Fontes Documentais sobre o fim do Império Romano do Ocidente: a crônica sobre Teoderico e a crônica do conde Marcelino
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Fontes Documentais sobre o fim do Império Romano do Ocidente - Gustavo H. Sartin
PREFÁCIO
Desde o século XVIII de nossa era que, com a publicação de livros como Grandeza e decadência dos romanos (Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence), de Montesquieu, e o Declínio e queda do Império Romano (Decline and Fall of the Roman Empire), de Edward Gibbon, que uma imagem historiográfica foi construída e, posteriormente, cristalizada nos estudos e pesquisas referentes ao fim do poder imperial romano no ocidente no século V: a de que o Império, depois de vivenciar um longo processo de expansão de suas fronteiras, que o permitiu estar presente em boa parte da Europa, norte da África, chegando, no oriente, ao continente asiático, havia enfrentado uma profunda e irreversível crise, de causas e naturezas diversas, que o fez perder a maior parte de suas possessões, culminando com a deposição do seu último imperador no Ocidente, Romulus Augústulus, no ano 476. Autores como Montesquiel e, especialmente, Edward Gibbon, construíram suas narrativas sobre esse processo considerando os acontecimentos de 476 como a culminação de um estado de crises que teria levado o Império Romano, um símbolo de poderio político e cultural da Antiguidade, a se desintegrar ao longo dos séculos III, IV e V. A partir daí, novas comunidades políticas se instalariam no antigo território romano, em especial, na Europa ocidental.
Essa imagem historiográfica é tão importante e consolidada nos estudos de História que, tradicionalmente, é utilizada não apenas para marcar o fim do Império Romano e a formação dos chamados reinos bárbaros
, como também vem servindo de marco temporal para dividir, historiograficamente, o que conhecemos como o fim da História Antiga e o início da História Medieval. Também é a partir dela que Peter Brown, no livro The World of Late Antiquity, de 1971, propôs pela primeira vez pensar nessa fase de transformações como sendo, ela mesma, um período histórico específico, ao qual chamou de Antiguidade Tardia.
Apesar de criticada, questionada e constantemente revisitada, essa divisão entre o que consideramos pertencentes ao mundo antigo e o medieval ainda se mostra bastante presente e fortalecida nos ambientes acadêmicos. Para perceber isso, basta olharmos para a divisão nos espaços de ensino superior e pesquisa em História, seja no Brasil ou no exterior: departamentos, eventos científicos, publicações, laboratórios de pesquisa... enfim, são inúmeros os exemplos acadêmicos e institucionais onde essa divisão entre a História Antiga e a Medieval ainda é cristalizada e parece longe de ser dissolvida.
Não estamos falando aqui de um debate recente. Há pelo menos um século que a historiografia vem debatendo sobre as possíveis causas para a compreensão do fim do poderio político romano na Europa ocidental, com destaque para elementos internos ou fatores externos (como as chamadas invasões bárbaras
). Esse debate, na primeira metade do século XX, colocou em questão duas linhas de explicação, que ficaram conhecidas como a da morte natural
de Roma, ou de seu assassinato
, envolvendo historiadores como Ferdinand Lot e Andre Piganiol em suas respectivas defesas. Para além disso, outro rico e longevo debate historiográfico lida com as possíveis continuidades ou rupturas na transição da história romana à história medieval europeia.
A construção dessas imagens historiográficas, e suas consequentes revisões, evidentemente estão fundamentadas na análise dos documentos do período. Atualmente, o acesso a documentos escritos do período conhecido como Antiguidade Tardia é acessível a um grande número de pesquisadores e pesquisadoras, seja pela digitalização dos documentos, pela sua transcrição ou pelas traduções. O acesso cada vez mais amplo a esse grupo de documentos, das mais distintas naturezas, é fundamental para viabilizar a produção historiográfica em espaços distintos que, através da digitalização, transcrição ou tradução, permitem o acesso a grupos de narrativas que, há poucas décadas, só estava ao alcance de um número reduzido de historiadores e historiadoras.
O que encontramos nessa obra é uma tradução, feita pelo professor Gustavo Sartin, de dois importantes documentos tardo-antigos, indispensáveis à leitura de quem se interessa pelas transformações ocorridas por ocasião do fim do poder imperial romano na Itália, além das suas relações com populações não romanas ou mesmo com o poder imperial sediado então em Constantinopla. O primeiro deles é o texto conhecido por Chronica Teodoreciana, traduzida como A Crônica sobre Teoderico, texto de autoria anônima, mas que testemunha a fragmentação do Império Romano no ocidente europeu, contemplando do século IV até a morte do seu personagem principal, Teodorico, rei dos godos, em 526. Esse texto é fundamental para um estudo crítico sobre o que a historiografia mais tradicional e conservadora consolidou como uma distância (por vezes, violenta) entre romanos e bárbaros no período. Primeiro porque permite ao historiador analisar, no olhar de um autor tardo-antigo, a relação entre o rei dos godos e o imperador dos romanos em Constantinopla, Zenão, e suas alianças e disputas pelo exercício da autoridade política sobre romanos e godos na Itália, após a deposição de Romulus Augústulus, em 476. É um documento que possibilita ainda uma reflexão sobre as possibilidades e os limites da autoridade de um rei dito bárbaro e suas relações com um império que, embora houvesse deixado de existir no ocidente, ainda mantinha viva sua estrutura política no oriente, que chamamos de bizantino. Além disso, esse é um testemunho riquíssimo para a pesquisa que se dedica a refletir sobre a construção do cristianismo ortodoxo, suas relações com populações e práticas arianas, além da forte relação dos aspectos religiosos e, neste caso específico, cristãos, com o poder político instituído na Itália e em Constantinopla.
O outro documento traduzido por Sartin é a Crônica do Conde Marcelino, escrita no século VI. Iniciada por Marcelino, conde proveniente da região da Península Balcânica, o texto foi concluído por um autor anônimo após sua morte, cobrindo, ano a ano, eventos que acreditavam ter notoriedade e merecerem o registro, ocorridos entre 378 e 548. É um tipo de narrativa curta, que enumera os acontecimentos a serem destacados. Notamos que registros do século VI são descritos em maior número e mais detalhamento que os anteriores. Certamente, isso tem relação com o período vivido pelos autores. Diferente d'A Crônica sobre Teoderico, esta obra foi escrita em Constantinopla, descrevendo os acontecimentos registrados a partir de um ponto de vista imperial, no oriente, sobre o ocidente. Este texto cobre importantes acontecimentos para o estudo da história do período, como a as batalhas e morte de Átila, rei dos hunos, a deposição do último imperador romano no ocidente, Romulus Augústulus, a relação de Teoderico com o imperador Zenão, a ascensão do Justiniano ao poder imperial em Constantinopla, além das guerras enviadas por este contra os vândalos na África e os godos na Itália.
Nesta obra, Gustavo Sartin nos oferece uma tradução destes documentos diretamente do Latim para a língua portuguesa. Para tanto, utilizou-se não apenas das versões em latim das obras, mas não deixou de cotejar com traduções já existentes destes documentos para a língua inglesa, o que permite ao pesquisador e pesquisadora o acesso a uma versão bilíngue latim-português dos documentos feita em duas frentes: a tradução do idioma original e a comparação com traduções para o inglês já existentes. Dessa forma, cabe salientar que a tradução apresentada aqui pelo professor Gustavo Sartin é uma ferramenta importante de pesquisa não apenas a historiadores e historiadoras já experimentados no mundo da pesquisa em História, mas principalmente, a jovens que estão iniciando seus trabalhos e suas reflexões sobre o período antigo, podendo consultar este rico material em sua língua nativa.
E, por fim, há que se destacar que a o livro que se segue possibilita também aos professores e professoras poderem trabalhar com esses textos em sala de aula, instigando seus alunos e alunas a se inserirem nos debates historiográficos sobre este tema que, como dito acima, segue em voga nos estudos de História desde Montesquieu e Gibbon, no século XVIII, até os nossos dias.
Renato Viana Boy
Prof. de História Antiga e Medieval da
UFFS - Universidade Federal da Fronteira Sul.
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
INTRODUÇÃO
A CRÔNICA SOBRE TEODERICO
A CRÔNICA DO CONDE MARCELINO
CHRONICA THEODERICIANA
A CRÔNICA SOBRE TEODERICO
MARCELLINI COMITIS V. C. CHRONICON
A CRÔNICA DO CONDE MARCELINO, HOMEM ILUSTRÍSSIMO
DOCUMENTAÇÃO
BIBLIOGRAFIA
Landmarks
Capa
Folha de Rosto
Página de Créditos
Sumário
Bibliografia
A CRÔNICA SOBRE TEODERICO
A CRÔNICA DO CONDE MARCELINO
INTRODUÇÃO
A CRÔNICA SOBRE TEODERICO
O texto conhecido como Anonymus Valesianus
, ou ainda Excerpta Valesiana
, é constituído por duas partes: a primeira, Origo Constantini Imperatoris
(Origem do Imperador Constantino), cobre os eventos ocorridos entre os anos de 305 e 337 da Era Comum; enquanto a segunda, chamada Chronica Theodericiana
(A Crônica sobre Teoderico), lida com os eventos da península itálica a partir de 474, passando pela deposição do último imperador romano do Ocidente, Rômulo Augústulo, até a morte do rei ostrogodo Teoderico, o Grande, em 526. Enquanto o primeiro foi composto num estilo classicizante
, o segundo é repleto de vulgarismos
advindos da fala coloquial da época em que foi composto.¹ As únicas conexões entre os dois textos são o fato de fazerem parte de coletâneas de textos históricos em dois manuscritos, um produzido no século IX, o Codex Berolinensis Meermann-Phillipps 1885
, e outro, o Codex Palatinus Latinus 927
, composto no século XII ou XIII; além de haverem sido publicados juntos pela primeira vez em 1636 pelo francês Henricus Valesius - daí os seus apelido modernos, Anonymus Valesianus
e Excerpta Valesiana
. Aqui, tratamos apenas da segunda parte, a Crônica sobre Teoderico
.
Nela, o autor não nos informa a sua identidade, mas revela-se um católico que escreve em Ravenna, sede da corte de Teoderico. Chama a atenção e tem sido motivo de discussão o fato de o autor parecer mudar de opinião a respeito do rei ostrogodo ao longo do texto. Durante a maior parte dele, tece elogios ao rei, mas, no passo 79, começa a criticá-lo.² Embora alguns historiadores vejam isso como sinal de dupla au-
toria, as evidências estilísticas não apontam nessa direção. Diante disso, é possível que, simplesmente, o seu autor haja utilizado como fontes dois autores de opiniões distintas ou mesmo que a, digamos, degenaração
de Teoderico seja parte de uma estratégia