitação. Percebi que o caos no pavimento inferior era fruto do choque entre os que chegavam e os que partiam. Com um pouco de organização, isso poderia ser evitado ─ organizar as massas, pensamento recorrente, nem por isso menos utópico, dos que se dispuseram a mudar o mundo. Nesse momento, pareceu-me ter visto aqui e ali, no meio da massa humana, os rostos daqueles que condenei ao longo dos anos. Sem exceção, pertenciam todos às classes inferiores.

    Fui acordado do meu devaneio por um rapaz imberbe. Seus

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