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Escritas e leituras contemporâneas I: histórias da literatura
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Escritas e leituras contemporâneas I: histórias da literatura
E-book626 páginas8 horas

Escritas e leituras contemporâneas I: histórias da literatura

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Sobre este e-book

Esta obra, pela variedade de abordagens que apresenta, aborda temas da área da História da Literatura em perspectiva interdisciplinar, propiciando o conhecimento do estado atual dos estudos no campo da historiografia literária, seus intercursos com outras disciplinas e suas relações com a sociedade na qual ela se manifesta.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de ago. de 2022
ISBN9788539711826
Escritas e leituras contemporâneas I: histórias da literatura

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    Escritas e leituras contemporâneas I - Amanda da Silva Oliveira

    PROPOSTA DE UMA MICRO-HISTÓRIA DA LITERATURA: A PRESENÇA DA NÃO-PRESENÇA FEMININA CONSTRUÍDA A PARTIR DA LEITURA DE QUARTO DE DESPEJO

    ADRIANA DE AQUINO HERZOG[ 1 ]

    Datas são pontas de icebergs.

    Alfredo Bosi

    Uma proposta

    Tendo em vista a complexa dinamicidade dos eixos de tempo e de espaço das práticas literárias, considerando-as de acordo com um horizonte que está em perene metamorfose, em virtude de estar em consonância com as permanentes transformações sociais, conforme assinalou Finazzi-Agrò (2013), seria apropriado (re)pensar a história da literatura a partir de uma perspectiva que desse conta de abarcar esse tempo-espaço contemporâneo social, em constante movimento, e que se mimetiza no fazer literário. Para isso, poderíamos adotar, por exemplo, as propostas epistemológicas sugeridas pelos Estudos Culturais, por conta da sua versatilidade teórica, mas também em razão da sua proximidade com os estudos de cultura sob um recorte da vida cotidiana, sobretudo popular, a fim de se idealizar uma possível história da literatura que pudesse refletir sobre as diferentes dimensões sociais inscritas e escritas na/pela literatura, concebendo-a a partir de um projeto que contemplasse a natureza plurifacetada e polirrítmica dessa história.

    Ainda considerando Finazzi-Agrò (2013), no que se refere à questão da arbitrariedade da fundação mítica da origem, poder refletir uma história da literatura cujo exórdio mimetize essa complexa relação entre tempo, espaço e campo literário, por exemplo, deslocaria a ideia de um início fixo, pré-determinado, instituído pelas próprias histórias da literatura tradicionais, para um sistema dinâmico, ou seja, em movimento, a fim de ampliar a compreensão do conceito de horizonte histórico-literário, que seja capaz de representar mais fidedignamente a realidade, tanto no que diz respeito à produção artística quanto à sociedade. Assim, nessa proposta de história, seria interessante romper com a configuração temporal convencional, portanto, linear, a qual normalmente baliza, ainda que insuficientemente, a estrutura dessas histórias da literatura, para propor um tempo outro, com vistas a abranger a complexidade de um tempo coabitado por outros tempos, do qual nos falou Bosi (1992).

    Para corroborar a questão da idealização de uma proposta de história da literatura que estivesse em consonância com princípios dos Estudos Culturais, que burlasse o paradigma sequencial cronológico e que propusesse um outro mito fundador, seria pertinente, também, ponderar, em termos de contribuição para esse projeto acerca das relações socioculturais, sobretudo em relação à inserção das questões do estudo de gênero, o que vai ao encontro, sobremaneira, com a concepção dos Estudos Culturais. Nesse sentido, seria pertinente discutir por que razão a literatura de autoria feminina permaneceu, de certo modo, invisível, pelo menos até meados da década de 70 do século XX, com apenas alguns poucos nomes perambulando pelo cenário literário, e como essa postura excludente, construída pelo signo da ausência, reverbera na contemporaneidade.

    A partir dos elementos mencionados para a concretização de um projeto que sugira uma outra história da literatura, pretende-se trazer para discussão a contribuição de um texto literário produzido em condições controvérsias, se considerarmos o contexto histórico-literário no qual ele foi produzido, com o intuito de endossar o que foi proposto, bem como para elucidar a proposta dessa outra história. Assim, abordando alguns aspectos dessa obra, teríamos como estabelecer correlações, em termos de tempo e de espaço, e propor uma história da literatura que ilumine essas questões através de um outro recorte – muito mais dinâmico e multidimensional, que contemple, sobretudo, o signo de uma ausência, sobre o qual nos falou Finazzi-Agrò (2013).

    Contribuições dos Estudos Culturais

    Os Estudos Culturais, em virtude de seu caráter versátil, democrático e crítico, propõem-se a refletir acerca das condições de produções culturais, considerando-as, sobretudo, a partir do deslocamento do lugar dessas práticas – que, em princípio, sempre estiveram vinculadas às formas elitizadas de produção e de consumo – para a vida cotidiana, predominantemente popular. Por entender que a cultura é um instrumento usado para estabelecer relações de poder, uma vez que seu eixo epistemológico tem caráter não apenas intelectual, como também político e ideológico, conforme sublinhou Johnson (2004), os Estudos Culturais, assim, buscam examinar as relações sociais em conformidade com contextos artísticos, observando, sobretudo, a articulação entre condições e meios de produção, a partir de uma determinada circunstância histórica. Interessante ressaltar que, ao mesmo tempo em que os Estudos Culturais visam a um contexto histórico específico, também abrem seu espectro de análise para uma leitura atualizada, na contemporaneidade vivida, dentro de uma dimensão que considera o aqui e o agora. Assim, o olhar dinâmico, simultâneo e múltiplo dos Estudos Culturais, que está em constante movimento, porque pretende, por exemplo, resgatar produções culturais por uma perspectiva histórico-social, examinando, por semelhança ou por disparidade, aspectos sociais inerentes às obras, mimetiza, com eficiência conceitual, nossa complexa contemporaneidade, uma vez que a repensa em uma instância do aqui e do agora. Nesse sentido, a amplitude teórica oferecida pelos Estudos Culturais contribuiria para uma análise que abarcasse uma literatura afastada de um locus centralizado e tradicional, privilegiando práticas discursivas de pendor popular, as quais são produzidas a partir de experiências da vida cotidiana, e que são averiguadas de acordo com um aqui e agora situacional. Todos os elementos elencados, considerando-os em um movimento de imbricação, dariam suporte, sobremaneira, para que a realização dessa história literária fosse possível, uma vez que democratiza o lugar de fala dessas produções, considerando, como foco de atuação, um recorte popular cujo olhar recai sobre a vida cotidiana em consonância com as relações sociais que se estabelecem no interior de um texto literário, e fora dele.

    Outro motivo pelo qual os Estudos Culturais são pertinentes para a idealização dessa proposta de história da literatura diz respeito ao seu caráter interdisciplinar, tal como apontou Johnson (2004). Esse viés pelo qual outros campos do conhecimento têm maior liberdade de circulação nos é favorável para respaldar essa história, na medida em que, a partir dele, podemos discutir questões de ordem política, antropológica, histórica, filosófica, sociológica, por exemplo, tendo como alicerce a obra literária. Nesse sentido, teríamos uma espécie de teoria acolhedora de outras fontes de conhecimento, as quais convergem dinamicamente para o mesmo ponto de interesse, cujo eixo constrói-se através do livro de literatura, formando, assim, um sistema múltiplo de saberes, que, quando acionados, estão a serviço da própria obra.

    O alargamento teórico, o diálogo entre diferentes campos do conhecimento, bem como a flexibilização do corpus são características constituintes da dinâmica dos Estudos Culturais – são estudos; ou seja, estão em permanente atualização, agindo em coerência com a dinamicidade social. Tendo em vista, ainda que sumariamente, os aspectos que compõem o cerne desses estudos, temos, ainda agregado a eles, a conotação das relações sociais, sobretudo populares, que trazem para o foco de discussão, por exemplo, as formações de classe, as questões de gênero e de etnia, sendo examinados em situações em que a cultura é tida como instrumento de poder, conforme apontou Cevasco (2008), uma vez que busca, na vida cotidiana, elementos literários deslocados do centro, os quais são oriundos da diversidade popular. Diante dessas circunstâncias, pensaríamos em uma história da literatura que contemplasse tais aspectos para formar uma espécie de rede sistêmica que trouxesse à tona elementos antes negligenciados pelas histórias tradicionais da literatura, pautada em uma produção cujo berço é a margem social. Destarte, entendemos que seria possível construir uma história que pensasse, de um modo mais autêntico, como se constituíram os movimentos culturais, em consonância com a dinâmica social, a qual contemplasse a formação dessa diversidade popular antes apagada.

    Nesse sentido, os Estudos Culturais serviriam como uma potente ferramenta teórica, porque legitimam, por exemplo, a representatividade da mulher, do negro, da classe operária, e de demais grupos excluídos, os quais foram banidos de um sistema cultural hegemônico. A partir dessa representatividade, muito mais genuína e despreconceituosa, poderíamos averiguar os movimentos dessa cultura popular, no sentido de, a partir da análise do texto literário, compor um quadro histórico – que reverbera na contemporaneidade – das formações discursivas de um grupo ignorado pela academia até então. Propomos, assim, uma história da literatura que pense a obra em confluência com os Estudos Culturais, a fim de que sejam resgatadas as pluralidades discursivas em um determinado contexto sócio-histórico, o qual possa ser desdobrado, a partir de uma construção sistêmica de elementos que confluam na formação da literatura contemporânea. Assim, diante das circunstâncias apresentadas, teríamos uma estrutura de história da literatura pautada na diversidade cultural, com vistas à produção literária feminina, escrita por uma mulher negra, oriunda de uma classe social desfavorecida, o que salienta as condições adequadas de a obra ser analisada através da perspectiva dos Estudos Culturais.

    Repensando o mito: quebra da sequencialidade cronológica

    A contribuição dos Estudos Culturais para a escrita dessa história da literatura também se sustenta pelo fato de como é abordada a questão temporal, sobretudo referente à contemporaneidade, como já mencionado. Há uma evidente preocupação, por parte desses estudos, em examinar movimentos da cultura contemporânea, suas particularidades, bem como a complexidade e o contexto ideológico das obras. Não apenas essas obras são examinadas em sua contemporaneidade de produção, mas também os significados constituintes do texto no seu momento de leitura. Em outras palavras: a obra literária, concebida pelos Estudos Culturais, transcende os limites de seu tempo e espaço, o que acaba por permitir, assim, que a construção de sentido dela se movimente conforme seu próprio descolamento no devir da história. Nesse sentido, segundo Johnson (2004), os Estudos Culturais propiciam discussões constantes e (re)contextualizadas sobre questões socioculturais, as quais podem ser observadas em tempos distintos, a partir do exame do mesmo corpus literário. Logo, à luz dos Estudos Culturais, a ideia de tempo pode ser compreendida como relativa, porque a obra não é analisada em um determinado tempo absoluto, estanque, mas na dinamicidade das relações temporais em consonância com aspectos sociais.

    Finazzi-Agrò (2013) coloca em discussão a questão do tempo, concebendo-o como um sistema complexo de acontecimentos simultâneos, e, portanto, dinâmico. Assim, para esse autor, o tempo não é compreendido como uma unidade de medida sequencial, contínua, ordenada por uma cronologia linear, mas como um tempo em conexão com outros tempos. Esse entrecruzamento temporal, sobre o qual nos fala Finazzi-Agrò, recusa a metodologia empregada em boa parte das histórias da literatura convencionais, as quais, normalmente, estão sob a tutela de um tempo marcado pela fixidez de datas e fatos legitimados pela própria história como únicos e verdadeiros, reproduzindo, desse modo, uma concepção histórica artificial, idealizada e parcial, e que, na maioria das vezes, acoberta uma intenção ideológica tendenciosa. O que interessa para ele, desse modo, por promover uma espécie de descompasso histórico, é uma história que se movimente fora dos padrões normativos da cronologia sequencial, que seja inconclusiva, desordenada e que represente uma dimensão temporal heterogênea, a qual pode ser compreendida como sendo uma sobreposição de tempos. Tempos esses que não se excluem, mas que se complementam – ainda que tenham de se opor a um sistema temporal linear e ineficiente, porque é artificialmente estruturado em virtude do objetivo a que se propõe: obter a perfeita adequação histórica, no sentido de história ideal, mas que, entretanto, apresenta uma configuração duvidosa, forjada, por conta da arbitrariedade que baliza a sua elaboração.

    Essa problemática sobre o tempo levantada por Finazzi-Agrò (2013) também já foi objeto de discussão de Bosi (1992). Este autor fala em convívio dos tempos, e elucida magistralmente seu argumento quando toma como exemplo a obra Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Bosi realiza um apanhado histórico do ano de 1956[ 2 ], data de publicação do livro, correlacionando aspectos políticos, sociais, geográficos, linguísticos, entre outros, os quais são analisados em confluência com a obra, a fim de corroborar a justificativa de coabitação de tempos. E, após nos apresentar uma bela explicação da obra em concomitância com os seus múltiplos tempos, provoca-nos: Mas onde estamos em 1956? No mito, na linguagem arcaica e popular, na evocação do contexto jagunço, na volta à natureza mais agreste? Ou na arrancada para a modernização definitiva? (BOSI, 1992, p. 32). Para ele, a complexidade sistêmica da convivência de tempos é de extrema riqueza, em virtude de exigir uma maior capacidade de compreensão que esse fenômeno, pautado no tempo não homogêneo, solicita em sua decodificação.

    Ambos os autores estão em confluência conceitual no momento em que consideram insuficiente a cronologia linear por entenderem que ela não dá conta de abarcar a complexidade social, a qual é plurifacetada e cujo tempo é, portanto, polirritmado. Não podemos, portanto, conceber uma instância única e absoluta de tempo, ignorando o fato de que a história é constituída por episódios múltiplos, os quais, embora às vezes pareçam contraditórios e descompassados, referenciam, com mais autenticidade, os eventos ocorridos. Sendo assim, para que a proposta de história da literatura aqui sugerida seja colocada em prática, pensou-se na ruptura desse tempo sequencial para que se possa fazer uma análise mais precisa, ou melhor dizendo, outra análise, dos movimentos culturais. Para que isso seja realizado, propõe-se partir do tempo presente, da contemporaneidade, para fazer o percurso inverso, ou seja, pensar o passado e, a partir disso, vislumbrar o futuro. Em outras palavras: rever o mito fundador, concedendo a ele um espaço de investigação no presente, no sentido de constatar como o objeto de estudo encontra-se na atualidade; fazer um percurso temporal contrário, a fim de apropriar-se das razões pelas quais esse presente configura-se desse modo para, enfim, poder projetar os movimentos culturais da literatura em um tempo futuro, cuja dimensão foi bastante negligenciada pela historiografia (FINAZZI-AGRÒ, 2013, p. 25).

    Se concebermos, assim, uma proposta de história da literatura a partir de uma ruptura da sequência temporal, podemos, por correlação, cogitar a possibilidade da existência de outro mito fundador – fruto de uma convencionalidade ou de outros mitos fundadores. O próprio Finazzi-Agrò (2013) já mencionou a existência de uma constelação mítica, a qual se configura na própria precariedade harmoniosa constituinte do entrecruzamento de tempos, sugerindo, assim, que sejam considerados não apenas um único mito fundador absoluto, inquestionável, mas mitos fundadores. Diante de tais aspectos, também seria pertinente estilhaçar esse paradigma cristalizado de fundação mítica da literatura, deslocando-o para um tempo que contemple um recorte histórico do momento presente, logo, adequando e atualizando o conceito de mito fundador. Dessa forma, consideraremos a repercussão da obra no aqui e agora, examinando-a em um percurso retrocedente, o que nos permitiria estabelecer relações tanto na contemporaneidade quanto na contemporaneidade de sua produção, bem como nas expectativas do porvir.

    A ausência

    Para Finazzi-Agrò (2013), a quebra da sequencialidade temporal coloca em discussão o fato de que as histórias da literatura tradicionais propositadamente negligenciam a complexidade da dimensão histórica, constituída por tempos e espaços múltiplos, silenciando, desse modo, outras vozes que, embora estejam afastadas de uma produção cultural literária canônica, também são representativas da realidade sociocultural brasileira. É sob os signos da ausência, da falha, da lacuna, os quais não são devidamente privilegiados, que Finazzi-Agrò (2013) propõe que seja repensado o fazer da historiografia literária. Assim, é na heterogeneidade que são constituídas as diversas vozes do discurso literário, as quais permaneceram soterradas por muito tempo, recorte também promovido pelos Estudos Culturais, que a proposta da história da literatura sugerida será traçada.

    Nesses termos, seria pertinente pensar em uma proposta de história da literatura que se propusesse a discutir a ausência da voz feminina, resgatando-a a partir de uma configuração social que justificaria a razão de sua não representatividade. Desse modo, poderíamos recuperar, ainda que não em sua totalidade, um recorte histórico cultural que nos foi – e que, de certa forma, nos é – negado em virtude de uma exclusão pautada em interesses ideológicos – a que tem por objetivo salientar uma supremacia hegemônica formada sob o ponto de vista masculino, apontando que, pela investigação da ausência, pode-se legitimar uma presença não oficializada.

    Conforme Schmidt (1995), os sistemas de representação de gênero compuseram-se na construção cultural de acordo com uma lógica excludente, pautada sob uma perspectiva que contempla um corpus de textos literários escritos e canonizados sob uma ótica masculina, ou seja, que é totalmente arbitrário, e, portanto, tendencioso. A autora discorre sobre o surgimento de movimentos feministas ocorridos na década de 70 do século XX, os quais colocaram em xeque esse paradigma cultural cristalizado até aquele momento. Desde então, houve uma abertura, no sentido de discussão teórica, que (re)pensou a incursão da mulher na literatura, levantando, assim, a problemática da formação do cânone do nosso passado literário. Diante desse novo panorama, cujo mote é rever questões de ordem da constituição do cânone, reverberam nomes femininos antes silenciados à historiografia oficial, promovendo, assim, um olhar outro sobre a nossa tradição cultural. Uma vez desarticulada essa configuração binária de gêneros, que não representa fielmente a heterogeneidade social por negar a constituição das diferenças, é possível romper com um paradigma do idêntico. Há, portanto, o redimensionamento do conceito de cultura, o qual se propõe a legitimar outras vozes discursivas até então silenciadas por um sistema de exclusão de pendor patriarcal.

    Respaldando-nos ainda em Schmidt (1995), podemos constatar que, até a década de 70, alguns parcos nomes, como os de Raquel de Queiróz, Cecília Meireles e Clarice Lispector, eram dignos de ser respeitados pela crítica. Entretanto, seria muito reducionista não considerar que outras escritoras não estivessem produzindo uma literatura de qualidade até aquele momento. De acordo com esse argumento, e, sobretudo, fundamentando-nos na proposta dos Estudos Culturais, o projeto de história da literatura aqui sugerido pretende averiguar em que medida a literatura produzida por mulheres delineou, ainda que clandestinamente, seu espaço, levando-nos a inferir, assim, que houve a formação de um cânone literário constituído paralelamente ao cânone oficial. De acordo com essa perspectiva, tenciona-se legitimar o fato de que a não-presença não instaura necessariamente uma real ausência, pois as escolhas que normatizam o cânone são arbitrárias, norteadas por um paradigma fundamentalmente patriarcal. Diante de tais circunstâncias, podemos nos apropriar do fato de que as mulheres tiveram uma produção literária artística considerável, entretanto, injustamente desprezada por razões ideológicas. Configuram-se, portanto, condições propícias para que um outro quadro histórico-literário, muito mais democrático e igualitário, seja traçado a partir da presença de uma não-presença feminina, pelo menos oficial, promovendo uma espécie de justiça literária. Em outras palavras: esperamos atestar que, embora sempre tenha sido negada, houve uma presença substancial de uma literatura feita por mulheres, sobretudo daquelas situadas à margem social, embora tal produção tenha sido relegada à escuridão. Para realizar essa proposta, utilizaremos a obra de Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo: diário de uma favelada, como justificativa para romper com os modelos de história da literatura tradicionais.

    Quarto de despejo: uma porta aberta

    A riqueza do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada permite-nos avaliá-lo sob os postulados dos Estudos Culturais a fim de pensarmos em um projeto de história da literatura que acione um sistema de informações inerentes à obra, e que, quando cruzadas, possibilitem-nos reconstituir não uma história linear, mas uma história multidimensional e polirrítmica. Para isso, nos apropriaremos da versatilidade dos Estudos Culturais, uma vez que, em virtude de sua natureza interdisciplinar, poderemos convocar outras áreas do conhecimento para compor um quadro histórico pautado na sociologia, na filosofia, na psicologia, na geografia, entre outros campos dos saberes que serão pertinentes ao desdobramento dessa história. Além disso, os Estudos Culturais possibilitam avaliar a obra em sua condição de produção, por se tratar de um espaço específico – a favela –, o qual condiciona o fazer literário de Carolina. Outro fator importante com o qual os Estudos Culturais preocupam-se é o recorte da vida cotidiana, retratada com extrema fidedignidade pela escritora, por se tratar, sobretudo, de um diário, cuja essência é testemunhal, denunciando, dia após dia, a problemática social daquele lugar.

    Diante dessas e de outras circunstâncias da obra, passíveis de serem analisadas através de uma perspectiva dos Estudos Culturais, propomo-nos a desenvolver uma história da literatura que resgate não apenas as ocorrências sócio-históricas de uma determinada época. A ideia aqui é justamente correlacionar dinamicamente os fatos, os quais serão levantados a partir do enfoque que é consolidado no texto, naquele momento de produção, analisando-os à luz de uma teoria cuja raiz é popular. Não só isso: poder entender os mecanismos constitutivos de uma escrita feminina, proveniente de uma mulher negra e favelada. Observar, portanto, as particularidades de uma identidade subjetiva, que, quando desdobrada em um plano mais amplo, representa a coletividade – no caso, a favela – em consonância com suas inter-relações.

    No momento em que convocamos tais questões, poderemos refletir sobre o fato de que, embora Carolina não tenha sido mencionada no cânone literário, é uma não-presença, mas que se fez presente pela potência estética de sua obra. Sobretudo porque, se pensarmos no ano de instituição dos movimentos feministas, os quais endossaram, de certa forma, uma escrita feita por mulheres, ou melhor, que reivindicaram a presença feminina em contextos culturais, preconizando uma literatura representativa desse gênero, Carolina, em termos de cronologia, antecede esses movimentos, porque seu livro foi escrito durante a década de 50 e publicado no início dos anos 60, antecipando, também, os preceitos dele.

    Considerando o referido texto literário em relação à estruturação temporal da proposta de história da literatura aqui idealizada, pensamos em partir de um tempo presente, rompendo com uma cronologia linear que se instaura na tripartida em presente-passado-futuro. A partir da quebra do paradigma temporal convencional, sugerimos um mito fundador que se consolida na instância do aqui e do agora, bebendo, dessa forma, da vertente dos Estudos Culturais, a fim de perceber como toda a dinâmica sócio-histórica suscitada e sustentada pelo livro Quarto de despejo: diário de uma favelada reverbera na contemporaneidade. Além disso, provocar uma discussão com vistas para o futuro, projetando o modo como o fazer literário de Carolina influenciará não apenas em termos de produções literárias pósteras, mas também no plano conceitual vindouro.

    Sendo assim, por conta dessa amplitude teórica viva e ativa dos Estudos Culturais, que está em conexão não apenas com o seu tempo – fixo, cristalizado –, mas com outros tempos, e por esses estudos estarem preocupados em averiguar o percurso cultural, bem como suas formações discursivas pautadas em movimentos sociais é que conseguimos vislumbrar uma proposta de história da literatura mais democrática, e que reflita, mais honestamente, a realidade social na qual estamos inseridos, convidando, com o intuito de endossar essa proposta, uma obra e uma escritora situadas à margem da sociedade para serem protagonistas da nossa história.

    REFERÊNCIAS

    BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

    CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo Editorial: 2008.

    FINAZZI-AGRÒ, Ettore: O tempo preocupado: por uma leitura genealógica das figuras literárias. Entretempos: mapeando a história da cultura brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

    JOHNSON, Richard. O que é, afinal, Estudos Culturais? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

    SCHIMDT, Rita Terezinha. Repensando a cultura, a literatura e o espaço da autoria feminina. In: NAVARRO, Márcia Hoppe. Rompendo o silêncio: gênero e literatura na América Latina. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1995.

    Notas


    [ 1 ] Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

    [ 2 ] Ano em que o presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, propõe um Programa de Metas, com vistas à modernização do país.

    A HISTÓRIA DA LITERATURA TEM GÊNERO?: REVISITANDO A PROPOSTA DE RITA SCHMIDT

    AMANDA DA SILVA OLIVEIRA[ 1 ]

    Considerações iniciais

    No X Seminário Internacional de História da Literatura, ocorrido em 2013, a conferência de encerramento, intitulada História da Literatura e Alteridades, contou com a comunicação da pesquisadora Rita Schmidt. Na ocasião, a professora discutiu sobre a temática de gênero nos estudos de História da Literatura, cujo texto intitulou a minha comunicação, apresentada no evento XII Seminário Internacional de História da Literatura, em outubro de 2017, e que agora resulta neste breve artigo.

    Na referida fala de Schmidt, baseada na ideia de Joan Scott, há uma clara necessidade de tomarmos o gênero como uma categoria de análise histórica, ressaltando-se a importância dessa tomada de posição para uma desestruturação da tradição patriarcal das Histórias da Literatura. A partir de algumas histórias da literatura analisadas, a palestrante indicou que ainda há muito por fazer nesse campo, e que a ampliação da produção de mulheres nas histórias da literatura aumenta perspectivas não só no que se refere às questões de gênero, mas também em rupturas e diferenças, essenciais para a compreensão do espaço latino-americano, formado, histórico e social, identitariamente heterogêneo.

    A proposta deste trabalho é revisitar o texto de Rita Schmidt analisando os pontos de suas notas do tempo (in)acabado de um projeto e refletindo criticamente sobre se a pergunta a História da Literatura tem gênero? ainda é importante, consistente e atual, apresentando, para isso, dois fatores principais: as discussões na área sobre o tema, depois de 2013, e a relevância do questionamento, ainda urgente em nossos dias.

    O texto

    A fala de Rita Schmidt, ocorrida no X Seminário Internacional de História da Literatura, no ano de 2013, na conferência de encerramento do evento intitulada História da Literatura e Alteridades, transformou-se, para fins de publicação em anais, em texto intitulado A História da Literatura tem gênero? Notas do tempo (in)acabado de um projeto, cujo conteúdo será apresentado brevemente nesta primeira parte do artigo.

    O texto da autora divide-se em duas partes, com dois objetivos bem definidos que, segundo ela, consistem em explorar o fundamento da autoridade que me levou a levantar tais perguntas e, assim, abrir espaços para reflexões sobre hegemonias e poderes (SCHMIDT, 2014, s/p)[ 2 ], além de ilustrar algumas das questões decorrentes das reflexões em torno das perguntas formuladas a partir de algumas publicações de histórias da literatura produzidas nas duas últimas décadas tendo como foco as literaturas latino-americanas (SCHMIDT, 2014, s/p).

    Para Rita Schmidt, o questionamento sobre se a história da literatura tem gênero pode ser tomada como uma impertinência diante de um constructo histórico investido de tamanho capital simbólico quanto é a história da literatura (SCHMIDT, 2014, s/p), porque estaria baseado na ideia de que será que a história da literatura, aquela história monumental, concebida como uma narrativa linear e progressiva do que de melhor foi escrito tem gênero? Será que não tem? O gênero tem uma história literária? (SCHMIDT, 2014, s/p).

    Schmidt sinaliza, inicialmente, a crise na história da literatura. A autora apresenta que a história da literatura teria se desenvolvido, segundo Roberto Ventura, como uma epopeia da nacionalidade, ideia essa preconizada por Silvio Romero e reforçada pelas histórias da literatura escritas no século XX. Nesse cenário, o cânone, obras e escritores consagrados pela tradição (SCHMIDT, 2014, s/p), atuaria como um processo que exclui os textos divergentes do modelo dominante de literatura. Para ela, apesar das discussões propiciadas ao longo dos anos pelo seminário de História da Literatura, por exemplo, ainda não foi concebido um objeto de estudo com uma configuração capaz de incorporar transformações a partir de questões sobre as quais muito tem se discutido, como o cânone e suas exclusões, outras linhagens escriturais e tradições marginalizadas (SCHMIDT, 2014, s/p).

    Schmidt assinala que os movimentos autônomos de pesquisadores, cujos projetos de pesquisa recuperam escritoras brasileiras do passado, por exemplo, seriam movimentos contrários, mas que ainda podemos pensá-los em casos isolados, pois ainda evidenciamos o que ela chama de territorialização masculina dos polos de produção historiográfica. Para ela:

    Não há questionamentos mais incisivos ou efetivos na perspectiva do gendramento e territorialização masculina dos polos da produção historiográfica e da produção crítica no contexto mais amplo de uma herança, historicamente constituída como monocultural e homossocial. (SCHMIDT, 2014, s/p).

    A autora acredita que pensar historicamente a constituição das histórias da literatura significa também pensar os limites de seus modelos e de observá-los a partir das questões de gênero. Para ela, as histórias da literatura têm reescrito e afirmado

    o binarismo de gênero como dispositivo de controle fazendo da diferença masculino/feminino um operador ideológico com a função estratégica de defini-la como opositiva e assimétrica, legitimando a sua codificação na tradição literária através do gênero da autoria, de certas linguagens, convenções e estruturas textuais que, via de regra, ratificam poderes hegemônicos nos campos sociais, culturais e políticos. (SCHMIDT, 2014, s/p).

    A exclusão da autoria feminina das histórias da literatura, nesse sentido, não basta afirmar que a sexualidade é historicamente construída, mas também, reconhecer que a história, ela mesma, é sexualmente construída (SCHMIDT, 2014, s/p). Ao percorrer a história do pensamento ocidental, Schmidt traduz que a argumentação expressa por grandes autores interfere em posições de observação dos papéis de homens e de mulheres: se Aristóteles considerava o homem superior porque tinha direito e poder de mando sociais, Rousseau pensava no sujeito feminino como uma condição intermediária entre criança e homem; Darwin, por sua vez, via a mulher como um homúnculo, e Derrida atribui à mãe uma imagem espectral.

    Schmidt explicita que

    o fato de muitas das escritoras do passado terem escrito sob pseudônimos porque do contrário não teriam seus textos publicados coloca em relevo o drama da legitimidade da autoria feminina sob a pressão cultural/social que definia a criação, a voz e a linguagem como prerrogativa dos escritores. (SCHMIDT, 2014, s/p).

    No entanto, as discussões teóricas da última metade do século XX já se ampliaram em pensar essa dicotomia homem/mulher e a legitimidade de um e desprestígio de outro. Schmidt cita referenciais como Roland Barthes, em O prazer do texto, cujo teor de argumentação é o questionamento sobre a autoria (paternidade), e Luce Irigaray, para quem toda teoria do sujeito, ao longo da história, sempre foi apropriada pelo masculino (SCHMIDT, 2014, s/p).

    A palestrante declara que é irônico que as discussões sobre uma nova historiografia permeada pelos influxos de teorias pós-coloniais tenha silenciado sobre a mais antiga forma de colonização, a de gênero (SCHMIDT, 2014, s/p), e chama esse fenômeno de Paternidade cultural. Para ela, os silêncios são reveladores e é urgente que se movimente essa ótica, apesar de consolidada:

    desestabilizar a lógica da totalização pressuposta na ficção de uma tradição literária única e proporcionar outros conhecimentos sobre o passado literário dos países da América Latina, outros imaginários e outras formas de escritura e interpretação do real, são os desafios de uma iniciativa ainda não materializada. (SCHMIDT, 2014, s/p).

    Os movimentos de tentativa para a mudança dessa desestabilização da lógica totalizadora, para a quebra de uma tradição literária única, apresentam-se, segundo a autora, por trabalhos precisos e ambiciosos de pesquisadores contemporâneos. Schmidt apresenta, nesse sentido, a Cambridge history of Latin American women´s writing, proposta de 36 pesquisadoras e 7 pesquisadores, cujos 38 capítulos, majoritariamente escritos por mulheres e sobre textos de autoria feminina, talvez possam

    constituir um ponto de partida para uma história comparativa, dialógica e intertextual que coloque em cena a autoria de mulheres e homens, as conexões e rupturas, convergências e diferenças, transformações de tradições e formas de escrita e de como essas se enriquecem e se influenciam mutuamente. (SCHMIDT, 2014, s/p).

    A discussão

    O quadro apresentado por Rita Schmidt, em 2013, revelava um trabalho bastante árduo, mas, segundo ela, ainda insuficiente da crítica literária e da história da literatura quanto ao tema de gênero. É importante que temas como esse, cuja argumentação está ao lado de defesas, como a de Joan Scott, de que o uso do ‘gênero’ coloca a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade (SCOTT, 1989, p. 7), são, na realidade, percepções de necessidades e de novas perspectivas de compreensões de mundo e de reflexões de nós mesmos no mundo.

    Na discussão de Rita Schmidt, implicitamente observa-se a influência de um outro texto, intitulado A escrita tem sexo?, da autora francesa Nelly Richard. No texto de Richard, a necessidade da escrita teria como urgente uma espécie de feminização da escrita:

    Feminização que se produz a cada vez que uma poética, ou uma erótica do signo, extravasa o marco de retenção/contenção da significação masculina com seus excedentes rebeldes (corpo, libido, gozo, heterogeneidade, multiplicidade), para desregular a tese do discurso majoritário. (RICHARD, 2002. p. 133).

    A possibilidade levantada pela crítica de Richard evidencia literaturas que se pratiquem como dissidentes da identidade e que se façam cúmplices da ritmidade transgressora do feminino-pulsátil, de um feminino, na ideia de Deleuze e de Guattari, que opera como paradigma de desterritorialização dos regimes de poder e captura da identidade, normatizada e centralizada pela cultura oficial (RICHARD, 2002, p. 133), conceituando e definindo que:

    Converter o Feminino na metáfora ativa de ‘uma teoria sobre a marginalidade, a subversão, a dissidência’ que, fugindo do determinante naturalista da condição ‘homem’ ou ‘mulher’, se imagina como pacto a tecer entre subjetividade minoritária (o Feminino como margem sexuada da representação, que desafia as normas hegemônicas a partir da outridade) e políticas do signo (o Feminino como articulador e potenciador de várias formas de transgressão da identidade)". (RICHARD, 2002, p. 134).

    Nessa linha, eventos e movimentos que discutem o gênero e a produção feita por mulheres, do feminino, feministas, cada vez mais têm ocorrido em nosso meio. Destaco, por exemplo, três eventos, ocorridos nos últimos cinco anos, representativos dessa onda necessária à compreensão da escrita literária brasileira no que tange à produção de mulheres. Em 2015, na UNESP de São José do Rio Preto, ocorreu o I Congresso Internacional e II Congresso Nacional de Literatura e Gênero: Corpos que se importam, cuja presença de Judith Butler foi sintomática em relação à urgência de se pensar o feminino na literatura e nas discussões sobre literatura. Ainda em 2015, na UCS, em Caxias do Sul, o evento VII Seminário Internacional e XVI Seminário Nacional Mulher e Literatura contou com a temática das Mulheres de Letras – do oitocentismo à contemporaneidade: transformações e perspectivas, tendo como homenageadas as escritoras da Sociedade Partenon Literário. Em 2017, na UFSC, em Florianópolis, o 13° Mundos de Mulheres & Fazendo Gênero 11 contou com um mundo inteiro de arte, empreendedorismo e pesquisa de mulheres, de várias nacionalidades do mundo, dentro do território espacial da universidade. A proposta do evento, de integração e de empatia, aconteceu durante uma semana inteira, contando até mesmo com marcha pelas ruas de Florianópolis.

    Esses eventos foram relevantes e fundamentais para a área de literatura e de feminismo em nosso país, interferindo nas discussões mais atuais da pesquisa em literatura. Se a ação desperta novas consciências, as narrativas criadas por esses movimentos tornam as realidades heterogêneas e construtivas de novas histórias – histórias essas que não mais devem contar com nomes canônicos, mas com vozes cujos anseios permitam contar outras versões e cujas necessidades de existência tornem-se cada vez mais urgentes.

    Na história recente do Seminário de História da Literatura, os movimentos de discussão seguem atuantes. No seminário seguinte ao da participação da discussão de Schmidt, em 2015, o XI Seminário Internacional de História da Literatura contou com uma mesa intitulada As vozes do Silêncio, na qual Eurídice Figueiredo, da UFF, falou sobre Figurações das mulheres em romances escritos por mulheres, e a saudosa professora Zahide Muzard, da UFSC, questionou Por que uma história da literatura de mulheres?, tema de conversa à fala questionadora de Rita Schmidt no seminário anterior.

    Já no XII Seminário Internacional de História da Literatura, que ocorreu em 2017, as temáticas sobre gênero seguiram tendo espaço, como, por exemplo, na palestra intitulada Senhoras do Almanaque, projeto da professora Vania Pinheiro Chaves, da Universidade de Lisboa, na mesa-redonda Histórias da Literatura: Do Cânone ao não Canônico?. O encerramento do seminário contou com a participação da professora Ileana Mihaila, da Universidade de Bucareste, na Romênia, cuja fala foi sobre Dos grandes escritoras rumanas en el siglo XIX: la princesa cosmopolita Dora d´Istria y Carmen Sylva, reina-artista y reina de los artistas. Além disso, o evento contou com três sessões de comunicação específicas de temática feminina, como duas sessões sobre Histórias da Literatura e Autoria Feminina e uma sessão sobre Estudos de Autoria Feminina.

    A relevância

    A posição deste breve artigo foi, portanto, repensar o texto de Rita Schmidt e analisar se a discussão da autora, ocorrida no X Seminário Internacional de História da Literatura, poderia ser considerada atual após dois eventos e quatro anos de sua ocorrência. Apesar de a posição do Seminário de História da Literatura não ter abordado, especificamente, a discussão sobre a presença de gênero para suas discussões centrais sobre histórias da literatura, a problemática levantada por Rita Schmidt coloca-se como cerne de discussão sobre os questionamentos das literaturas de minorias. Esses questionamentos, longe de serem elementos de crítica aos sistemas de escrita de histórias da literatura, na realidade ampliam seus objetivos e metas dentro de novos cenários e novos paradigmas de escritura, de produção e de seleção de textos em projetos de escritas das novas histórias literárias.

    Quando se considera o gênero como uma categoria de análise, revelam-se a história e suas ausências, presenças e apagamentos. Em se tratando de histórias da literatura, esse questionamento torna-se passível de análise, de intencionalidades e de críticas. As histórias literárias funcionam como balizadores das produções de autores em determinados períodos de construção identitária da literatura e do que ela simboliza, mas, durante muito tempo, as escritas de histórias da literatura atuavam em sua horizontalidade, tendo o tempo como característica marcante e fundamental. As teorias contemporâneas, representadas, por exemplo, pelo pensamento de Itamar Even-Zohar, estabelecem propostas de escrita de histórias em suas verticalidades, selecionando, para composição do corpus, não mais os melhores nomes daquele tempo, mas sim a eleição de obras que atendam a um pressuposto de análise definido.

    Essa perspectiva assinala um posicionamento diferente e mais democrático quanto às construções de histórias literárias: primeiramente, porque estabelece claramente uma seleção, a qual só elimina outras obras em função dos pressupostos definidos para a escritura de tal posicionamento crítico; depois, porque evidencia que a presença de outras obras – as que ficaram de fora, por exemplo – já estabeleceriam um outro critério de análise e um outro tipo de história, o que destaca o caráter seletivo na tentativa de uma história, e não mais a história. Nesse posicionamento, a chance de que conheçamos uma história não desmerece nem desvaloriza qualquer outra, tampouco deixa de possibilitar a escrita de tantas outras. O caráter democrático do processo evidencia não mais histórias absolutas, mas sim tentativas de histórias que, segundo seus objetivos e seus recortes, configuram novas molduras literárias críticas e heterogêneas.

    No questionamento sobre se a história da literatura tem gênero, percebe-se a relação dessa possibilidade com a ideia expressada por Nelly Richard em A escrita tem sexo?, quando, conforme já apresentado, problematiza sobre o debate da marca de sexo e de gênero na escrita, particularmente na literatura de mulheres. Para a autora, é possível tornar extensivo o valor contestatório do Feminino (entendido transversalmente) ao conjunto das práticas anti-hegemônicas (RICHARD, 2002, p. 133), uma vez que a escrita é o lugar onde o espasmo da revolta opera mais intensamente (RICHARD, 2002, p. 139) – ideia semelhante à defendida por Schmidt em sua comunicação.

    Considerações finais

    De forma incisiva, percebe-se que, após a discussão suscitada pela fala de Schmidt em 2013, vem ocorrendo um profícuo debate sobre essas questões na constituição e nas propostas dos seminários, desde então e desde sempre, mesmo que de maneira indireta, o que evidencia a importância do debate e atualização do tema nas pesquisas de estudos de literatura e de história da literatura.

    A questão de gênero têm sido tema cada vez mais recorrente e destacado em meios de crítica literária, porque, cada vez mais, tem-se pensado na dinâmica de ausências e presenças dos produtores de texto no campo literário brasileiro. Movimentos como leitura de livros escritos por mulheres, bem como eventos específicos e número cada vez maior de trabalhos de pesquisa na área evidenciam que a discussão do que pertence e do que não se deixa pertencer na dinâmica artístico-literária pode ter mais pontos importantes, além dos estéticos.

    Ao compor a discussão de gênero como categoria de análise histórica, os mecanismos monocultural e monossocial, como nos apresenta Rita Schmidt, evidenciam suas estreitas relações em nome de uma paternidade cultural, como evidenciou a autora. Essas observações de mundo tornam a arte percebível de modo homogeneizante, e isso difere da realidade empírica: sabemos que os universos são muitos e diversos, assim como nossa realidade é somente uma em meio a tantas outras. Como não perceber isso na arte e na literatura também?

    Em se tratando de escritas de histórias, cada uma merece ser contada a partir de um ponto de vista, de uma seleção e de um objetivo, mas isso não evidencia que algumas devam existir em detrimento de tantas outras. As narrativas devem seguir existindo, assim como as histórias literárias que as abrangem e as situam em contextos e tempos, mas é fundamental que sejam compreendidas enquanto verdades – no plural – de um rigor técnico e acadêmico, e não enquanto verdades absolutas de uma definição única de história. As realidades são várias, assim como as narrativas que as contam, e as histórias devem ser um constructo de efetiva transformação dos espaços literários e de quem a eles pertence. As histórias literárias são fundamentais para que se compreendam os espíritos de época de determinado período, quem são os produtores e quais as obras mais sintomáticas daquele período, mas não devemos percebê-las como instituições cujas abordagens sejam vistas e compreendidas como únicas. Há sempre um perigo nas histórias únicas. Cabe, às histórias da literatura, perceber isso e

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