A Primeira Dor
De Leda Rezende
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A Primeira Dor - Leda Rezende
A SURPRESA
Uma Dor tão forte quanto surpreendente me causou um gemido no momento de articular pé, fêmur e degrau de escada: uma dificuldade no primeiro degrau e depois, democraticamente, nos degraus seguintes. Um por um, até o último – todos foram privilegiados na subida.
Era o início da manhã de um dia dito útil – uma jornada intensa me esperava e não seria uma Dor e uns degraus que modificariam o que havia programado. Foi o que pensei ou disse em voz alta a mim mesma em uma tentativa de que a malcriação resolvesse a situação. Poderia até rimar, mas uma rima sozinha não faz solução.
Toquei o local da Dor e passei a mão em torno do ponto supostamente revoltado, na ideia de que poderia acalmar algo sobre ou sob a pele.
Nada. Supor que a Dor pode ser seduzida por carícias me fez sentir uma pobre necessitada que se entrega a qualquer pedacinho de vã e astrológica esperança.
Intimidar uma Dor por malcriação é tão absurdo como seguir os livros de autoajuda acreditando que toda resolução é léxica.
Enfim, chegar ao topo da escada, naquela manhã, passou de um processo mecânico sem nenhum tipo de elaboração intelectual a uma experiência atentamente materializada em vinte e quatro degraus. Poderia quase dizer que se constituiu em uma tarefa filosófica.
Sentir uma Dor no corpo é um processo centralmente rápido.
Identificar uma Dor no corpo é um processo marginalmente lento.
Assimilar uma Dor no corpo é um processo cerebralmente minucioso.
No início cerca-se pelos bordos, como se isso fizesse a Dor passar por um processo de evaporação central. Não acontece. Não existe possibilidade eufêmica diante de uma Dor. Não existe lei física, quântica ou gravitacional. Não existe mais ou menos
Dor. Ou é ou não é – solidamente.
Naquela manhã, a conceituação se resumia – era solidamente.
Era o meu primeiro encontro com algo que apontava uma limitação. Se temporária ou não, naquele momento não vinha ao caso.
Seguem-se os mecanismos, o corpo avisa sobre a Dor aos troncos neurológicos que encaminham ao cérebro, que recebe e traduz, e envia de volta. Nessa brincadeira de neurônio-correio, a parte aparentemente sã se faz de surda, muda, e a negação vem em conjunto com toda essa codificação e decodificação.
A Dor se mantém alheia a constrangimentos pessoais com o portador.
Dor não pede nem explica – esta é a parte mais difícil de aceitar. E muito menos dialoga: por que eu ou por que agora? As respostas são consideradas fora de propósito. Rejeita carícias – isso já foi esclarecido – algo como não me venha agora com pieguices
.
Dor já nasce autoritária, obstinada, e responde apenas com o contra-argumento exato. Não há talvez.
Descobri que a Dor é dotada de uma personalidade forte e que é segura de si.
Tudo bem que esse monólogo tenha durado algumas horas como pensamento de fundo. Servia como mais uma tentativa de eliminar a Dor ou de provocar uma despedida caso a contingência temporal fosse dominante.
Sem sucesso.
O segundo momento deu-se diante de uma segunda escada. Já me sentia perseguida. Uma pequena paranoia começava a se insinuar.
Subi. Dessa vez o gemido foi interno e não exposto. Um gemido mais ou menos longo, tímido não, porém certamente mais egocêntrico.
Incrível como é mais rápido habituar-se do que aceitar. Qualquer crítica a este tipo de retórica não surte o menor efeito.
Habituar-se faz a certeza do gemido parecer parte do caminhar e do sentir.
Aceitar faz a certeza do gemido parecer parte do não caminhar para não sentir.
Assim fiquei prolongando essa conversinha sem nexo comigo mesma por alguns dias.
Trocar a escada pelo elevador foi mais complicado ainda. Fazia parte de um retrocesso de independência. Onde iria parar a minha decisão objetiva do vou agora
? Esperar que uma plataforma com botões leve a um lugar aonde se pode simplesmente ir sem esperar é uma ofensa ao direito de ir e vir. Um habeas corpus ao contrário: limita, não libera.
Não sabia o que acontecia – mas no fundo já sabia o que estava acontecendo. Essa era a dialética do inaceitável entre o Consciente e o Alterego. Se Eu não os entendia – eles muito menos se interessavam em explicar.
A Dor continuou.
Dias seguidos.
Ao final de alguns dias o cansaço já eliminava qualquer possibilidade de evocar a literatura ou de seguir com um irônico bom humor. Dormir era difícil. Mudar de posição me fazia pensar por, no mínimo, quarenta minutos antes de mover a perna. Não havia diferença entre subir a escada ou ficar deitada. A Dor, fiel, se mantinha no mesmo lugar e com o mesmo poder.
Medicações analgésicas faziam um efeito tão fugaz que até duvidava de havê-las tomado. Por duas ou três vezes conferi a data de validade – da medicação, não minha. Por quatro ou cinco vezes conferi as indicações da medicação.
Mas sempre há um pior. Isso é clássico: o que está ruim pode sempre piorar.
O pior