Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Surpresa Macabra
Surpresa Macabra
Surpresa Macabra
E-book564 páginas7 horas

Surpresa Macabra

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O contador Jairo Drumond vivia dias infernais na caótica São Paulo do começo do século 21. Mal-humorado, nervoso, estressado com o trabalho, entregando-se à bebida e vendo o seu casamento ruir, ele viu no convite de seu tio a solução para os problemas: mudar-se para viver e trabalhar na pequena e encantadora Campo Dourado, no estado do Paraná. Mas não imaginava estar mergulhando de cabeça em um pesadelo. Uma SURPRESA MACABRA o aguardava...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de fev. de 2019
Surpresa Macabra

Relacionado a Surpresa Macabra

Ebooks relacionados

Ficção Geral para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Surpresa Macabra

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Surpresa Macabra - João Paulo Nogarotto E Fabiano Kelm

    JOÃO PAULO NOGAROTTO e FABIANO KELM

    SURPRESA MACABRA

    1ª edição

    São José dos Pinhais/PR

    2018

    Copyright © 2004 João Paulo Nogarotto e Fabiano Kelm

    Imagem de capa

    Fabiano Kelm

    NOTA

    Todos os personagens, empresas e a própria cidade de Campo Dourado existem apenas em nossa imaginação.

    Agradecemos a todos que nos ajudaram, sobretudo ao Dr. Kléber Antônio Toffalini Ferreira, um advogado que muito nos auxiliou.

    PRÓLOGO

    1

    Campo Dourado - PR, 22 de outubro de 1999.

    A noite estava escura, o céu coberto por nuvens.

    O homem suava muito e ofegava. O trabalho parecia não acabar nunca.

    O que fora fazer? Como pudera? E agora?

    Ele queria terminar logo e ir embora dali, livrar-se daquelas roupas imundas e tomar um banho. Sentia o seu coração batendo descompassadamente, mas tinha que continuar cavando. O buraco ainda não estava suficientemente fundo.

    O homem acreditava estar escutando vozes e frequentemente virava-se esperando encontrar alguém ao seu lado, mas era só a sua imaginação pregando-lhe peças. Na verdade a noite era de um silêncio quase absoluto. Apenas os grilos e uma coruja em alguma árvore distante faziam ruídos, mas era o bastante para deixá-lo apavorado e ainda mais ansioso por sair daquele lugar.

    Mas o buraco ainda não estava suficientemente fundo.

    2

    Campo Dourado – PR, 30 de novembro de 2001.

    O investigador Leônidas Rocha tomava uma xícara de chocolate quente e olhava para o céu através dos vidros da janela da sala dos investigadores da Delegacia de Polícia Civil de Campo Dourado procurando, quem sabe, encontrar nas nuvens a solução para o enigma que fizera com que perdesse o sono nos últimos dias.

    Rocha, como era conhecido pelos colegas, nunca se deparara com um caso parecido. Desde que ingressara na polícia tornara-se respeitado por sua eficiência. Raros eram os casos que não resolvia. Mas aquele parecia ser um desses e ele não gostava de admitir isso.

    Se ele fumasse já teria consumido várias carteiras de cigarro naqueles dias, tamanho era o seu nervosismo por não encontrar nenhuma pista. Seu vício, porém, era outro: beber várias xícaras de chocolate quente.

    O investigador Pedro Fioratti entrou trazendo a edição do dia da Folha de Campo Dourado. Rocha agradeceu ao parceiro, pegou o jornal e passou os olhos pela capa. Em letras garrafais uma das manchetes do dia era: Polícia não desvenda assassinato do casal Milioto.

    Pedro postou-se ao seu lado, em silêncio, pois bem sabia que quando o amigo estava de mau humor era melhor não ficar puxando muito papo.

    Rocha então colocou a xícara sobre a mesa e sentou-se. Abrindo o jornal procurou a página policial para ler a reportagem completa:

    "A Polícia de Campo Dourado encerrou as investigações sobre o estranho assassinato do jovem casal Roberto Milioto, 25 anos e Cátia Milioto, 22 anos, ocorrido no último dia 23 de setembro. Eles foram mortos na primeira noite que passavam em sua nova casa, que estava localizada numa região pouco habitada da cidade, próxima ao Rio Dourado.

    Segundo o IML os dois jovens foram golpeados dezenas de vezes por uma faca ou outro objeto cortante semelhante. Os corpos foram encontrados pelo soldado da Polícia Militar Jorge Milioto, irmão de Roberto.

    Como havia chovido muito durante todo aquele dia e também nos dias anteriores a polícia esperava achar marcas deixadas pelo assassino (ou assassinos) nas proximidades e também no interior da casa, mas nada foi encontrado, dando ao crime ares de mistério.

    O delegado Washington Pacheco entregou o caso ao Ministério Público sem chegar a nenhuma conclusão".

    - Mas algum dia eu descobrirei a verdade! – prometeu Leônidas Rocha largando o jornal e dando um soco na mesa, fazendo a xícara vacilar. Pedro pousou a mão sobre o ombro do amigo.

    Rocha incomodava-se muito por não ter descoberto nada. Designado para investigar o caso ele não tinha resposta para nenhuma das suas perguntas: Quem teria feito tamanha brutalidade e por quê? E como alguém poderia ter entrado naquela casa sem deixar marcas no interior ou arredores?

    Um dia, porém, Leônidas Rocha encontraria todas as respostas e por causa disso conheceria o verdadeiro sentido da palavra medo.

    PARTE 1

    MUDANÇAS À VISTA

    CAPÍTULO 1

    São Paulo, 27 de maio de 2003.

    Jairo Drumond pisou violentamente no freio e girou rapidamente o volante de sua Parati para a direita, saindo para o acostamento e evitando por uma fração de segundo o choque frontal com um caminhão que vinha pela pista contrária e subitamente arriscara uma ultrapassagem em um ônibus num trecho proibido. Uma caminhonete que vinha imediatamente atrás também desviou do caminhão, mas não conseguiu evitar o choque na traseira do carro de Jairo.

    - Filho da mãe! – esbravejou Jairo, retirando o cinto de segurança.

    O motorista da caminhonete manobrou rápido e pisou fundo no acelerador, fugindo. Jairo só teve tempo de notar que era um rapaz que tinha no máximo 16 anos e consequentemente não devia possuir habilitação. Para não se complicar ele preferira sem demora sumir.

    O maluco que dirigia o caminhão também havia seguido seu imprudente caminho, como se nada tivesse acontecido.

    O coração de Jairo estava prestes a sair pela boca. Havia sido um susto enorme, mas acima de tudo aquele quase acidente trouxera-lhe à mente recordações de tragédias que ele preferia não se lembrar.

    Mas como esquecer?

    Jairo fora um adolescente extremamente solitário. Sua mãe morrera quando ele tinha apenas quatro anos. Quando pensava nela vinham-lhe apenas imagens confusas. Seu pai tivera que criá-lo sozinho e mesmo se esforçando não conseguia passar o tempo que gostaria ao lado do filho que ficava aos cuidados de uma babá.

    Adalberto Drumond era um advogado bastante requisitado e sempre tinha muito trabalho a fazer. Trabalho este que proporcionara a Jairo infância e adolescência confortáveis, mas que lhe trouxera também solidão. Às vezes ele tinha a companhia do primo Émerson, quatro anos mais jovem do que ele, que morava com os pais Anacleto e Selma Drumond do outro lado da cidade de São Paulo. Mas até mesmo as visitas frequentes dos únicos parentes próximos foram interrompidas com a mudança dos tios para o Paraná quando Jairo tinha treze anos.

    Adalberto tentou por duas vezes iniciar novos relacionamentos, mas nenhum deles resultou em uma madrasta para Jairo. Com o tempo desistiu de arrumar outra companheira.

    Jairo nunca tivera muita facilidade para fazer amigos, o melhor que ele fez na sua vida escolar foi Vítor Chaves. Eles sentavam em carteiras vizinhas, faziam os trabalhos escolares e lanchavam juntos, jogavam no time de futebol da escola. Vítor era o irmão que Jairo nunca tivera. E foi assim por muito tempo.

    O problema todo começou quando surgiu uma garota.

    Os dois amigos cursavam juntos a faculdade de Ciências Contábeis e ela estava iniciando o curso de jornalismo na mesma universidade. A jovem era de uma beleza que chamava a atenção. Morena, olhos azuis, corpo perfeito. Jairo apaixonou-se no momento em que a viu pela primeira vez. Vítor estava ao seu lado e comentou:

    - Ô louco, cara... Que belezinha.

    A garota passou por eles e dirigiu a Jairo um olhar demorado. Foi o suficiente para deixá-lo enlouquecido.

    Jairo era alto, tinha cabelos negros e lisos e não se julgava feio. Ainda assim dificilmente alguma garota lhe demonstrava interesse.

    No dia seguinte Jairo convenceu Vítor a acompanhá-lo e foram procurar a garota. Encontraram-na sozinha fumando um cigarro próximo à cantina. Eles se aproximaram e se apresentaram. Ela fez o mesmo.

    - Meu nome é Susana.

    Jairo estava encantado e não conseguia disfarçar. Até a voz dela parecia doce. Nem vê-la fumando incomodou-o, ainda que ele normalmente detestasse o cheiro de cigarro.

    O sinal sonoro indicou que o intervalo havia acabado e Susana se retirou.

    - Você está dando muito na vista, cara. Vai com calma – comentou Vítor.

    - Você acha? – perguntou Jairo, no fundo não dando atenção.

    Nos dias subsequentes Jairo tentou aproximar-se de Susana, ainda que timidamente, nos intervalos e no horário da saída. Ficou sabendo onde a garota morava, de que músicas gostava, qual o prato preferido e coisas do tipo.

    - Acho que estou apaixonado, Vítor – confidenciou Jairo ao amigo.

    - Não tenha tenta pressa, cara – aconselhou Vítor. – Você nem a conhece direito.

    Certo dia Jairo ofereceu-se para acompanhá-la até a casa dela e quando estavam chegando Susana parou.

    - O que foi? – perguntou Jairo.

    Sem dizer palavra Susana puxou-o para junto de si e beijou-o.

    Ele foi pego totalmente de surpresa, mas adorou. Foi um momento sublime. O coração disparou e seu rosto ficou quente como brasa.

    - Entra... Meus pais não estão em casa – disse ela, surpreendendo mais uma vez.

    Jairo se viu puxado para o interior da grande e luxuosa casa e depois para o quarto de Susana. Em instantes, como se fosse um sonho, Susana estava nua, abraçou-o e começou a tirar-lhe a roupa.

    Foi a primeira vez de Jairo e foi incrível. Mas acabou tão rápido quanto começou.

    - O que foi? – perguntou Jairo, vendo-a vestir apressadamente as roupas.

    - Meus pais logo chegarão. Você precisa ir embora, Jaime.

    - Jairo.

    - Foi o que eu disse – falou ela, atirando as roupas também para ele. – Vista-se, rápido.

    Jairo vestiu-se e aproximou-se para um beijo, mas ela repeliu-o.

    - Não dá tempo. Meus pais já devem estar pintando aí.

    Ele foi embora ainda nas nuvens, duvidando que tudo não passara realmente de um sonho.

    No dia seguinte Jairo contou a Vítor o que acontecera e disse que estava sem dúvidas apaixonado e que tinha certeza de que ela também sentia o mesmo por ele.

    - Vai lá e diz isso pra ela – sugeriu Vítor. – Se você está certo de que a ama...

    Jairo resolveu seguir o conselho do amigo, mas não encontrou Susana na faculdade. Ele então ficou angustiado. Precisava vê-la.

    Em seu apartamento Jairo ficou ensaiando durante horas na frente do espelho o que diria. Palavras doces, rimadas, uma poesia que ele mesmo criara.

    Após arrumar-se, perfumar-se e pentear-se durante uma hora (sempre achando que ainda não estava bom) Jairo foi até a casa de Susana, torcendo para que estivesse lá.

    Estava anoitecendo e muitas estrelas já podiam ser vistas no céu totalmente sem nuvens. O coração de Jairo batia cada vez mais forte na medida em que se aproximava.

    Quando avistou a casa Jairo viu também algo que o chocou profundamente e o fez estacar.

    Eles estavam encostados no muro, trocando beijos e carícias.

    Susana e Vítor.

    Jairo não conseguia acreditar no que estava vendo. Vítor, o seu melhor amigo (amigo?)... Como ele fora capaz de fazer aquilo com ele?

    Sentiu um gosto amargo na boca. O gosto da decepção, da traição.

    Ele nunca conseguiu precisar por quanto tempo ficou parado olhando para os dois. Seja como for Vítor acabou finalmente vendo-o e ficou totalmente desconcertado.

    - Jairo... – começou a dizer ele, desvencilhando-se de Susana.

    Jairo virou-lhe as costas e saiu correndo. Ainda conseguiu ouvir, com assombro, que Susana estava gargalhando.

    Antes que conseguisse chegar a seu prédio Jairo foi alcançado por Vítor, que o segurou pelo braço.

    - Jairo, por favor... Deixe-me explicar...

    - Vá embora! – gritou Jairo. - Eu não quero falar com você!

    - Eu não queria, mas...

    - Você sabia que eu estava gostando dela, cara...

    - Ela me seduziu – argumentou Vítor. – Acho que ela sabia que você estava apaixonado, sabia que éramos amigos e me seduziu, só pra se divertir com as nossas caras. Com certeza foi isso. Ela...

    Jairo pensou nas gargalhadas de Susana enquanto ele corria, mas estava com o orgulho ferido demais para ceder.

    - Vá embora daqui, Vítor! – gritou, incapaz de segurar as lágrimas que começavam a molhar o seu rosto.

    - Tenta me entender, cara. Ela é bonita e me deu bola. Eu não consegui evitar... Fui um idiota, admito...

    - Eu achava que éramos amigos...

    - Sei que te magoei, cara. Não tiro a tua razão – admitiu Vítor. – Eu agi como um idiota, mas, por favor, Jairo, me desculpa... Pela nossa amizade...

    - Qual amizade? Eu não sou mais amigo de um traidor como você – rebateu Jairo, entrando no edifício de apartamentos onde morava, sem se virar pra trás.

    No dia seguinte, sexta-feira, Jairo não foi à faculdade e Vítor tentou falar com ele de todas as maneiras, mas Jairo não o recebeu e nem atendeu suas ligações ou mensagens. Ele continuava com muita raiva. Repetiu esse comportamento durante todo o fim de semana.

    Na segunda-feira Jairo foi à faculdade, mas ignorou Vítor, fingindo não vê-lo e não escutá-lo.

    Os dias foram se seguindo e Vítor não desistia de tentar fazer com que Jairo o perdoasse, mas ele permanecia irredutível. Ao mesmo tempo Jairo também evitava encontros com Susana passando longe de sua sala e saindo quinze minutos mais tarde. Uma mistura de raiva e vergonha tomava conta dele e se pudesse gostaria de nunca mais vê-la.

    Certa manhã, porém, Jairo ouviu uma conversa entre dois colegas da sua turma de Ciências Contábeis. Eles estavam falando sobre as virtudes de uma garota na cama. Ambos já haviam tido uma experiência com ela. Curioso, Jairo perguntou-lhes sobre quem eles estavam falando.

    - Da Susana, do jornalismo. Ela é um espetáculo – comentou um deles. – Vai dizer que não comeu ainda? Ela dá pra qualquer um.

    Seria possível?

    Jairo não precisou investigar muito para descobrir que muitos rapazes já tinham tido relações com a garota.

    Que vagabunda!, pensou.

    Jairo sentiu-se mal, como se tivesse levado um soco no estômago. Sem cabeça pra mais nada pegou suas coisas, deixou a faculdade e passou a tarde vagando pelas ruas, sem rumo, tentando coordenar os pensamentos. Passando por uma rua pouco movimentada notou um grupo de jovens. Eram três garotos e uma garota. Eles estavam fumando e Jairo podia jurar que era maconha. Ele nunca provara, mas conhecia o cheiro.

    Ele não reconheceu a garota de imediato porque ela estava toda despenteada e com as roupas sujas e a pouca luminosidade da rua não ajudava muito, mas não demorou a reconhecer aquele rosto.

    Era Susana. Ao seu lado, abraçado a ela, um rapaz de cabelos e barba compridos.

    Ela viu-o e acenou para ele, rindo ruidosamente.

    Jairo sentiu nojo. Não só de Susana, mas de si próprio. Como fora capaz de se iludir daquela forma, chegando até a acreditar que ela estava apaixonada por ele?

    Sem conseguir se conter, Jairo saiu correndo. Ele não falaria mais com Susana e alguns meses depois ficaria sabendo, com certo alívio, que ela fora embora de São Paulo.

    Jairo sentia-se o mais imbecil dos homens. Ele não conseguia se conformar. Por causa daquela garota (aquela piranha, aquela drogada, aquela riquinha que não sabia dar valor à vida que seus pais lhe davam) ele brigara com o seu grande amigo Vítor.

    Sentiu uma necessidade urgente de falar com ele, de dizer-lhe que aceitava suas desculpas, que aquela garota (aquela vagabunda, aquela...) não poderia ser o motivo para o rompimento de uma amizade tão grande como a que eles cultivavam. Na verdade Jairo era quem se achava na obrigação de pedir desculpas por ter agido como um idiota.

    Ligou para o celular do amigo e encontrou-o em casa. Vítor ficou contentíssimo com o telefonema. Jairo pediu para que ele o encontrasse o mais rápido possível em uma lanchonete que eles costumavam frequentar, próxima à faculdade.

    Jairo chegou rápido à lanchonete e esperou. Para tentar conter o nervosismo que sentia pediu uma cerveja e depois outra. Trinta minutos se passaram, mas nem sinal de Vítor, o que o deixava ainda mais ansioso.

    Passou-se mais um quarto de hora e nada de Vítor aparecer. Jairo tentou ligar novamente para ele, mas não foi atendido.

    Foi quando entraram algumas pessoas comentando sobre um acidente que havia ocorrido a duas quadras dali. Jairo reconheceu um colega que também cursava Ciências Contábeis. Seu nome era Josué e estava visivelmente abatido.

    - O que aconteceu? – perguntou Jairo.

    - O Vítor... Ele... – o rapaz mal conseguia pronunciar algumas palavras, tamanho era o choque em que se encontrava.

    Jairo sentiu um vazio no estômago, um calafrio e soube que alguma coisa terrível havia acontecido, mesmo antes que Josué falasse.

    - O que houve com o Vítor? Fala, Josué!- gritou Jairo, agarrando o colega pelo colarinho.

    - Ele... Bateu o carro... De frente com uma carreta... – ele não conseguia formular as frases direito. – Jairo... O carro ficou acabado... Ele não pode ter sobrevivido... Uma ambulância levou-o para o hospital, mas...

    Jairo sentiu suas pernas trêmulas e a visão tornou-se turva. Josué continuou falando, mas ele não conseguia ouvir nada, dizer nada.

    - Jairo! Jairo! Tudo bem?

    Ele saiu correndo rumo ao hospital. Aquilo não podia ser verdade. Vítor não podia estar morto. Não podia.

    Durante muito tempo ninguém conseguiu dar-lhe uma informação concreta sobre o estado de Vítor. Jairo estava transtornado e teve de ser contido por algumas enfermeiras e receber um calmante.

    Uma hora depois, quando a família de Vítor também estava presente no hospital, um médico veio dar a má notícia.

    Vítor estava morto. Todos os esforços haviam sido feitos, mas não ele não resistira.

    - Oh, Deus, não! – balbuciou Jairo no mesmo momento em que a mãe de Vítor desmaiava.

    Jairo não conseguiu fazer outra coisa a não ser chorar. Ele sentia-a culpado pela tragédia. Afinal Vítor só estivera naquele lugar, aquele maldito cruzamento, porque ele o chamara. Como um bom amigo, Vítor atendera ao chamado prontamente e acabara morrendo por causa disso.

    E Jairo nem tivera a chance de perdoá-lo e dizer que sentia muito pela forma como o havia tratando nos últimos dias.

    Inconformado, só restou-lhe chorar.

    - Eu vou para Juquitiba amanhã para pescar, Jairo. Não quer ir comigo? – perguntou Adalberto Drumond ao filho no final da tarde de sexta-feira, 19 de julho de 1996.

    A pergunta surpreendeu a Jairo. Ele nem se lembrava da última vez em que o paio convidara para fazerem alguma coisa juntos.

    - É claro que sim, pai. Conte comigo – respondeu, surpreso, mas ao mesmo tempo feliz com a aproximação do pai que, invariavelmente, mostrava-se distante e às vezes até indiferente com ele.

    - Ótimo. Partiremos amanhã cedinho e retornaremos à noitinha – comandou o advogado.

    Na madruga seguinte, às cinco horas, Jairo foi despertado por fortes sacudidas. Assustado, ergueu-se na cama rapidamente.

    - O que aconteceu?- perguntou ele, vendo o pai à sua frente.

    - Ora, não combinamos de ir pescar? – disse Adalberto, sorrindo largamente.

    - Mas está escuro ainda – reclamou Jairo.

    - Eu não disse que sairíamos cedo?

    Jairo espantava-se com a força e a energia do pai. Aos 52 anos tinha mais disposição do que ele próprio, trinta anos mais moço.

    Assim que se levantou Jairo constatou que o pai já havia arrumado tudo. Meia hora depois os dois já estavam no carro a caminho de Juquitiba, localizada a cerca de 80 quilômetros capital paulista.

    Pescar era uma das grandes paixões de Adalberto Drumond, apesar de não poder desfrutar mais dela devido ao grande tempo que o trabalho lhe tomava. Sempre que podia, entretanto, ele arrumava suas coisas, convidava algum amigo e seguia para os mais diversos locais. Até mesmo ao Pantanal ele já havia ido pescar.

    Havia muito tempo ele não chamava o filho para acompanhá-lo e Jairo estranhou, a ponto de não conseguir evitar perguntar-lhe o motivo enquanto começavam a preparar as varas e iscas.

    - Então não posso querer passar um dia ao lado do meu filho? – disse Adalberto, rindo. – Sei que pra você deve ser um pouco monótono, até vergonhoso ficar com o seu pai, já tive a sua idade... Mas achei que poderia ser divertido.

    - Não tenho vergonha do senhor, pai – garantiu-lhe Jairo. – Admiro-o muito.

    Jairo lançou sua isca na água e ao virar-se percebeu que o pai enxugava uma lágrima solitária que descia por seu rosto sorridente.

    O dia foi da caça, ou melhor, dos peixes. Adalberto fisgara apenas seis minúsculos lambaris e Jairo nada mais do que três. Pai e filho não puderam deixar de rir ao analisar o resultado do dia de pesca.

    - Acho que devíamos ter feito menos barulho, Jairo – comentou o pai, rindo.

    Jairo concordou, mas não se importava quanto aos peixes. Ele passara o dia conversando e rindo com o pai, como não faziam havia anos. Isso ajudara a afugentar os peixes, mas aproximara os dois. Jairo tinha certeza de que sua relação com o pai se estreitaria depois daquele dia.

    Mas estava errado. Não haveria outros dias para Adalberto Drumond.

    Durante a viagem de volta, debaixo de uma fina garoa, um caminhão desgovernou-se à frente do carro em que estavam Jairo e o pai. Adalberto não conseguiu evitar o choque e como estava sem o cinto de segurança foi arremessado para fora do veículo, destruindo o para-brisa. Jairo estava com o cinto e sofreu apenas alguns ferimentos leves.

    - Pai! – gritou ele, em desespero, saindo do carro.

    Mesmo antes de ver o corpo banhado em sangue Jairo já sabia que o pai estava morto.

    Quase sete anos depois Jairo reviveu como nunca aqueles momentos e pôs-se a chorar, debruçado no volante. Ficou assim por muito tempo, até se encorajar a trazer de volta a sua mente para o presente, para os seus problemas atuais, mas com a certeza de que aquelas tragédias sempre o perturbariam.

    Jairo suspirou, abriu a porta e saiu do carro.

    - Merda! – praguejou ele, analisando os estragos. A lanterna traseira esquerda fora destruída. O para-choque e parte da lataria ficaram amassados.

    Jairo não se lembrara de anotar a placa da carreta ou mesmo da caminhonete e quando esse pensamento lhe ocorreu ele soltou um palavrão.

    Que dia!, pensou.

    Jairo olhou para o relógio no pulso esquerdo e suspirou. Já passava de nove horas da manhã. Ele deveria ter chegado às oito horas na transportadora Blue Sea, onde trabalhava no setor contábil, mas acabara ficando preso durante uma hora em um gigantesco engarrafamento causado por um grave acidente envolvendo vários carros. Jairo ficara muito nervoso, assim como vários outros motoristas, que não pararam um só segundo de buzinar, causando uma barulheira infernal, capaz de tirar o humor de qualquer um.

    E depois de finalmente se livrar do tráfego ainda lhe acontecia aquilo...

    É muito azar para um dia só, pensou ele.

    Jairo pôs novamente o carro em movimento, tentando se acalmar. Mas não estava fácil.

    A verdade era que os problemas que enfrentava no trânsito naquela manhã não eram, nem de longe, o que mais estava perturbando a sua mente. Suas maiores preocupações eram outras: o seu casamento e a forma como vinha se comportando nos últimos meses.

    Na última noite Jairo tivera uma dura discussão com a esposa Renata e saíra do seu apartamento furioso, indo passar o restante da noite em um hotel.

    Mas a briga, que o irritara profundamente, acabara servindo para abrir seus olhos e conscientizá-lo da necessidade de uma mudança de atitude.

    O que ele esperava era que não fosse tarde demais para fazê-lo.

    CAPÍTULO 2

    Renata Soares Drumond afagava a cabeça de Fred, o seu poodle de estimação, perdida em seus pensamentos. Ela não conseguia esquecer a briga que tivera com o marido Jairo. Passara a noite toda refletindo e chorando. Chorou por horas, sem parar, tentando compreender o que acontecera com o casamento, procurando imaginar o que fizera de errado, qual era a sua culpa.

    Mas será que tinha mesmo alguma culpa?

    Jairo fora deixando gradativamente de ser atencioso, passando a tratá-la cada vez mais com mais frieza e indiferença. Pela cabeça de Renata passaram várias coisas. Primeiro achou que Jairo tinha algum problema que não queria dividir com ela, que estava escondendo alguma coisa séria, doença ou algo assim. Ele poderia estar com depressão e se fosse este o caso precisava se tratar.

    Depois se convenceu de que Jairo tinha uma amante. Era uma boa reposta pras suas dúvidas, mas nunca descobriu ou notou nada que pudesse indicar que isso fosse mesmo verdade.

    Renata passou a achar que a culpa era sua, que estava fazendo alguma coisa que desagradava a Jairo, mas logo afastou o pensamento. Em nenhum momento ela deixara de tratá-lo bem, com carinho. O que acontecia era exatamente o contrário: Renata aumentara os cuidados para com o marido. Havia quase quatro meses que ela largara o seu emprego na recepção de um hotel de porte médio no centro da cidade para dedicar mais tempo ao casamento. Mas parecia que Jairo havia mesmo perdido o encanto por ela.

    Renata pensou em tudo o que acontecera no dia anterior e as lágrimas voltaram-lhe aos olhos.

    Era segunda-feira e depois de passar um final de semana em que mal conseguira trocar meia dúzia de palavras com Jairo enquanto ele estava trabalhando ou deitado na poltrona vendo televisão (as duas únicas coisas que ele fizera), Renata decidiu reagir fazendo alguns testes definitivos.

    Ela passou a tarde preparando uma lasanha, o prato preferido do marido. Além disso produziu-se toda, penteando seus longos cabelos negros da forma que Jairo sempre gostara e usando seu melhor perfume e o batom mais chamativo. Para completar também caprichou na roupa, colocando um belo vestido de seda azul. Jairo sempre gostava quando ela usava roupas azuis. Se ele não reagisse positivamente a tudo isso então...

    Então o quê?

    Renata não sabia o que faria se Jairo continuasse a tratá-la com indiferença. Ela achava que não merecia aquilo, afinal nunca deixara de ser uma boa esposa. Definitivamente era injusto.

    Por volta das sete horas da noite Renata estava com tudo pronto. Dando uma última espiada na arrumação da mesa ela balançou a cabeça afirmativamente. Perfeita.

    Estava tudo em ordem. Até Fred ganhara um banho. Só restava esperar por Jairo.

    E Renata esperou.

    Quando Jairo chegou já passava de oito e meia e Renata estava agoniada.

    - Por onde você andou? – perguntou ela, alarmada. – Eu já estava ficando preocupada.

    - Como assim por onde andei? Estava trabalhando, ora! – explicou Jairo, em tom rude, largando sua pasta sobre uma poltrona.

    Nenhum beijo ou palavra carinhosa e o que era pior: nenhum comentário sobre sua produção.

    - Você poderia ter me avisado que ia demorar...

    - Não sei por que você se preocupa – replicou ele. – Onde mais eu poderia estar?

    Renata queria muito ouvir algo como: Desculpe, querida, não pude ligar. Prometo que não vai mais acontecer... Mas no fundo sabia que Jairo nem tinha se lembrado de avisá-la e nem sequer pensara que ela poderia estar preocupada. Não era a primeira vez que ele fazia isso.

    - É que esta cidade anda tão perigosa, tão violenta, que é difícil não pensar em coisas ruins.

    - Bobagem – resmungou Jairo, sem dar atenção. – Eu sei me cuidar.

    Renata fez outra tentativa:

    - Eu fiz lasanha para o jantar. Sei como você gosta e...

    - Não estou com fome – interrompeu-a ele. – Estou me sentindo um pouco indisposto e, além disso, comi umas besteiras durante a tarde. O que eu quero agora é tomar banho.

    Ótimo, pensou Renata. Não tem importância. Eu passei a tarde preparando o seu jantar com todo o carinho, mas não me importo que você o despreze. Eu não fico zangada, não.

    Fred surgiu vindo do quarto, abanando a cauda para Jairo.

    - Oi, garoto! – disse ele, afagando a cabeça do poodle. Fred respondeu latindo alegremente.

    Perfeito, Renata. Ele dá mais atenção ao Fred do que a você, pensou ela, tristemente.

    Ela sentia-se péssima. Tudo o que havia feito não dera nenhum resultado.

    O que fazer?

    Jairo saiu do banho, abriu a geladeira e retirou uma lata de cerveja. Ele então pegou a sua pasta, abriu-a, ligou o notebook e espalhou sobre a mesada sala de entrada vários papéis e documentos, além de sua inseparável calculadora. Já haviam se tornado hábitos de Jairo levar serviço para casa e tomar cerveja enquanto trabalhava. Para Renata ambos eram péssimos costumes.

    Ele rapidamente se concentrou no trabalho e Renata ainda conseguir se admirar com a capacidade que ele tinha de ignorá-la. Mas nem deveria. Havia muito Jairo vinha se mostrando indiferente, distante, irritado. Eles não trocavam mais do que algumas palavras. Quando a conversa se estendia não era raro cair numa discussão, pois Renata não conseguia deixar de reclamar das atitudes dele que respondia com grosserias, às vezes até amedrontando-a.

    Renata sentou-se numa das cadeiras da cozinha, de onde podia vê-lo. Fred subiu-lhe no colo. Ela ficou observando o marido, mas ele nem sequer a olhava, parecendo ignorar por completo a sua presença no apartamento. Alguns minutos depois ele levantou-se e foi até a cozinha, mas apenas para abrir novamente a geladeira e pegar outra cerveja.

    O fato de Jairo estar bebendo era uma das coisas que mais a incomodava. Ele nunca fora dado ao consumo excessivo de álcool, mas nos últimos meses andava exagerando. Na sexta-feira anterior ele chegara tarde e seus passos trôpegos, além do hálito forte denunciaram que havia parado em algum lugar para beber.

    Quando ele tirou a quarta cerveja da geladeira Renata achou que era hora de falar alguma coisa.

    - Chega de cerveja por hoje, não chega, Jairo? Você já tomou três – disse ela, elevando a voz.

    Jairo olhou para ela parecendo enfim notar a sua presença e abrindo os braços, reclamou:

    - Ora, o que é que há Renata? Qual o problema? Não estou fazendo nada de errado – justificou-se ele, bruscamente. – E o que você tem a ver com isso? Eu mando na minha vida. Se eu quiser beber eu bebo e pronto. Deixe-me em paz.

    Renata não conseguiu se controlar e desabafou:

    - Pra quê isso, Jairo? Pra quê? Olhe só pra você... O que aconteceu? – as lágrimas vieram fáceis aos seus olhos, borrando a maquiagem que lhe dera tanto trabalho para fazer. – Por que você anda tão agressivo comigo?

    - Se você não está gostando vá procurar outro. O mundo está cheio de homens. Você não está amarrada a mim! – gritou ele, afastando-se para a sala.

    Cada palavra dele parecia uma lança entrando no peito de Renata.

    - Você só pensa em trabalhar, trabalhar e não dá mais atenção a mim! – explodiu ela, seguindo-o.

    - Alguém tem que trabalhar por aqui, você não acha? – resmungou ele sentando-se em frente à bagunçada mesa em que estava trabalhando.

    – Nem parece que estamos casados. Nós não saímos, não ficamos juntos... Você nem me beija mais, quase não nos falamos, Jairo... Você tem uma amante, é isso? Fala a verdade pra mim...

    - Eu nem vou te responder a essa pergunta por que ela é totalmente ridícula...

    - Você parece outra pessoa, Jairo. Está agressivo, irritado. Qualquer coisa é motivo para brigar comigo, o que você quer que eu pense?

    - Essa é boa! – disse ele, rindo sarcasticamente. – Nós brigamos porque você me enche o saco! – completou, aos berros.

    - Você nem reparou que eu me produzi – continuou Renata. – Não quis provar o jantar que eu fiz com tanto carinho pra você.

    - Eu não pedi nada, pedi? – rebateu secamente Jairo levantando-se.

    Fred, que parecia entender que não devia se meter na briga, ficou à distância, encolhido.

    - Eu queria que tudo voltasse a ser como antes, Jairo. Nós nos entendíamos tão bem... – disse ela, tentando segurar o choro. – Oh, Jairo, éramos tão felizes... E podemos voltar a ser. O que acontece é que você está estressado, precisa descansar um pouco mais...

    Jairo estava com a raiva estampada no rosto.

    - Quer saber de uma coisa? Tchau! – gritou ele, abrindo a porta da frente.

    - Aonde você vai?

    - Pra qualquer lugar. O importante é ficar longe de você! – gritou ele saindo e batendo a porta com violência.

    Renata sentou-se no chão e chorou muito. Ela temia que o seu casamento estivesse chegando ao fim.

    CAPÍTULO 3

    Jairo dirigia para o trabalho para tentar começar a resolver o problema que tinha um único culpado: ele mesmo.

    Sim, pois afinal, se alguém era responsável pela crise no casamento, esse alguém era ele.

    Jairo sempre gostara de Renata. Amara-a desde a primeira vez que a vira. Aquela jovem morena, de cabelos lisos e longos, olhos negros, pele de maçã, esbelta e com um firme par de seios... Não tivera dúvidas: era a mulher com quem gostaria de se casar. Uma espécie de sexto sentido lhe dissera que com Renata ele não se enganaria como acontecera com Susana.

    O problema foi que ele se iludiu. Jairo achou que o fogo da paixão, que crepitava entre eles antes do casamento e nos primeiros meses posteriores permaneceria o mesmo eternamente. Mas isso nem sempre acontece. O que ocorre com muitos casais é um resfriamento da relação com o passar dos anos. A convivência diária pode levar à rotina. Alguns têm a capacidade para fugir de tal situação, outros não.

    A rotina decepcionava a Jairo, mas ele nada fazia para mudá-la. Este é o mal de muitas pessoas: não se ver bem diante de alguma situação, mas nada fazer para modificá-la.

    Em virtude disso o relacionamento começou a mudar. Pequenas e normais discussões passaram a ser levadas mais a sério porque Jairo tinha o pavio curto e se irritava facilmente.

    Foi o princípio dos problemas.

    Jairo passara a noite em um hotel e não pregara o olho. Ele ficara furioso com Renata pelas suas implicâncias. Mas a fúria foi passando e Jairo pensou em todas as coisas que a esposa lhe dissera. Não teria ela certa razão em alguns aspectos?

    Renata dissera-lhe que ele estava se preocupando demais com o trabalho e isso, de fato, não era verdade? Jairo começou a raciocinar. Ele estava trabalhando de segunda a sábado, muitas vezes levando coisas para fazer em casa depois do expediente. No domingo, seu único dia de folga, sentia-se cansado demais e não tinha ânimo para nada, nem mesmo para dar alguma atenção à esposa. Renata não teria razão em reclamar?

    Ela acusara-o de estar agressivo... Realmente ele não estava tendo muita paciência e algumas vezes havia até mesmo se exaltado.

    Algumas vezes? Acho que mais do que isso, admitiu. Irritado ele tinha consciência que o era desde garoto, mas agressivo não costumava ser... Até aquele momento.

    Renata também reclamara, com veemência, do fato de Jairo estar bebendo... Por acaso era mentira? Jairo nunca fora muito de beber, apenas em algumas ocasiões como festas ou datas especiais, mas nunca passava de um ou dois copos. Ultimamente, entretanto, ele adquirira o discutível hábito de tomar cerveja todas as noites (às vezes acompanhada por alguns cálices de vinho). Jairo teve que reconhecer que suas doses estavam aumentando. Começara bebendo uma cerveja, passara para duas e naquela noite já tomara três e estava passando para a quarta quando a discussão se iniciara. Sem contar com as duas doses de vodca que tomara em um bar próximo ao seu apartamento.

    Jairo admitiu que se continuasse daquela forma logo se tornaria um alcoólatra.

    Finalmente ele reconheceu que Renata tinha razão em quase todas as coisas de que o acusara e perguntou-se por que estava agindo daquela forma.

    A resposta veio-lhe rapidamente.

    Jairo tinha se cansado da vida de casado. Ele estava entediado com a rotina em que a relação havia caído. Durante muito tempo achou que Renata não estava satisfazendo-lhe as expectativas, mas agora chegara à conclusão de que isso era bobagem. Com outra mulher teria provavelmente acontecido o mesmo porque o problema era com ele.

    Oportunidades para trair Renata não faltaram e em uma delas Jairo quase cedeu. Na sexta-feira anterior, enquanto bebia um número exagerado de doses no bar em que estava se habituando a frequentar, ele foi assediado por uma jovem prostituta e chegou a decidir-se por acompanhá-la, desistindo apenas quando já estavam na porta de saída do bar, depois de um salvador momento de lucidez e de pensamento racional.

    Jairo estava tendo dificuldades para conviver tanto tempo com uma pessoa debaixo do mesmo teto. Ele, que havia muito vivia sozinho, começou a estranhar o fato de dormir, acordar, comer, etc., ao lado da mesma pessoa. Este era o problema.

    Perguntava-se se eles não teriam errado em decidir pelo casamento depois de apenas alguns meses de namoro. Realmente não fora muito tempo para consolidar uma relação e garantir que ela daria certo submetida à rotina do dia-a-dia.

    Ele considerou a atitude de Renata perante a situação. Com certeza ela percebera que o relacionamento entre eles tornara-se diferente, mais morno, mas ao contrário dele, que ficara estático, Renata tentara encontrar soluções. Afinal ela até largara o emprego para dedicar mais tempo a casa e ao casamento.

    Na noite anterior ela preparara um belo jantar e produzira-se toda para ele. Aquilo não fora uma exceção. Ela vinha tentando agradá-lo, fazê-lo sentir-se mais próximo a ela. E como estava reagindo? Com indiferença e agressividade.

    Você é um ótimo marido, pensou Jairo, com a consciência pesada.

    Tudo bem, o casamento não era a maravilha que ele imaginara em princípio, mas aquilo não seria normal? Não estaria ele exigindo de Renata algo que ela simplesmente não poderia lhe dar?

    Renata nunca deixara de ser carinhosa, atenciosa com ele, sempre o tratara bem, estava ao seu lado em todos os momentos, era fiel (pelo menos até onde sabia e não acreditaria no contrário) e o principal: amava-o.

    O que mais eu poderia querer?, perguntou-se Jairo.

    É claro que aquele sentimento de paixão arrebatadora, aquele fogo do princípio da relação, não era mais o mesmo e não seria isso normal?

    O tempo é implacável, pode desgastar as coisas. Renata, porém, nunca deixara de amá-lo e a verdade era que nem para ele o sentimento acabara. Ele a amava... E era isso o que importava.

    Jairo passou a noite toda pensando em tudo isso. Assim que os primeiros raios de sol surgiram ele tentou ligar para Renata, mas ela não atendeu ao telefone. Pela primeira vez Jairo se deu conta de que poderia vir a perdê-la e esse pensamento o afligiu. Aquilo não podia acontecer. Algo precisava ser feito. Ele tinha que fazer alguma coisa.

    E era por isso que Jairo queria chegar logo à Transportadora Blue Sea.

    Renata não conseguia entender porque Jairo mudara tanto e nem precisar quando isso começara, mas sabia que um acontecimento havia agravado e muito a situação: a morte de Arnaldo Kraminski, o dono da Transportadora Blue Sea, sete meses atrás.

    Kraminski havia sido o melhor amigo de Adalberto Drumond, o pai de Jairo. Graças a essa amizade Jairo ganhou em 1995 a oportunidade de estagiar na empresa enquanto frequentava a faculdade de Ciências Contábeis. Mostrando eficiência e competência Jairo foi efetivo como contador da Blue Sea.

    Arnaldo fundara a empresa em sociedade com a esposa Nora, que viria a falecer dois anos depois disso durante uma operação cardíaca.

    A transportadora rapidamente começou a crescer

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1