Introdução à História da Língua e Cultura Portuguesas
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A principal finalidade desta obra é facultar uma panorâmica diacrónica das origens e formação da língua e da cultura portuguesas, esboçando os seus antecedentes mais remotos e descrevendo as fases da sua formação e as mudanças mais significativas a que foram sujeitas, quer devido a contingências políticas e sociais, quer devido a fenómenos inerentes à dinâmica da própria língua e cultura. A valorização da língua e da cultura como matrizes da identidade de um povo só pode ser justificada através de uma reflexão sobre a origem e evolução da própria língua e cultura. Com esta obra, visa-se proporcionar aos leitores menos informados um conhecimento das estruturas fonéticas, morfológicas, sintácticas, semânticas e lexicais da Língua Portuguesa ao longo do tempo, suas manifestações e seu modo de funcionamento, conjugados com uma reflexão sobre a cultura em que essas estruturas foram criadas e desenvolvidas.
José Barbosa Machado
José Barbosa Machado
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Introdução à História da Língua e Cultura Portuguesas - José Barbosa Machado
Introdução
A principal finalidade desta obra é facultar uma panorâmica diacrónica das origens e formação da língua e da cultura portuguesas, esboçando os seus antecedentes mais remotos e descrevendo as fases da sua formação e as mudanças mais significativas a que foram sujeitas, quer devido a contingências políticas e sociais, quer devido a fenómenos inerentes à dinâmica da própria língua e cultura.
A Língua e Cultura Portuguesas, como área científica, situa-se numa encruzilhada onde convergem os diversos ramos de especialização das Ciências da Linguagem e das Ciências da Cultura, nomeadamente a Sociolinguística, a Etnolinguística, a Fonética, a Morfologia, a Sintaxe, a Semântica, a Pragmática, a Lexicologia, a Linguística Cognitiva, a História da Língua, a Historiografia Linguística e a Cultura. Esta área é assim um largo espaço de formação e reflexão linguísticas e culturais. Por outro lado, sendo uma área ecléctica, procurámos privilegiar as relações interdisciplinares com a Antropologia Cultural, a História, a Sociologia, as Línguas Clássicas, as Línguas Modernas e a Literatura.
A obra é composta por oito capítulos. No primeiro, relacionamos a língua com a cultura. Nos três capítulos seguintes, fazemos um breve historial das línguas do mundo, da expansão do Latim na Europa e do contributo linguístico dos vários povos que nos antecederam no teritório. Nos restantes capítulos, apresentamos os quatro períodos históricos da Língua Portuguesa: o Galego-Português ou Português Antigo, o Português Médio, o Português Clássico e o Português Moderno.
A valorização da língua e da cultura como matrizes da identidade de um povo só pode ser justificada através de uma reflexão sobre a origem e evolução da própria língua e cultura. Com esta obra, visa-se proporcionar aos leitores menos informados um conhecimento das estruturas fonéticas, morfológicas, sintácticas, semânticas e lexicais da Língua Portuguesa ao longo do tempo, suas manifestações e seu modo de funcionamento, conjugados com uma reflexão sobre a cultura em que essas estruturas foram criadas e desenvolvidas.
Optámos por uma abordagem diacrónica, por ser, certamente, mais enriquecedora, uma vez que dá uma visão das origens da nossa língua e cultura, do seu desenvolvimento e permanência ao longo do tempo.
1 – Língua e Cultura
1.1. Os conceitos de cultura e identidade
Para os sociólogos e etnólogos, a cultura consiste no conjunto de ideias, objectos e modos de os construir que foram ou são criados, desenvolvidos e usados por um grupo de indivíduos. A cultura inclui as artes, as crenças, os costumes, as invenções, a tecnologia, as tradições e a linguagem verbal, não verbal, oral e escrita. A cultura permite que o homem proceda a acções que não seriam possíveis ou seriam muito difíceis de concretizar se utilizasse apenas os seus músculos e os seus sentidos. Por exemplo, os seres humanos não precisam de garras se tiverem flechas, não precisam de ser capazes de correr a alta velocidade se tiverem domesticado o cavalo, ou não precisam de fazer gestos e emitir urros para se fazerem compreender por outros da mesma espécie se têm à sua disposição uma língua articulada foneticamente. Os dispositivos culturais permitem assim que os seres humanos ultrapassem algumas limitações físicas e sobrevivam em ambientes hostis.
O termo cultura, tal como é hoje utilizado, foi introduzido pelo antropólogo britânico Edward Burnett Tylor. Na obra Cultura Primitiva (1871), Tylor define cultura como «a complexa totalidade que inclui o conhecimento, a crença, a arte, a moral, a lei, o costume e todas as outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade». Para Tyler, as três características mais importantes da cultura são: (1) A cultura é adquirida pelas pessoas. (2) A pessoa adquire cultura como membro de uma sociedade. (3) A cultura é uma totalidade complexa (vid. Enciclopédia Delta Universal, entrada Cultura
).
A definição que António José Saraiva dá de cultura está dentro deste âmbito. Para ele, cultura é «todo o conjunto de actividades lúdicas ou utilitárias, intelectuais e afectivas que caracterizam especificamente um determinado povo» (2003: 11).
O conjunto dos traços culturais de um grupo, independentemente do seu tamanho em número de indivíduos e a extensão do território habitado, é considerado uma cultura. Essa cultura define a identidade do grupo, que pode ser uma família, um bairro, uma aldeia, uma tribo, uma cidade, uma região, uma nação, um país[1] ou até um continente. É neste sentido que poderemos falar de uma cultura portuense, uma cultura barrosã, uma cultura mirandesa, uma cultura transmontana, uma cultura minhota, uma cultura portuguesa, uma cultura galega, uma cultura catalã, uma cultura espanhola, uma cultura hispânica, uma cultura lusófona, uma cultura europeia, uma cultura africana, etc.
O conceito de identidade cultural é complexo e tem vindo a ser confundido com o de identidade nacional. Esta, mais abrangente, pode não definir de forma correcta as particularidades de culturas minoritárias que vivem ou sobrevivem dentro de uma cultura mais abrangente que é delimitada através das fronteiras de um país.
Vitorino Magalhães Godinho refere que «a formação de nações foi um dos vectores fundamentais da evolução das sociedades e civilizações desde o Outono da Idade Média. Todavia tornou-se também um mito, por querer basear o seu ideário em suposta ou proposta identidade
» (2004: VIII). Isto porque os complexos histórico-geográficos, sejam eles reinos, países, impérios ou blocos de nações unidas por pactos e tratados, se fazem e desfazem com o tempo.
Segundo Marie-Claude Groshens, «para além do inventário dos traços objectivos (aparência física, língua, costume, atitudes e comportamentos...) ou dos traços subjectivos (representação, vontade, imaginação, sentimentos específicos...) a produção da identidade de um grupo implica a sua capacidade de se reconhecer nesses traços. Esta capacidade resulta de um complexo de sentimentos – representações – vontades – imaginações cujo conteúdo se liga exclusivamente com a identidade; ela nasce do redobrar reflexivo (...) na sequência do qual o que à partida era da ordem da determinação experimentada conscientemente ou não – se transforma em autodeterminação consciente e voluntária» (1986: 23). Um dos mecanismos para a produção da identidade cultural de um grupo é, no entender da mesma autora, «a constituição de uma memória social» (Ibid.: 19). A memória social permite que os indivíduos se agarrem à matriz da sua identidade e se tornem sujeitos «do seu próprio destino histórico» (Ibid.: 20).
1.2. A língua como factor de identidade
Na obra A Cultura em Portugal, António José Saraiva considera que «uma cultura nacional tem uma certa identidade e uma certa permanência no tempo» (1985: 81). Em seu entender, as razões da persistência das particularidades nacionais «podem ser extrínsecas ou intrínsecas, históricas, geográficas, económicas, culturais ou espirituais» (Ibid.). A identidade cultural portuguesa pode ser caracterizada pela combinação de factores como a língua, a história, as instituições e as tendências sociais, as observações de estrangeiros que visitaram Portugal, as observações de Portugueses sobre países estrangeiros, documentos de contrastes de costumes e mentalidades, a literatura e as artes.
A língua foi um dos factores que mais contribuiu para a formação da identidade portuguesa. O Estado português, diz António José Saraiva, constituiu-se «dentro da área linguística galego-portuguesa, como num seio maternal» (Ibid.: 83). Para explicar a separação entre Portugal e a Galiza, o autor refere que «o território linguístico galego-português foi amputado em consequência da relação de forças, sobretudo militar, entre Portugal e Castela» (Ibid.).
Embora a língua falada possa em muitos casos não corresponder às fronteiras de um país, uma vez que há países com diversas tradições linguísticas, como a Espanha, a Bélgica, o Canadá e a Suíça, no caso português ela é um dos factores fundamentais para a permanência da identidade cultural, que nos faz distinguir dos castelhanos, dos galegos, dos catalães, dos italianos ou dos franceses.
Fernando Pessoa dizia: «A minha pátria é a língua portuguesa.» Esta frase, tão badalada por políticos e cultural-speakers, quer dizer, segundo Eduardo Lourenço, que «a língua portuguesa, esta língua que me fala antes que a saiba falar, mas acima de tudo, esta língua que através de mim se torna uma realidade não só viva mas única, a língua através da qual me invento Fernando Pessoa, ela é a minha pátria» (a1999: 126). Os homens «souberam sempre que a sua pátria
era, antes de tudo, a sua língua». O que, para Eduardo Lourenço, constitui os homens «na diferença que é identidade, ao mesmo tempo fonte de impossibilidade de comunicar com os outros e da pertença ou aderência ao que lhes é íntimo», são as línguas. «Definir uma pátria
, ou outrora um grupo humano, uma tribo, por uma língua significa visar o sinal por excelência da distinção que nos assinala como semelhante àqueles que falam a nossa língua e como outro para aqueles que a não compreendem» (Ibid.).
1.4. Periodização da Língua e da Cultura Portuguesas
António José Saraiva divide a Cultura Portuguesa em três grandes fases. A primeira vai até ao primeiro terço do século XVI e nela podem ser distinguidos dois períodos: um, em que a retórica não se evidencia e «o discurso é funcional como nas igrejas românicas» (1985: 161); o outro, em que a retórica sobressai, «ou como uma forma de resolver problemas novos postos por uma mudança nos pontos de vista do narrador, ou como excrescência decorativa gratuita» (Ibid.). A esta fase chama-lhe Idade Média, sendo o seu último representante Gil Vicente (1465?-1537?).
A segunda fase vai de cerca de 1530 até meados do século XVIII. Nesta fase, o engenho do autor ou falante sobrepõe-se ao juízo, «tendendo aquele à construção de conceitos, que são válidos independentemente de serem verdadeiros» (Ibid.). Esta fase pode dividir-se também em dois períodos: «a Renascença, em que se nota ainda um certo compromisso entre este discurso engenhoso e o discurso clássico greco-latino, mais próximo da expressão lógica; e o chamado Barroco
, em que o papel do juízo parece afundar-se completamente e o paradoxo se afirma como a manifestação máxima do engenho» (Ibid.).
A terceira fase da Cultura Portuguesa tem como modelo «a língua das camadas cultas urbanas, usada no jornalismo e na oratória» (Ibid.: 161-162). António José Saraiva atribui a esta fase também dois períodos: o primeiro, «em que predomina a lógica geométrica, mais ou menos revestida de retórica greco-latina» (Ibid.: 162); o segundo, conhecido como período romântico e pós-romântico, «em que se recorre abundantemente à conotação das palavras, pelo menos do discurso literário» (Ibid.).
A primeira fase corresponderá ao