Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Bela
Bela
Bela
E-book227 páginas3 horas

Bela

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

No dia 8 de dezembro de 1930, Florbela Espanca tirou a própria vida. Naquela data completava 36 anos de idade. A vida da poeta foi a de um espírito criativo, insatisfeito, complexo, com laivos de luz e sombra no Portugal na virada do século 20. Esta é tanto uma biografia ficcional, abrindo a porta para as angústias e desejos da poeta, quanto um romance psicológico, envolvente e arrebatador. Poeta que não admitia ser chamada de "poetisa", Florbela foi uma mulher não convencional, uma precursora que ousou viver em toda plenitude, ainda que envolta pela infelicidade. Encontrou na poesia, desde criança, a natural expressão das suas paixões, das suas mágoas, com um erotismo sublime e sempre, sempre da procura do Grande Amor.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de dez. de 2022
ISBN9786586419290
Bela

Relacionado a Bela

Ebooks relacionados

Biografias de mulheres para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Bela

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Bela - Ana Cristina Silva

    9786586419290capaL.jpg

    É a recomposição de elementos existentes que explica que a quimera não exista no real, mas levante voo na representação do real. E os sentimentos que experimentamos, verdadeiramente no nosso corpo, desta vez são provocados pelas nossas representações quiméricas […]. As crianças magoadas são obrigadas, mais do que quaisquer outras, a fazerem uma quimera, verdadeira como são verdadeiras as quimeras, a fim de suportarem a representação da ferida, pois o único real suportável é aquele que inventam.

    Boris Cyrulnik, Resiliência

    Quando morrer, é possível que alguém, ao ler estes descosidos monólogos, leia o que sente sem o saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo — uma alma — se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão, em silêncio, sobre o que eu fui ou julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me.

    Florbela Espanca, Diário do último ano

    Matosinhos, madrugada de 8 de Dezembro de 1930

    Bela acabou de se matar. De seguida encosta a cabeça à almofada da cama. Os seus cabelos negros movem-se como as asas de um corvo a levantar voo sobre a cinza eterna de uma fotografia. Não sente que se esteja a deitar. Tem a impressão de estar a ser aconchegada pelas mãos acariciadoras de uma outra que, com o seu odor, lhe assenta sobre a alma com um manto de paz.

    O gesto do seu braço a descair sobre as cobertas desprende-se de um corpo que apenas se vai perpetuar na eternidade, imobilizando-se em definitivo nos contornos de um mito. A morte veio ter com ela como uma dádiva que a protege da necessidade de ser a primeira para alguém. Agora já não precisa de ser amada nem tão pouco voltar a interpretar a personagem de uma grande poeta, a sua principal invenção. Desiste dessa busca insaciável, da sôfrega procura de uma alma gémea através dos ténues reflexos que a sua poesia deixa no amor.

    Inspira uma última vez, entregando-se com devoção ardente à morte como se a marcha para a escuridão a consagrasse num renascimento. Sempre soube que a morte teria asas de condor, luzes tricolores de amanhecer, vozes de violino angelical, seios de uma mãe real. Sonhou com ela desde que nasceu e espreita-a imensamente feliz. Deixa-se envolver pelos braços que a morte lhe estende, acreditando estar no abraço de uma mãe. Tem tempo ainda para reconhecer o seu sorriso disperso por um feixe de luz anunciada. Não distingue bem o rosto, mas estilhaços de luminosidade tombam sobre si como um foco de um farol que, círculo após círculo, vai incidindo sobre um mar profundamente escurecido. Vê alegria nessa claridade, deixa-se cortejar pela luz com a mesma esperança com que antes abrira a veia das palavras para fazer jorrar sangue sobre os seus poemas. Mas a luz vai-se esbatendo, a escuridão embrenha-se nos olhos, o ar torna-se irrespirável e os contornos do mundo recolhem-se, perdendo densidade e arestas.

    Vem buscar-me, mãe! é o que ainda pretende dizer, no entanto, os lábios fixam-se ao silêncio, imaginando o sopro de muitos ventos. A brisa deixou de pertencer naquele instante à sua respiração, só que ela não o sabe. Na véspera avisara várias amigas que morreria nessa noite, mas nenhuma acreditou. Nunca ninguém acreditou nela, porque é que neste caso seria diferente?, teria pensado se os seus pensamentos não tivessem caído num silêncio desmedido.

    Há duas horas ainda tentara a esperança, comparando a vida às planícies rasas com giestas em flor. Esforçara-se por reter na memória aquele momento em que o orvalho da manhã cobria as terras do Alentejo com um véu de tule branco. Sobre essa imagem imaginou um futuro possível. A invocação foi excessiva. A dor era uma agulha que lhe perfurava a visão do mundo, fazendo um buraco dentro dela. Só sentia o horror carnal de continuar a viver, mergulhada no caos dos seus pedaços. Já não era capaz de disfarçar o grito que lhe inflamava a garganta sem nunca chegar a explodir sempre que falava com o marido. Aquele grito esfacelava-a, condensava-a, definia-a. Era refém do seu impiedoso encantamento. O grito estendia-se aos pensamentos, empurrando-a perigosamente para a falésia onde os continentes acabam. Debaixo dos seus pés abria-se um precipício de onde a morte a chamava. O seu espírito deixara de fixar o eco de outras palavras, como se tudo o que estivesse em repouso fosse melhor do que o movimento de estar viva.

    Sentou-se na cama e fixou-se ao espelho do guarda-fatos. Imaginou, viu, sentiu a própria face a desfazer-se. Diante dos seus olhos, perdia a fisionomia que sempre tivera, as feições de diva com que se apresentava ao mundo transformaram-se no perfil de uma mulher devastada. A dor exercia sobre ela uma pressão tão intensa que lhe despedaçava os contornos do rosto, a angústia expandia-se, mostrando-a como realmente era feita. Cada minuto de uma vida futura causava-lhe verdadeiro horror.

    Levantou-se com esforço para se sentar à escrivaninha. Escreveu cartas de despedida às amigas. As palavras alinhavam-se automaticamente, escutava o seu ruído inexprimível de cascata ao caírem sobre a folha branca como se marulhassem à tona de água. A sua escrita era demasiado imprecisa para chegar à verdade. E, no entanto, prosseguia, deixando as palavras desembaraçarem-se sozinhas, quase sem precisarem dela. As letras deslizavam, eram peixes a nadar sobre a matriz branca do papel, abrindo sensações sobre espaços em branco, mergulhando na descrição de afetos. Saudade, amizade, tristeza, amor assemelhavam-se a sentimentos reais a emergir dos traços desenhados pelos movimentos precisos da caneta. Apenas ela conhecia a realidade. Não passavam de cristas revoltas a rasgar garatujas ocas. Contavam mentiras, porque já não havia sensações vivas no seu coração, nem tão pouco memórias. Não podia, apesar de tudo, volatilizar-se simplesmente como se nunca tivesse existido. Era amiga de Buja e de Maria Helena e a sua amizade tinha significado, sendo bem mais poderosa do que tantas paixões enganadoras.

    Continuou a escrever durante uma hora. A sua mente treinada ditava-lhe sem esforço as palavras, foi tocando-as como quem toca uma melodia que simula o tom de uma carícia pelo tempo da sua duração. Já ninguém existia por detrás dessas palavras, mesmo escrevendo-as copiosas e sentimentais. Quando acaba as cartas, despe-se. Escolhe a sua camisa de dormir de rendas, a mais bonita que possui. É fina demais para os rigores de Dezembro. Um arrepio, um estremecimento recorda-lhe que existe o frio e que não está tudo terminado. Para celebrar o pacto com a morte precisa de evocar a paz de uma extensa planície vazia. Mesmo gelada, voltou a sentar-se à escrivaninha. Quebra-me o encanto, suplica à morte. Decide escrever um derradeiro poema, lançar fragmentos de vida ao papel na esperança de que um fantasma a agarre e a puxe do abismo. Mas os versos não a satisfazem, parecem-lhe inertes e mortos, meras palavras que revelam ainda mais a sua condição de ninguém.

    Senta-se depois ao espelho para escovar o cabelo. O gesto rotineiro de se pentear suspende-lhe as decisões. Escovar o cabelo é uma ação que não se encaixa num enleio de intenções suicidas. Levanta a mão mais uma vez, mas para ao reconhecer o rosto deformado pelo reflexo do espelho. Abre e fecha os olhos e a visão da própria face deixa de ser instável. Como habitualmente não gosta do que vê. Por segundos, teve esperança de que o espelho lhe devolvesse a presença de uma outra de traços definidos e belos. Com os olhos exauridos de lágrimas imagina o rosto daquela outra de semblante felino, alguém que é ela com olhos de fogo, sendo por isso capaz de suportar que os seus desejos não tenham plena repercussão no mundo. Bela! Que nome mais despropositado! Para que a sua cara o merecesse, os olhos deveriam ostentar gotas de claridade natural e o sorriso mostrar-se sedutor e cativante. E o que é que ela vê? Olhos pequenos, mortiços, duas contas escuras e tristes. Um olhar que aprendeu a fixar com languidez desde criança de modo a esconder da máquina fotográfica do pai o medo de ser abandonada. Uma expressão que não passava de um cenário através do qual finge ser essa outra, sobretudo diante de homens que, por sua vez, fingem tomá-la por essa outra. A haver justeza na sua boca, os lábios teriam de se desenhar sobre um molde carnudo e vermelho. A boca não lhe fazia justiça. Fechava-lhe o coração no interior do corpo através de duas linhas de contornos finos que desagradavam à entrega de um beijo. Examinou cada detalhe e a superfície do rosto foi-se alterando de novo, fugidia como o sopro de um fantasma sobre um vidro baço. No meio dos pormenores depara-se, por instantes, com a imagem de uma criança perfeita, uma menina renascida pela assombrosa força dos seus anseios. A ilusão, porém, desvaneceu-se, desfocada pela brevidade. Devagar, passa um dedo pela face real que sempre a desgostou. Era redonda demais. Aquela cara era a derrota a anunciar novas derrotas, uma expressão envelhecida com marcas de rugas emergentes, uma pele ressequida como um tapete desgastado. Desce os olhos até às mãos e roda-as. Observa a elegância da sua dança em perfeita simetria com o espelho. As suas mãos eram belas, com dedos esguios. Dela, só as mãos a mereciam.

    Recolhe o rosto atrás das mãos. O murcho e o enrugado ficam escondidos por aqueles dedos que ocultam os danos. Talvez, quando ela jazesse no cemitério, a verdadeira, a outra a quem as mãos pertenciam, fosse ao encontro do seu lugar numa vida esplendorosa. Talvez a outra lhe sobrevivesse, conquistando a felicidade de uma alma que, por fim, se desembaraça do corpo.

    Pensa nas árvores consumidas pelo Inverno, no esforço inútil das folhas para se segurarem ao tronco. Dois pingos de chuva seriam suficientes para as derrubarem. Pensa: A vida assim não merece a pena. Mesmo que os seus atos deixassem de ser um escândalo para o mundo, mesmo que alguém escutasse o ruído convulsivo da dor nos seus poemas, as palavras tinham um efeito de consolo passageiro. Só os mortos têm paz e nada sabem do sofrimento. Não passava de uma fugitiva a lutar às cegas contra a ferocidade de vultos que, por sua vez, brigavam dentro de si. Na realidade, já estava morta e o seu cadáver apenas respirava escuridão. Mais valia habitar na morte do que viver dentro daquele cadáver, enfrentando as devastações da vida.

    Observou uma das suas fotografias, exposta em cima da cômoda numa moldura de madeira escura. Sorri, porque sabe que a fotografia jamais irá envelhecer. De seguida, abre uma das gavetas e retira dois frascos de Veronal. O seu marido, o médico com quem casara, deixara à sua disposição tudo o que necessitava para morrer. Alinha com cuidado os frascos na superfície envernizada da madeira. Acaricia-os um a um, percorre a sua forma com os dedos como quem espera ainda deparar-se com a sensação necessária para desistir. Lá dentro, apinham-se minúsculos comprimidos brancos, parecem rebuçados, pílulas doces que, depois de engolidas, conduzi-la-ão finalmente ao apaziguamento. A sua aparência promete um repouso de pó açucarado. Olha-os fixamente e, por instantes, supõe-se no meio de uma tolice, uma partida espirituosa que se joga sem adversário, à espera, ainda assim, de magoar alguém.

    Estava exausta. Desde que Apeles morrera custava-lhe horrores adormecer. Permanece sentada. O silêncio à sua volta é uma pausa na morte. Naquele silêncio chegam-lhe todas as mágoas ao mesmo tempo. A morte estava nas charnecas da sua infância, mesmo durante a Primavera quando nasciam as folhas novinhas nas árvores. A morte de cor de cera também percorria Matosinhos como se andasse à sua procura pelas ruas secundárias que iam dar à sua casa.

    Observa-se de novo ao espelho, reconhecendo já a face de uma moribunda. Ultrapassara o momento, deixara escapar a salvação. Tornara-se numa estátua a assistir à passagem do tempo num jardim decadente. Uma estátua corroída pelo zimbro da dor a ameaçar ruir. Ninguém pousava nela, todas as pessoas, o marido, as amigas eram pombos que voavam para longe. Estava completamente só e presa na armação granítica daquele sofrimento que nunca abanava. Não comia, sentia-se a ser comida pelo caos. Não dormia, anestesiava-se para evitar que a pele se descosesse da carne. Fizesse o que fizesse apenas conseguia chegar à evidência desconcertante de já estar morta. Era isso. Engolir os comprimidos não mais seria do que permanecer deitada no areal diante do mar e imobilizar-se num tempo em que se não está. Nada iria acontecer que não tivesse acontecido já, morrer seria apenas mais um encolher de ombros, uma exibição da sua indiferença face ao vasto mundo. Seria tudo idêntico ao que já era, apenas com a diferença de que a música do sofrimento emudeceria interminavelmente. Em seu lugar nada, nem a ventura nem a desgraça. Apenas uma ária longínqua e até vingadora contra todas as promessas não cumpridas. Ela não ficaria para a escutar porque se derramara, para seu extraordinário alívio, como um bálsamo fresco sobre as suas chagas. O fim daquele insuportável latejar das têmporas.

    Recorda Luís, uma das últimas paixões. Ele não a amara nem nunca pensara nela como mulher. Antes de a morte a alcançar, já se passeava, adornada por uma capa de invisibilidade, puro espírito destituído de formas corporais. Indubitavelmente pouca coisa sobrava dela. Um frêmito de raiva desce sobre Bela ao recordar-se daquele amor. É ainda uma vaga de vida que a rodeia como se ela fosse uma frágil alga, mas a onda rebenta sobre ela, afogando-a numa espuma branca. Recorre ao ódio para desvendar os olhos da diva, num derradeiro gesto teatral. A outra, a mulher sedutora, existia atrás do espelho, sentia-a no bafo da respiração agitada. Para se mostrar ao mundo só era necessário uma morte ritual, um sacrifício. A sua disseminação até à imagem verdadeira depende apenas de alguns comprimidos brancos. Agarra nos frascos e volta para a cama, gozando um instante de triunfo pleno. Não acabava ali, recomeçava ao lado de seu irmão.

    Matosinhos, manhã de 8 de Dezembro de 1930

    De manhã, alguns minutos depois de abrir a porta do quarto de hóspedes onde a sua senhora dormira para não ser incomodada, a criada emitiu um grito estridente. Teresa não era a criada que Bela sonhara para a servir. Sempre imaginou uma serviçal de uniforme imaculado que fizesse soar o seu nome numa voz diáfana e cristalina. Uma criada de dedos sensíveis, capaz de manusear objetos com gestos delicados. Sempre desejou uma serviçal que caminhasse com passos etéreos ao transportar numa bandeja uma xícara de chá fumegante e que distribuísse flores, deliciosamente frescas, pelas jarras como quem faz da sua sala um cenário requintado. Teresa, a serviçal que gritou, era apenas uma moça de aldeia com uma boca rude. As palavras que saíam dos seus lábios lembravam uma tromba de água despejada sobre a casa quando anunciava o jantar. Não, definitivamente, não era essa criada de aparência grosseira que Bela gostaria de ver anunciar a sua morte.

    Primeiro Teresa chamou pela sua senhora, enquanto, com a sua habitual falta de jeito, pousava a bandeja com o pequeno-almoço na escrivaninha. Gostava de Bela, era uma mulher estranha, mas sempre a tratara bem, tal como aos outros criados. Agradecia e pedia desculpas pela maçada dos seus pedidos, atitudes nunca antes vistas entre outras patroas. Abriu as cortinas para fazer entrar a luz, apesar de o dia anunciar tempestades. Quando se virou, Bela deixou de ser uma silhueta fina e uma sombra pequena debaixo das cobertas. A sua figura encheu subitamente o quarto. A sua senhora tinha os olhos abertos e os lábios molhados por uma espuma branca. Aproximou-se e abanou-a como se, com essa ação desesperada, fosse ainda capaz de a acordar. Teresa abriu a boca, mas a única coisa que conseguia dizer era Senhora, palavra que repetiu num tom sumido uma e outra vez. Ao ver que nada surtia efeito, ajoelhou-se ao lado da cama. As suas mãos ásperas postaram-se numa oração muda como se só Deus, Nosso Senhor, na sua infinita misericórdia, pudesse acordá-la. Mas, logo de seguida, a aflição de Teresa, o pavor e a angústia, verteram-se em gemidos de vitelo ao ser conduzido ao matadouro. Um vitelo verdadeiro seria, decerto, menos turbulento e os seus balidos prometeriam sons mais aprazíveis, teria, porventura, pensado Bela se estivesse viva. Mas, tudo o que estava a acontecer, tinha lugar sem ela e, ao contrário do que imaginou, o mar não escureceu nem o sol ensandeceu por ela estar morta.

    O Dr. Mário, marido de Bela, subiu as escadas a correr quando ouviu Teresa gritar. Estacou, porém, à entrada do quarto, não se aproximando da mulher. Não o fez sequer, quando a criada, com ar desesperado, se virou para ele e, apontando para o corpo de Bela, lhe disse Doutor, em tom de súplica. O normal seria ele ter examinado a mulher, tentado reanimá-la ou, pelo menos, ter avaliado o seu estado. Aquela indecisão afigurou-se-lhe quase suspeita, mas, por momentos, pensou que também ele estaria em choque não se atrevendo a dá-la como morta. Em todo o caso, deveria agir, tomar urgentes providências, fazer qualquer coisa com os seus unguentos para devolver a vida à sua senhora. Era médico, afinal de contas!

    Ele manteve-se imóvel, um espectro pálido de respiração ruidosa que transmitia realce ao silêncio. Só passados alguns minutos, instantes largos que sugeriam uma hesitação indeterminada, se achegou à cama. Não tocou em Bela nem a examinou como seria da natural expectativa de Teresa. Limitou-se a anunciar o veredicto, sem a mais leve ênfase, com a mesma frieza com que mencionaria a morte de uma estranha: Está morta, a senhora morreu. A voz neutra, a sua face de borracha amolecida escandalizaram a criada. A atitude do doutor pareceu-lhe pouco compassiva, sem se atrever sequer a fechar os olhos ou a tapar a face da senhora. A cozinheira da

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1