Academia de Letras
De Nei Lopes
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Sobre este e-book
Cuidadosamente organizado, o livro cobre toda a produção musical de Nei Lopes, tanto as composições apenas de sua autoria quanto as diversas parcerias. Na mesma página, o leitor terá acesso à letra, a uma espécie de glossário e a comentários e curiosidades do próprio Nei Lopes sobre a composição. Dessa forma, o livro registra em palavras e celebra a obra de uma das figuras mais relevantes da história de nossa música.
Nas palavras do jornalista e crítico musical brasileiro Tárik de Souza, que assina a apresentação do livro, "este portentoso Academia de Letras insere Nei Lopes – em definitivo, se ainda havia dúvidas – entre os maiores compositores brasileiros de todos os tempos. Nessa compilação de sua obra (até aqui), entre inéditas e gravadas, conjugam-se qualidade, quantidade e diversidade estética, atributos reservados a poucos e raros (…). Além de esmiuçar as próprias composições, Nei exercita generosamente os dotes de enciclopedista e abre comportas para um conhecimento mais aprofundado de sua obra e os caminhos percorridos por sua imaginação, estudos e sabedoria na forja de cada tema. Não apenas no campo vasto e pouco desvendado dos povos e culturas africanas e suas palavras transpostas para o uso corrente brasileiro, mas também na geografia dos bairros e logradouros cariocas, cultivando a alma encantadora das ruas (…). Se promove ainda um inventário sobre culinária, vestuário e comportamento e prospecta origens e implicações de cada termo empregado, Academia de Letras fornece, ao mesmo tempo, uma compassada (e nada indulgente) autobiografia do compositor. Acertos e tropeços, desavenças e acolhimentos, e a devoção religiosa que o fez superar percalços como a perda de um filho pequeno (…). Rigoroso na utilização do cinzel de poeta, conjugado ao bisturi do causídico, bacharel em Direito, ele se revela um esgrimista de ironia cortante, mas igualmente apto a comover em remansos de lirismo".
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Academia de Letras - Nei Lopes
A CHICA VOLTOU
com Dauro do Salgueiro
A Chica que me apreciava
E eu não sabia
Um dia foi minha, mas num belo dia
Se mudou pra fora do país
Vendeu aquele sala e quarto
Que tinha em Benfica
Se meteu num barco e foi pra Martinica
E me deixou pobre e infeliz
O caso é que como me disse
A comadre Surica
Amor de Chica sempre fica
E a Chica me baratinou
Mas ontem, eu quase curado
Esquecido da Chica
Numa recaída que quase complica
Vivi uma cena de filme de horror
Dona Encrenca, uma arara, com cara
De jaguatirica
Me deu bofetão com luva de pelica
Dizendo: "Se pica
Que a Chica voltou!"
Razões que nenhuma razão
Explica ou justifica
Me levaram ontem à Praia da Bica
Pra tomar um chope e comer um siri
Ao som de um esperto cavaco
Pandeiro e cuíca
Naquela harmonia que não se complica:
Sol-fá-mi-ré-dó, ré-mi-fá-sol-lá-si
Mas eis que no estrondo do som
De uma velha fubica
Com mais decibéis que avião em Cumbica
Tu sabe quem dela, me vendo, saltou?
Era ela, chiquita bacana
Banana nanica
Replastificada numas três esticas
Desonrando as cores do nosso Brasil
Era a Chica, quebrando o barraco,
Cantando besteira
Mulher melancia, mulher bananeira
Meu Deus, que doideira!
Meu mundo caiu
© Girândola/direto
Benfica – bairro da Região Central do Rio de Janeiro que faz fronteira com São Cristóvão e Mangueira
Martinica – departamento ultramarino insular francês no Caribe
Surica – nome artístico da grande sambista Iranete Barcelos, a Tia Surica da Portela
baratinar – fazer perder ou perder a serenidade, a clareza mental, o controle da situação; desnortear(-se)
Dona Encrenca – antiga referência indefinida à esposa do malandro, notadamente aquela que se souber das malandragens
, exige seus direitos
uma arara – profundamente irritado, a ponto de cometer um desatino
jaguatirica – mamífero da família dos felídeos, encontrado do sul dos EUA e ao norte da Argentina, do porte de um cão médio, com cerca de 80 cm de comprimento e 11 kg
picar-se – sair ou fugir; picar a mula
Praia da Bica – praia localizada na Ilha do Governador, mais precisamente no bairro Jardim Guanabara, na Zona Norte carioca
fubica – automóvel muito velho e/ou defeituoso
Cumbica – Aeroporto Internacional de São Paulo, localizado no município de Guarulhos
estica – cirurgia plástica
O grande Dauro do Salgueiro, falecido em 2018, era membro da família na qual me casei em primeiras núpcias, antes de me tornar compositor profissional. Era melodista inspirado, sendo autor de ótimos sambas-de-terreiro dos Acadêmicos, escola na qual ingressei aos 20 anos de idade, pouco antes de o conhecer. Sete anos mais velho que eu, quando entrei para a Ala de Compositores da Academia já o tinha como parceiro e referência. Um dos sambas de sua autoria de que sempre gostei é A Chica
, que fala de uma mulher, talvez imaginária, que gostava dele sem dizer (A Chica parava na minha e eu não sabia
) e só demonstrou seu sentimento quando sentiu ciúme da Maria
, a titular no coração do poeta. Por gostar muito desse samba e lamentar não ter sido parceiro em sua criação, um dia resolvi dar continuidade à história. E então me vinguei da Chica, por ela não ter permitido que eu a conhecesse antes do Dauro, quando era bela e faceira
. O cenário que escolhi para o reencontro foi a Praia da Bica, na Ilha do Governador. Foi uma rima e uma solução, pois essa praia também um dia já foi gostosa e aprazivel.
Inédita
A EPOPEIA DE ZUMBI
E de repente
Era um, eram dez, eram milhares
Sob as asas azuis da liberdade
Nascia o Estado de Palmares
Mas não tardou
E a opressão tentou calar, não conseguiu
O brado da vida contra a morte
No primeiro Estado livre do Brasil
Forjando o ferro de Ogum
Plantando cana e amendoim
Dançando seus batucajés
Pilando milho e aipim
Fazendo lindos samburás
Amando e vivendo enfim
Durante cem anos ou mais
Palmares viveu assim
E a luta prosseguia
Contra a ignorância e a ambição
Até que surgiu Zumbi
Nosso Deus, nosso herói, nosso irmão
Ciente de que nenhum negro ia ser rei
Enquanto houvesse uma senzala
Ao invés de receber a liberdade
Zumbi preferiu conquistá-la
E depois de mais três anos de guerra
O punhal da traição varou Zumbi
Foi a vinte de novembro
Data pra lembrar e refletir
E quase trezentos anos depois
Um brado forte e varonil
Ainda vem de Pernambuco e Alagoas
E se espalha pelos céus desse Brasil
Folga negro de Angola, que ele não vem cá
Se ele vier, quilombola, pau há de levar
© Sony
Zumbi – nome pelo qual passou à História o líder maior da confederação de Palmares, morto a 20 de novembro de 1695, data em que hoje se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra
Palmares – refúgio de escravos no interior de Pernambuco e Alagoas, dirigido por Zumbi
Ogum – orixá cultuado nas religiões africanas, corresponde a São Jorge no sincretismo religioso
batucajé – dança profana ao som de tambores
samburá – cesto bojudo e de boca estreita, feito de cipó ou taquara, muito usado para carregar iscas e petrechos de pesca, e para recolher o pescado
senzala – conjunto de alojamentos que, nas antigas fazendas, se destinavam aos escravos
quilombola – escravo fugido para o quilombo
Na década de 1970 ainda predominava, nos estudos sobre a escravidão, a ideia de que os africanos bantos – do centro-oeste e do sul do continente – eram inferiores aos do oeste, então referidos como sudaneses
. E isto principalmente por conta dos escravizados muçulmanos que compunham este segundo segmento. Os estudos sobre as insurreições desses muçulmanos na Bahia, principalmente a grande revolta de 1835, reforçava ainda mais essa ideia, como se a bravura dos malês em seus combates fosse fato isolado na história da escravidão. Então, aprofundando meus conhecimentos, estudei a história dos quilombos de Palmares e aprendi que os escravizados de lá protagonizaram a maior e mais importante reação por quase 50 anos. Fiquei sabendo que a resistência de Palmares foi liderada por chefes bantos, entre eles Ganga Zumba e Zumbi. E que do contingente de africanos escravizados no Brasil, cerca de dois terços eram bantos, ou seja, a grande maioria, que, no entanto (talvez por estratégia), era mencionada nos livros como gente ignorante e bruta, enquanto sudaneses
como os malês – porque liam o Alcorão, o livro de Maomé – seriam todos inteligentes e letrados. Escrevi o livro Bantos, Malês e Identidade Negra
com o propósito de desfazer esse equívoco histórico. E esse samba, composto na década de 1980, nasceu também nesse contexto.
LP Nei Lopes – Negro Mesmo (Continental/1983)
LP Nei Lopes – Canto Banto (Saci/1995)
CD Nei Lopes – Celebração (Carioca Discos/2003)
A HORA DO TOURO
Lendo um anúncio num famoso matutino
Quis saber do meu destino e fui direto a um professor
Que tinha estado bastante recentemente
Lá nas terras do Oriente com Nabucodonosor
(Na astrologia e na magia ele se dizia ser doutor)
Examinando a data do meu nascimento
Ele previu bom casamento e uma escalada social
Segundo ele, eu sou do signo de touro
Que é o signo do ouro, do prazer e coisa e tal
Signo forte e sendo signo da terra
Muita coisa boa encerra no plano material
(Muito conforto e mordomia pra gastar o vil metal)
Quem é taurino e do segundo decanato
É artista bom de fato e sempre acerta no que faz
Mas tem que ter muito cuidado com a garganta
Mormente quando canta com intenções profissionais
Sabendo disso, fui em busca do tesouro
E num programa de calouros resolvi me apresentar
Com o sucesso que eu faria, certamente
Choveriam pretendentes querendo me desposar
E o que eu queria, vou dizer sinceramente
Era ter uma emergente presidente do meu lar
(Com uma empregada eficiente pra eu não me preocupar)
Infelizmente, deu comigo tudo errado
De manhã tomei gelado e minha garganta pifou
Não tinha pato no programa de calouros
Fui gongado por um touro que mugiu e me chifrou
(Era um miúra, pele escura, pinta de reprodutor)
Mas, como um touro, sou teimoso e persistente
E no domingo novamente volto a me candidatar
Vênus, por certo, vai estar lá na paquera
Todo o baixo astral já era, vou me reabilitar
Você vai ver, vai tudo ser satisfatório
Vou achar no auditório uma de Scórpius pra meu par
(Ferrão aqui, chifre acolá, mas mesmo assim vou me casar!)
© Girândola
matutino – jornal que sai pela manhã
Nabucodonosor – rei da Babilônia
vil metal – dinheiro
decanato – seção de dez graus do zodíaco, correspondente a um terço de cada signo, e que tem astro regente independente do regente do signo
mormente – sobretudo, principalmente
miúra – touro bravo, difícil de lidar
Vênus – deusa do amor
Lucinha Lins, que, como eu, também batalhava no mundo do jingle, avisou que ia fazer um disco e um show tendo como tema os signos do zodíaco. Não me lembro quem foi o intermediário, mas recebi a encomenda e resolvi falar sobre o meu signo, claro! Num samba de breque, que é uma das vertentes do samba que mais me encantam. E com uma letra que conta uma historinha, como é tradição no estilo. Sempre Sempre Mais
, show dirigido por Jorge Fernando, foi um sucesso – teve também uma versão em disco – e trazia no elenco Cláudio Tovar, com quem Lucinha iniciava bem sucedida parceria: são bem casados até hoje.
* Esta versão da letra é a que foi gravada pelo autor em 1999. A letra gravada por Lucinha Lins em 1982 foi adaptada para o feminino e, portanto, traz algumas pequenas alterações.
LP Lucinha Lins – Sempre, Sempre Mais (Philips/1982)
CD Nei Lopes – Sincopando o Breque (CPC-UMES/1999)
A NETA DE MADAME ROQUEFORT
com Rogério Rossini
Madame Roquefort
Traz cada vez melhor o seu charme burguês
E já tem quase oitenta e três
Da Rua do Chichorro
Foi morar no morro mas fala francês
Sua garçonnière tem bufê e étagère
E um lindo sommier
Só tem filé mignon
Maionese, champignon
Champanhe e vinho rosé
(do bom Chateau Duvalier que é o que tem melhor buquê)
Lá por volta das sete
Ela pega o Chevette e vai fazer balé
De sapatilha de croché
Depois, no Arpoador
Com seu maiô de tricô
Ela não faz forfait
De bustier com fecho-eclair
E quando chega a noite
Ela vai à boate com seu Chevrolet
Mas quem dirige é o chofer
E você imagine
Que nem no Regine’s ela paga couvert
(É hors-concours na discotèque, opinião de Eddie Barclay)
Porém na gafieira
Ela é bem brasileira no modo de ser
(collant grená, saia godê)
Comendo croquete
Tomando Grapette de pé no bufê
Com seu vestido de plissê
E quando ouve o trumpete
Mesmo em fita cassete
Pega rouge e batom
Fazendo um charme pro garçom
Retoca a maquiagem
Pra manter a boa imagem
E sai dançando ao som
De um belo solo de piston
Numa canção de Jean Sablon
E a neta de Madame
Por mais que eu reclame, por sua vez
Também não fala português
Seguindo a tradição
Sua comunicação é no idioma inglês
(É tudo rap, body-board, CD-rom e CD-player)
Esse país não é mesmo sério
Já dizia um bom gaulês!
© Sony
Rua do Chichorro – rua localizada no bairro carioca do Catumbi, aberta no século XIX pelo desembargador Chichorro da Gama
garçonnière – casa ou pequeno apartamento particular alugado ou possuído por um homem, destinado a encontros amorosos
bufê – espécie de aparador ou de armário usado na sala de jantar e sobre o qual pode estar o serviço de mesa das refeições
étagère – espécie de estante de prateleiras abertas e sem portas, às vezes com um gabinete fechado na base, onde se guardam objetos ornamentais ou ainda objetos de louça ou baixelas; aparador
sommier – espécie de divã
Chevette – carro da General Motors que foi lançado no Brasil em 1973 e fabricado até 1993
Arpoador – nome dado a uma praia e a uma formação rochosa no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro
fazer forfait – faltar a um compromisso
bustier – corpete usado pelas mulheres, curto, geralmente sem alças, e que cobre apenas o busto
Regine’s – famosa boate carioca na década de 1970
Eddie Barclay – produtor musical francês, fundador da gravadora Barclay, descobriu nomes como Jacques Brel, Charles Aznavour e Léo Ferré
Grapette – refrigerante com sabor de uva
Jean Sablon – cantor e compositor francês, célebre pelas elegantes interpretações de canções populares
Este samba foi feito logo depois que eu conheci Sonia, com quem me uni em 1982 e contraí núpcias
em 1996. Conheci-a no Morro do Pinto, na época uma comunidade de baixa classe média, muito organizada, originária de um núcleo de imigrantes italianos, à qual sua avó materna pertencia. Ela era diretora de um dos blocos carnavalescos locais. E, para minha surpresa, era formada em francês, sendo fluente na língua de Molière e Charles Aznavour. Nosso primeiro papo misturou samba com literatura africana de expressão francesa, e eu fiquei muito impressionado com isso. Aí resolvi fazer uma letra brincalhona, usando algumas informações
só pra rimar, como, por exemplo, Chichorro
, rima fácil pra morro
. Foi uma homenagem muito amorosa, que recebeu melodia do saudoso maestro Rogério Rossini, parceiro de altas farras, com quem eu trabalhava numa produtora de jingles no centro do Rio.
LP Graça Biot – Coisa Feita (Continental/1983)
CD Nei Lopes – Sincopando o Breque (CPC-UMES/1999)
CD Michel Tasky – Um Malandro em Paris (Independente/2017)
A SELEÇÃO DO SEU MANEL
com Rogério Rossini
Podes crer, podes crer
Seu Manel tomou umas e outras
E cismou que era o Telê
Queria tirar Casagrande
E na camisa 9 colocar Senzala
Por um tigre-de-bengala
No lugar do Leão
Ao invés do Careca
Botou na jogada um cabeludão
E um urubu
Na posição do Falcão
Pra barrar o Marinho
Escalou azul-pavão
Mexendo lá na ponta esquerda
Seu Manel queria convocar o Tato
Juntamente com o Olfato
Paladar e Visão
Para barrar o Sócrates
Ele tentou colocar o Platão
E um japonês
Na posição do Alemão
E no lugar do Branco
Pôs um tremendo negão
Mas o bicho quase pega
Quando Seu Manel passando dos limites
Quis botar o Dinamite
Na nossa seleção
Acendeu o pavio
E acabou provocando uma baita explosão
Arrebentou
A boca do pacotão
Mas no final das contas
O Brasil foi campeão
© Sony/Top Tape
Telê – Telê Santana, técnico da Seleção Brasileira de futebol na Copa de 1986
Casagrande, Leão, Careca, Falcão, Sócrates, Alemão e Branco – jogadores da Seleção Brasileira de futebol na Copa de 1986
Marinho e Tato – jogadores de futebol, fizeram parte da escalação da Seleção Brasileira no período anterior à Copa do Mundo de 1986
Dinamite – Roberto Dinamite, jogador da Seleção Brasileira de futebol nas Copas de 1978 e 1982
Este samba integrou o Projeto Casa Própria
, tentado na Copa de 1986. É uma letra satírica, contando a piada do português
que escalou a seleção confundindo-se com os nomes e apelidos dos jogadores. Pura brincadeira, outra parceria com o saudoso maestro Rogério Rossini, que o que tinha de grande músico, popular quase erudito, tinha também de italiano moleque
e sacana. Rogério foi uma das maiores resistências etílicas que eu conheci. O que se devia, segundo ele, aos quatro rins com que tinha nascido.
LP O Mundo é Verde-Amarelo (Top Tape/1986) – com Nei Lopes
ABENÇALGUEIRO
com Almir Guineto
Foi lá que eu nasci
E me batizei
Lá aprendi
Me diplomei
Salgueiro!
Na fé do meu padrinho São Sebastião
Que cura minha alma e põe meu corpo são
Pego a viola, que alegria!
E me faço rei nesta folia (noite e dia)
Abençalgueiro
Deus te abençoe
És incomparável, me perdoe
Lá na subida da minha vida
Um belo dia um novo sol raiou
Branco e vermelho
Jogo de espelhos
Onde minha poesia se deslumbrou
Academia
Que me arrepia
Meu primeiro verso
Meu primeiro amor
Foi lá que eu nasci
E lá se encerra
O bem maior que Deus botou na terra
© Sony/Peermusic
Em 1958, assisti, na avenida Presidente Vargas, pela primeira vez a um desfile dos Acadêmicos do Salgueiro, escola revolucionária, que me encantou. Embora nascido e criado em Irajá, jurisdição do Império Serrano, e tendo gente da família extensa ligada à Portela, virei salgueirense. Principalmente pela influência de um grande amigo, o falecido Maurício Theodoro, colega de ginásio, na Escola Técnica Visconde de Mauá, que era de lá. Em 1963, pelas mãos do Maurício e do saudoso ogã Gilberto Popó, figura marcante na minha vida (foi quem me levou ao encontro dos Orixás), estreei nos Acadêmicos do Salgueiro e fui campeão no primeiro e grande campeonato da escola: o legendário desfile da Chica da Silva
. Na década de 1980, compositor profissional desde 1972, eu escrevi a letra de Abençalgueiro
– sobre o Morro, que também me fascinava, e a escola, problemática mas adorável – letra que Almir Guineto, que nasceu lá, musicou e gravou. Nela, uma homenagem em código, cifrada, à clef
, ao pai do Almir e do Mestre Louro, Seu Iraci Serra, magnífico violonista da Academia. Ela está no trocadilho da frase "Foi lá que eu nasci e lá se encerra o bem maior que Deus botou na Terra. Nessa letra, o Almir só mudou um verso. Por razões pessoais, onde eu escrevi
quanta emoção, que tempo bom que foi, ele mudou para
és incomparável me perdoe".
LP Almir Guineto – Olhos da Vida (RGE/1988)
CD Dorina – Sambas de Almir (Vieira Records/2003)
AFOXÉ PRA LOGUN
Menino caçador
Flecha no mato bravio
Menino pescador
Pedra no fundo do rio
Coroa reluzente
Todo ouro sobre azul
Menino onipotente
Meio Oxóssi, meio Oxum
Eh, eh, eh, eh...
Quem é que ele é?
Ah, ah, ah, ah
Onde é que ele está?
Axé, menino, axé!
Fara Logun, Fara Logun, Fá
Axé, menino, axé!
Fara Logun, Fara Logun, Fá
Menino, meu amor
Minha mãe, meu pai, meu filho
Toma teu axoxó
Teu onjé de coco e milho
Me dá do teu axé
Que eu te dou teu mulucum
Menino, doce mel
Meio Oxóssi, meio Oxum
© Sony
Oxóssi – orixá ioruba cuja epifania é a caça
Oxum – orixá feminino cuja encarnação no Brasil é a água doce em geral
axé – a força sagrada de cada orixá, que se revigora, no candomblé, com as oferendas dos fiéis e os sacrifícios rituais; saudação votiva de felicidade
Logun – (Logun-Edé) orixá da riqueza e da fartura, filho de Oxum e Oxóssi, deus da guerra e da água, segundo as lendas, vive seis meses nas matas caçando com Oxóssi e seis meses nos rios pescando com Oxum
axoxó – prato de milho vermelho cozido ou inhame, caprichosamente enfeitado com lascas de coco, iguaria predileta deste orixá
onjé – comida, alimento em geral
mulucum – alimento de Oxum, espécie de pasta de feijão fradinho, preparada com tempero e 5 ou 8 ovos cozidos
Na passagem para os anos 1970 me foram revelados os Orixás de meu quadro espiritual, à frente Logun-Edé, entidade complexa e fascinante, que conjuga as naturezas de Oxum e Oxóssi, de quem é filho. E em 1978, definidas algumas pendências, eu alegremente assentava
esse Orixá mistérioso (que é Ele, o Pai e a Mãe) ao mesmo tempo, para poder cultuá-lo condignamente. Energizado pelas fortes e belíssimas emanações d’Ele, resolvi oferecer-lhe uma canção no ritmo de sua nação
, o ijexá, que embala os afoxés baianos. Fiz letra e música e a composição foi gravada por Clara Nunes em seu último disco, de 1982. Engraçado é que eu achava que ia fazer um grande sucesso. Mas quem roubou a cena e me tirou o doce da boca
foi meu amigo Edil Pacheco, grande compositor baiano que no mesmo disco emplacou aquele estrondoso Filhos de Gandhi, Badauê, Ilê Aiê, Malê Dibalê, Otum Obá...
. Coisas do destino... Desde 2016, cultuo Logun-Edé junto com Oxum e sob a guarda de outras divindades que compõem meu quadro espiritual, após minha consagração como sacerdote do culto de Ifá.
LP Clara Nunes – Nação (EMI/1982)
AFROLATINÔ
com Cláudio Jorge
Ai, eu nasci
Na terra do samba de fato
Num país mulato chamado Brasil
Um dia porém me livrei das amarras
Enfrentei a barra e meu barco partiu
Afrolatinô, afrolatino
Afrolatinô, afrolatino
E após navegar por milhares de milhas
No som das Antilhas me desmilingui
Trinidad, Tobago, Bahamas, Aruba
Porto Rico, Cuba, Jamaica e Haiti
E nesses lugares eu vi com espanto
Que tudo era banto, nagô, lucumi
Angola, Cabinda, tudo irmão da gente
Tudo exatamente como tem aqui
© Sony
Antilhas – região do continente americano formada pelo Mar do Caribe, suas ilhas e estados insulares
banto – cada um dos membros da grande família etnolinguística à qual pertenciam, entre outros, os africanos no Brasil chamados angolas, congos, cabindas, benguelas, moçambiques etc. e que engloba inúmeros idiomas falados, hoje, na África Central, Centro-Ocidental, Austral e parte da África Oriental; relativo aos bantos ou às suas línguas
nagô – indivíduo dos nagôs, designação de qualquer africano escravizado, comerciado na antiga Costa dos Escravos e que falava o iorubá; relativo a nagô
lucumi – no espanhol cubano, termo que designa os africanos iorubanos, correspondente ao brasileiro iorubá
ou nagô
Cabinda – província costeira de Angola que é um enclave dentro da República do Congo, ao norte da foz do rio Congo
Para mim, a latinidade é apenas uma questão linguística: não acho que haja nenhuma relação natural de irmandade
entre, por exemplo, um brasileiro e um argentino, ou boliviano, cubano, dominicano etc, pelo simples fato de falarmos, todos, línguas neo-latinas. Isso de dizer nós, os latinos
, para mim, é uma grande bobagem. Agora: a africanidade, sim, é um fator cultural de base étnica extremamente importante. Um indivíduo afrobrasileiro, no meu entender, tem muito mais a ver com um afrocubano, por exemplo, do que com um brasileiro de origem européia ou asiática. Nós, afrodescendentes, em qualquer grau de mestiçagem, somos consequência de um processo histórico-cultural sem precedentes. Há algum tempo tenho em curso a produção de um dicionário de africanismos nas Américas. E isto, para mostrar, através dos vocabulários, a quantidade de palavras semelhantes e de mesma origem africana que circulam ao mesmo tempo no Brasil, na América do Sul, no Caribe, e nos Estados Unidos. Por que isso ocorre? Porque, de um modo geral, os descendentes de africanos em todas essas regiões compartilham origens étnicas comuns, principalmente as localizadas no centro-oeste africano, nos atuais Congo e Angola. Daí, eu ter usado o neologismo afro-latino
, na forma verbal afrolatinô
(de um imaginário verbo afrolatinar
), para mostrar que muito mais que latina
a cultura afrodescendente é afrolatinada
.
LP Elson do Forrogode – Alô Brasil (RGE/1989)
CD Nei Lopes – Zumbi 300 Anos – Canto Banto (Saci/1996)
CD Nei Lopes – Celebração (Carioca Discos/2003)
AGORA É BARRA
com Afonso Machado
Eu não sou água
Como diz aquele samba
Nem sou caçamba
Que a corda leva aonde vai
Não sou cabrito
Que se ferra
Mas não berra nem um ai
Não está de acordo
Vai pra casa do teu pai
Eu já fiz tudo
O que era possível um homem fazer
Te dei guarida, boa vida
O que mais podes querer?
Morar de graça no meu coração
Não vale a pena
A vargem que era grande
Ficou pequena
Diz aí à freguesia
Pra parar com essa marra
O tanque está cheio:
Acabou o recreio
Agora é barra
© Girândola/direto
Vargem Grande, Freguesia, Tanque – bairros da região de Jacarepaguá e Barra da Tijuca
Recreio (dos Bandeirantes) – bairro da Zona Oeste carioca, é um dos mais jovens da cidade, localizado na região administrativa da Barra da Tijuca
Barra (da Tijuca) – bairro nobre na Zona Oeste carioca
Um certo dia, passando pela extensa Avenida das Américas, que liga Santa Cruz à Barra, me dei conta de que depois do Recreio dos Bandeiranntes, popularmente Recreio
, vem a Barra. Aí, a dualidade bem e mal, prazer e sofrimento, alegria e tristeza, crime e castigo veio à minha cabeça. Recreio
é diversão, lazer, entretenimento. Barra
é trabalho pesado, situação incômoda. Dessa dualidade, veio a metáfora que se fez letra de samba, o sujeito da fala dizendo: Chega! Agora, você vai ver o que é bom pra tosse!
Inédita
ÁGUA DE MORINGA
com Wilson Moreira
Encha uma moringa
Co’água de cacimba
Bote na janela
Pr’ela refrescar
De manhã bem cedo
Tome uns quatro dedos
Desça pela goela
Deixe escorregar
Que gosto danado de bom
Tem água de moringa
É que nem o cheiro do chão
Quando uma chuva respinga
É feito café
Com bolo de milho (aberém)
É que nem gosto
De beijo no rosto do meu bem
E pensar que a vida já foi
Feito água de moringa
Hoje nem dá jeito beber
Porque ela amarga na língua
A onça surgiu
Bebeu da cacimba e secou
E, de um bote só
A moringa e o pote espatifou
© Sony
moringa – vaso de barro bojudo e de gargalo estreito usado para acondicionar e conservar fresca a água
cacimba – buraco que se cava até atingir um lençol de água subterrâneo; poço, cisterna
goela – garganta
aberém – bolo de massa de milho ou de arroz, envolto em folhas de bananeira e cozido
Não me lembro bem quando esse samba foi feito, mas sei porque. Ele integra bem a vertente nostálgica da minha obra, voltada para um passado meio real, meio idealizado. Minha casa no Irajá, onde nasci em 1942, era pobrezinha mas tinha um quintalzão, árvores, galinhas – o que consegui recuperar, na década de 1980, com o sítio de Seropédica. O real é que, na casa, num tempo em que lá ninguém tinha geladeira, a gente bebia água de uma talha de barro, que estava (ou parecia estar) sempre fresquinha. A minha parceria com o Wilson nasceu exatamente pela grande possibilidade de visitar esse tipo de ambiente, meio rural e bastante suburbano, que era o dele também, em Realengo, com família do interior fluminense. Então, eu deitei e rolei. E a água de moringa
entra aí, na verdade, como uma metáfora do tempo que nóis era
pobrezinho de marré-de-ci
mas era feliz – ou pensava que era –, porque a consciência política ainda não tinha nascido.
LP Célia – Meu Caro (Pointer/1983)
LP Nei Lopes – Negro Mesmo (Continental/1983)
CD Nei Lopes – Celebração (Carioca Discos/2003)
ÁGUIA DE HAIA
com Luís Filipe de Lima
Saí do baile, rumo de Copacabana
E em pleno Campo de Santana recebi um santo
Quem viu me disse que foi um espanto
Que eu falei coisas meio um tanto ou quanto, sei lá...
Dizem que eu falava discursando
Com sotaque de baiano intelectual
E de repente, sem ter dó nem piedade
Eu entrei na Faculdade de Direito Nacional
Data vênia, Homo sapiens! Dura Lex sed Lex
In natura, causa mortis, habeas corpus cum jontex!
(In extremis, lato sensus, ad libitum, ad hoc,
Libertas quae sera tamen! Delenda est pop-rock!)
Na faculdade, escrevi regras e tratados
Dei lições pro doutorado com muita ciência
Só me chamavam de Vossa Excelência
Me convidaram pra livre-docência, pois é...
Discursei três horas sem dar pausa
Fui doutor honoris causa e quase fui reitor
Porém, no meio dessa história gloriosa
O caboclo Rui Barbosa de mim desincorporou
Ab origine, spiritu tuum! Ex libris, quiproquó!
Revertere ad locum! Olha o teu status quo!
(Vade retro, alter ego! Ite dominus missa est!
Vôte, persona non grata! Modus in rebus, ô peste!)
E eu que já era um mestre consagrado
Fui então chamado de Doutor Bebum
De catedrático eu passei a ser lunático
Um caso psiquiátrico, um alcoólatra comum
Tudo isso culpa de um traçado
Também, fui misturar conhaque com rum
Agora, quando eu passo levo vaia:
Águia de Haia, Rui Barbosa 171!!!
(Vade ônibus! Mutatis mutantes, modus vivendi!
Sacania Vabis! In memoriam, in vino veritas?
Humm... Canabis!!!!!!!!!!!!!!!!)
© Girândola/Fina Flor
Campo de Santana – nome pelo qual é conhecida a Praça da República, logradouro situado no Centro do Rio de Janeiro
livre-docência – uma das titulações do magistério universitário
doutor honoris causa – título honorífico concedido, como homenagem, a pessoa que não possui grau de doutor
, mas que é considerado digno desse título por suas qualidades pessoais (Por ironia do destino, em 2012, Nei Lopes recebeu esse título da congregação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ. E cinco anos depois recebeu outros, concedido pela UFRGS, tendo em 2022 mais dois, aprovados pela UFRJ e pela UERJ)
Rui Barbosa – jurista e político brasileiro (1849-1923), nascido na Bahia, notabilizou-se como grande orador
traçado – mistura alcoólica de aguardente de cana com vermute
171 – indivíduo trapaceiro ou fraudador; o número 171 remete ao artigo do Código Penal que tipifica o crime de estelionato
Na década de 1980, João Nogueira gravava o nosso samba de breque Baile no Elite
. E a gafieira homenageada na letra existe há muito tempo, funcionando até hoje, no mesmo lugar do Centro do Rio: esquina da rua Frei Caneca com a Praça da República, o popular Campo de Santana. A um quarteirão dessa esquina localiza-se o velho prédio da Faculdade Nacional de Direito, onde ingressei gloriosamente em 1962, graças ao bom latim aprendido com os mestres José Carrão e Hélio Alonso, bacharelando-me na turma de 1966. Em Baile no Elite
o personagem narrador acorda decepcionado. Então, anos depois, eu resolvi dar outro final à história. Agora, o protagonista sai do baile e toma a direção da Central do Brasil, com a intenção de ir para Copacabana. Mas está completamente bêbado e acaba entrando na Faculdade de Direito, onde protagoniza a vergonhosa palhaçada descrita na letra. É como diz um colega: Aos piores papéis se prestam aqueles que se dedicam ao feio vício da embriaguez
. No que outro replicava, em latim: Cullus bebedorum dominus non habet
.
CD Nei Lopes – Chutando o Balde (Fina Flor/2009)
CD Breque Moderno – Soraya Ravenle, Marcos Sacramento e Luís Filipe de Lima (Rob Digital/2010)
AGUXÓ
com Tião Neto
Galo cantou, cocorocó!
Sino bateu, mas é breu, noite só
Ainda tem gás no meu fifó
Me chega mais teu aguxó
Escuta lá fora o assobio
Parece até pio de um noitibó
Me chega a me dar arrepio
Esse vento tão frio nesse cafundó
Parece coisa do demônio
Ai meu Santo Antônio de Categiró
Me torce e retorce esse facho
E põe fogo embaixo
Com o aguxó
© Girândola/Perfil Musical
aguxó – o mesmo que oguxó, tocha para acender fogão (termo nagô da Bahia)
fifó – pequeno candeeiro à querosene provido de pavio
noitibó – ave da família dos Caprimulgídeos, comedora de insetos, de hábitos noturnos e cujo bico é fendido até abaixo do olho
cafundó – local muito distante
Santo Antônio de Categiró – santo preto do catolicismo popular brasileiro
facho – archote, tocha de fogo
Este samba nasceu por ideia do saudoso Tião Neto, um dos mais importantes e atuantes contrabaixistas do movimento da bossa nova. Integrante de diversos trios do ambiente das boates onde a bossa nasceu ou se consolidou, principalmente o do pianista Sérgio Mendes. Até o fim da vida de Tom Jobim, foi integrante do trio acompanhante do célebre pianista e compositor. Amigo conquistado no ambiente dos estúdios de gravação, um dia ele me perguntou se eu sabia o que era aguxó
. Quando eu defini o termo pra ele, ele me disse que nem o Dori Caymmi, que era filho de baiano, tinha sabido responder à pergunta. E me disse que tinha um samba sem letra, mas com esse nome. Dispus-me, então, a letrar o samba. Que eu gravei no LP do querido amigo, cantando e tocando pandeiro, como consta da ficha técnica. Tião faleceu em 2001, deixando muita saudade.
LP Tião Neto – Carroussel (Niterói Discos/1992) – part. esp.: Nei Lopes
ALQUIMIAS
com Everson Pessoa
Quando for assim me chama
Que eu tenho o dever de poder desfazer essa trama
Traçar e tecer todo o enredo
E por fim nesse drama
Bolar e escrever o final que a plateia reclama
Quando for assim me liga
Que eu sei como embaracei o fio dessa intriga
Fui eu que usando magia
E alquimias antigas
Queimei e antagonizei duas almas amigas
E como eu assumo e confesso
Os feitiços que faço
Quando for assim
Me chama, me ata e me mata
Dentro dos teus braços
© Girândola/direto
A expressão quando for assim
tem sempre o caráter de uma admoestação, uma repreensão, uma bronca. Quase sempre ela é usada para culpar uma pessoa de não ter seguido um conselho e ter se dado mal por isso. E contém também um quê de reclamação: Você deveria ter feito do jeito que eu falei
, é o que ela também diz, no fundo. Analisando essa expressão, me veio a ideia de uma bronca, que no fundo é uma cantada
, uma exaltação da superioridade do conselheiro
em relação ao rival ou aquele a quem a pessoa amada se deu. Uma superioridade que envolve até poderes mágicos e de alquimias antigas
. Covardia, mesmo! Canalhice, talvez.
Inédita
ALTO ASTRAL
com Afonso Machado
Tenho motivos para estar num alto astral
Mais colorido do que banca de jornal
Com um sorriso iluminado feito altar de catedral
De quem ganhou na Loteria Federal
É que encontrei Maria Helena do Juncal
Uma cachopa com um corpo escultural
Com mais beleza e mais saúde que comida natural
E, ainda por cima, filha de um industrial
A conheci no fim do seu Curso Normal
Noiva de um cara que era da Escola Naval
Mas me dei bem na matinê de um baile no Imperial
Na terça-feira de um saudoso carnaval
Fomos felizes por demais um ano e tal
Que lindas tardes no apê em Marechal!
Até que um dia a calmaria transformou-se em vendaval
Ela casou e foi morar em Portugal
Hoje, entretanto, vi seu nome no jornal
Pedindo ajuda a um consultor sentimental
Ah, quem diria, uma mulher tão sedutora e tão fatal
Solicitando amor pela caixa postal
Me habilitei, mandei retrato e coisa e tal
Deu tudo certo, ela lembrou, foi tão legal
E ainda disse que eu estou cada vez mais cada qual
E é por isso que eu estou num alto astral
© Girândola/direto
cachopa – mulher jovem
Curso Normal – antigo curso de formação de professores do primeiro grau de ensino, outrora exclusivamente feminino
Imperial – referência ao Imperial Basquete Clube, antiga agremiação em Madureira, mesmo bairro da tradicional Escola Normal Carmela Dutra
Marechal (Hermes) – bairro da Zona Norte carioca
cada vez mais cada qual – cada vez melhor, mais bonito, mais bacana
Historinha fictícia nascida mais da reunião de palavras com rimas em al
. Esta letra foi uma tentativa de parceria com o querido Luiz Carlos da Vila que nos deixou sem criar a melodia. Mas o grande bandolinista Afonso Machado tomou a si a responsabilidade. E se saiu muito bem. Em tempo: Maria Helena do Juncal era o nome da personagem central da novela O Direito de Nascer
, do cubano Félix Caignet, estrondoso sucesso da Rádio Nacional na década de 1950.
Inédita
AMOR DE FEVEREIRO
com Reginaldo Bessa
Madrugada de segunda, doce mês de fevereiro
O amor pedindo passagem nas cores do meu Salgueiro
Uma rosa nos cabelos e no rosto uma alegria
Ela veio madrugando no riso claro do dia
Mas o verão deu lugar à chuva triste do inverno
Era amor de carnaval e eu pensei que fosse eterno
A rosa esvaída em sangue ficou pisada no asfalto
O samba-enredo enredou-se num triste partido-alto
O que era doce acabou-se: a quarta-feira a levou
Como testemunha surda, uma lágrima rolou
Respingando de saudade a lapela do meu terno
Era amor de carnaval e eu pensei que fosse eterno
© Warner
samba-enredo – em escolas de samba, o samba composto especialmente para o desfile de carnaval e que relata o enredo apresentado
partido-alto – variedade de samba em que, depois do estribilho, que os cantores vão repetindo a intervalos, cada um dos sambistas improvisa, ou diz de memória, versos alusivos ao tema da música
Num carnaval, eu na ala de compositores do Salgueiro e a bela mulata num bloco alvirrubro da Zona Sul que integrava o enredo (sobre o carnaval carioca) nos encontramos na concentração... O enredo era Eneida, Amor e Fantasia
.
CD Leonardo Bessa – Parece um Sonho (Saladesom Records/2013)
AMOR MALFAZEJO
com Wilson Moreira
Minhas mãos tremendo de paixão
Dolorosa expressão
De uma mente que o amor dilacerava
Um vulcão
Por dentro me queimava
E você, tudo bem, gargalhava
Pondo uma gota de fel no último beijo
Triste beijo de amor malfazejo
Poxa, tudo foi tão cruel
Mas, enfim, existe Deus no céu
Hoje eu vou me levantando
Pouco a pouco me aprumando
Até as samambaias
Que viviam no vaso de barro secaram
De tanta ingratidão
E quase a minha vida se evaporava
No