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Academia de Letras
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E-book1.216 páginas7 horas

Academia de Letras

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Sobre este e-book

A Editora Contracorrente tem a satisfação de anunciar a publicação do livro Academia de Letras, do compositor, escritor, poeta, contista, sambista, pesquisador da cultura afro-brasileira e teatrólogo Nei Lopes. Com organização de Marcus Fernando, esta é a mais nova obra do Selo Dissonante, cujo editor responsável é outro grande músico brasileiro, João Camarero.

Cuidadosamente organizado, o livro cobre toda a produção musical de Nei Lopes, tanto as composições apenas de sua autoria quanto as diversas parcerias. Na mesma página, o leitor terá acesso à letra, a uma espécie de glossário e a comentários e curiosidades do próprio Nei Lopes sobre a composição. Dessa forma, o livro registra em palavras e celebra a obra de uma das figuras mais relevantes da história de nossa música.

Nas palavras do jornalista e crítico musical brasileiro Tárik de Souza, que assina a apresentação do livro, "este portentoso Academia de Letras insere Nei Lopes – em definitivo, se ainda havia dúvidas – entre os maiores compositores brasileiros de todos os tempos. Nessa compilação de sua obra (até aqui), entre inéditas e gravadas, conjugam-se qualidade, quantidade e diversidade estética, atributos reservados a poucos e raros (…). Além de esmiuçar as próprias composições, Nei exercita generosamente os dotes de enciclopedista e abre comportas para um conhecimento mais aprofundado de sua obra e os caminhos percorridos por sua imaginação, estudos e sabedoria na forja de cada tema. Não apenas no campo vasto e pouco desvendado dos povos e culturas africanas e suas palavras transpostas para o uso corrente brasileiro, mas também na geografia dos bairros e logradouros cariocas, cultivando a alma encantadora das ruas (…). Se promove ainda um inventário sobre culinária, vestuário e comportamento e prospecta origens e implicações de cada termo empregado, Academia de Letras fornece, ao mesmo tempo, uma compassada (e nada indulgente) autobiografia do compositor. Acertos e tropeços, desavenças e acolhimentos, e a devoção religiosa que o fez superar percalços como a perda de um filho pequeno (…). Rigoroso na utilização do cinzel de poeta, conjugado ao bisturi do causídico, bacharel em Direito, ele se revela um esgrimista de ironia cortante, mas igualmente apto a comover em remansos de lirismo".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de set. de 2022
ISBN9786553960473
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    Academia de Letras - Nei Lopes

    A CHICA VOLTOU

    com Dauro do Salgueiro

    A Chica que me apreciava

    E eu não sabia

    Um dia foi minha, mas num belo dia

    Se mudou pra fora do país

    Vendeu aquele sala e quarto

    Que tinha em Benfica

    Se meteu num barco e foi pra Martinica

    E me deixou pobre e infeliz

    O caso é que como me disse

    A comadre Surica

    Amor de Chica sempre fica

    E a Chica me baratinou

    Mas ontem, eu quase curado

    Esquecido da Chica

    Numa recaída que quase complica

    Vivi uma cena de filme de horror

    Dona Encrenca, uma arara, com cara

    De jaguatirica

    Me deu bofetão com luva de pelica

    Dizendo: "Se pica

    Que a Chica voltou!"

    Razões que nenhuma razão

    Explica ou justifica

    Me levaram ontem à Praia da Bica

    Pra tomar um chope e comer um siri

    Ao som de um esperto cavaco

    Pandeiro e cuíca

    Naquela harmonia que não se complica:

    Sol-fá-mi-ré-dó, ré-mi-fá-sol-lá-si

    Mas eis que no estrondo do som

    De uma velha fubica

    Com mais decibéis que avião em Cumbica

    Tu sabe quem dela, me vendo, saltou?

    Era ela, chiquita bacana

    Banana nanica

    Replastificada numas três esticas

    Desonrando as cores do nosso Brasil

    Era a Chica, quebrando o barraco,

    Cantando besteira

    Mulher melancia, mulher bananeira

    Meu Deus, que doideira!

    Meu mundo caiu

    © Girândola/direto

    Benfica – bairro da Região Central do Rio de Janeiro que faz fronteira com São Cristóvão e Mangueira

    Martinica – departamento ultramarino insular francês no Caribe

    Surica – nome artístico da grande sambista Iranete Barcelos, a Tia Surica da Portela

    baratinar – fazer perder ou perder a serenidade, a clareza mental, o controle da situação; desnortear(-se)

    Dona Encrenca – antiga referência indefinida à esposa do malandro, notadamente aquela que se souber das malandragens, exige seus direitos

    uma arara – profundamente irritado, a ponto de cometer um desatino

    jaguatirica – mamífero da família dos felídeos, encontrado do sul dos EUA e ao norte da Argentina, do porte de um cão médio, com cerca de 80 cm de comprimento e 11 kg

    picar-se – sair ou fugir; picar a mula

    Praia da Bica – praia localizada na Ilha do Governador, mais precisamente no bairro Jardim Guanabara, na Zona Norte carioca

    fubica – automóvel muito velho e/ou defeituoso

    Cumbica – Aeroporto Internacional de São Paulo, localizado no município de Guarulhos

    estica – cirurgia plástica

    O grande Dauro do Salgueiro, falecido em 2018, era membro da família na qual me casei em primeiras núpcias, antes de me tornar compositor profissional. Era melodista inspirado, sendo autor de ótimos sambas-de-terreiro dos Acadêmicos, escola na qual ingressei aos 20 anos de idade, pouco antes de o conhecer. Sete anos mais velho que eu, quando entrei para a Ala de Compositores da Academia já o tinha como parceiro e referência. Um dos sambas de sua autoria de que sempre gostei é A Chica, que fala de uma mulher, talvez imaginária, que gostava dele sem dizer (A Chica parava na minha e eu não sabia) e só demonstrou seu sentimento quando sentiu ciúme da Maria, a titular no coração do poeta. Por gostar muito desse samba e lamentar não ter sido parceiro em sua criação, um dia resolvi dar continuidade à história. E então me vinguei da Chica, por ela não ter permitido que eu a conhecesse antes do Dauro, quando era bela e faceira. O cenário que escolhi para o reencontro foi a Praia da Bica, na Ilha do Governador. Foi uma rima e uma solução, pois essa praia também um dia já foi gostosa e aprazivel.

    Inédita

    A EPOPEIA DE ZUMBI

    E de repente

    Era um, eram dez, eram milhares

    Sob as asas azuis da liberdade

    Nascia o Estado de Palmares

    Mas não tardou

    E a opressão tentou calar, não conseguiu

    O brado da vida contra a morte

    No primeiro Estado livre do Brasil

    Forjando o ferro de Ogum

    Plantando cana e amendoim

    Dançando seus batucajés

    Pilando milho e aipim

    Fazendo lindos samburás

    Amando e vivendo enfim

    Durante cem anos ou mais

    Palmares viveu assim

    E a luta prosseguia

    Contra a ignorância e a ambição

    Até que surgiu Zumbi

    Nosso Deus, nosso herói, nosso irmão

    Ciente de que nenhum negro ia ser rei

    Enquanto houvesse uma senzala

    Ao invés de receber a liberdade

    Zumbi preferiu conquistá-la

    E depois de mais três anos de guerra

    O punhal da traição varou Zumbi

    Foi a vinte de novembro

    Data pra lembrar e refletir

    E quase trezentos anos depois

    Um brado forte e varonil

    Ainda vem de Pernambuco e Alagoas

    E se espalha pelos céus desse Brasil

    Folga negro de Angola, que ele não vem cá

    Se ele vier, quilombola, pau há de levar

    © Sony

    Zumbi – nome pelo qual passou à História o líder maior da confederação de Palmares, morto a 20 de novembro de 1695, data em que hoje se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra

    Palmares – refúgio de escravos no interior de Pernambuco e Alagoas, dirigido por Zumbi

    Ogum – orixá cultuado nas religiões africanas, corresponde a São Jorge no sincretismo religioso

    batucajé – dança profana ao som de tambores

    samburá – cesto bojudo e de boca estreita, feito de cipó ou taquara, muito usado para carregar iscas e petrechos de pesca, e para recolher o pescado

    senzala – conjunto de alojamentos que, nas antigas fazendas, se destinavam aos escravos

    quilombola – escravo fugido para o quilombo

    Na década de 1970 ainda predominava, nos estudos sobre a escravidão, a ideia de que os africanos bantos – do centro-oeste e do sul do continente – eram inferiores aos do oeste, então referidos como sudaneses. E isto principalmente por conta dos escravizados muçulmanos que compunham este segundo segmento. Os estudos sobre as insurreições desses muçulmanos na Bahia, principalmente a grande revolta de 1835, reforçava ainda mais essa ideia, como se a bravura dos malês em seus combates fosse fato isolado na história da escravidão. Então, aprofundando meus conhecimentos, estudei a história dos quilombos de Palmares e aprendi que os escravizados de lá protagonizaram a maior e mais importante reação por quase 50 anos. Fiquei sabendo que a resistência de Palmares foi liderada por chefes bantos, entre eles Ganga Zumba e Zumbi. E que do contingente de africanos escravizados no Brasil, cerca de dois terços eram bantos, ou seja, a grande maioria, que, no entanto (talvez por estratégia), era mencionada nos livros como gente ignorante e bruta, enquanto sudaneses como os malês – porque liam o Alcorão, o livro de Maomé – seriam todos inteligentes e letrados. Escrevi o livro Bantos, Malês e Identidade Negra com o propósito de desfazer esse equívoco histórico. E esse samba, composto na década de 1980, nasceu também nesse contexto.

    LP Nei Lopes – Negro Mesmo (Continental/1983)

    LP Nei Lopes – Canto Banto (Saci/1995)

    CD Nei Lopes – Celebração (Carioca Discos/2003)

    A HORA DO TOURO

    Lendo um anúncio num famoso matutino

    Quis saber do meu destino e fui direto a um professor

    Que tinha estado bastante recentemente

    Lá nas terras do Oriente com Nabucodonosor

    (Na astrologia e na magia ele se dizia ser doutor)

    Examinando a data do meu nascimento

    Ele previu bom casamento e uma escalada social

    Segundo ele, eu sou do signo de touro

    Que é o signo do ouro, do prazer e coisa e tal

    Signo forte e sendo signo da terra

    Muita coisa boa encerra no plano material

    (Muito conforto e mordomia pra gastar o vil metal)

    Quem é taurino e do segundo decanato

    É artista bom de fato e sempre acerta no que faz

    Mas tem que ter muito cuidado com a garganta

    Mormente quando canta com intenções profissionais

    Sabendo disso, fui em busca do tesouro

    E num programa de calouros resolvi me apresentar

    Com o sucesso que eu faria, certamente

    Choveriam pretendentes querendo me desposar

    E o que eu queria, vou dizer sinceramente

    Era ter uma emergente presidente do meu lar

    (Com uma empregada eficiente pra eu não me preocupar)

    Infelizmente, deu comigo tudo errado

    De manhã tomei gelado e minha garganta pifou

    Não tinha pato no programa de calouros

    Fui gongado por um touro que mugiu e me chifrou

    (Era um miúra, pele escura, pinta de reprodutor)

    Mas, como um touro, sou teimoso e persistente

    E no domingo novamente volto a me candidatar

    Vênus, por certo, vai estar lá na paquera

    Todo o baixo astral já era, vou me reabilitar

    Você vai ver, vai tudo ser satisfatório

    Vou achar no auditório uma de Scórpius pra meu par

    (Ferrão aqui, chifre acolá, mas mesmo assim vou me casar!)

    © Girândola

    matutino – jornal que sai pela manhã

    Nabucodonosor – rei da Babilônia

    vil metal – dinheiro

    decanato – seção de dez graus do zodíaco, correspondente a um terço de cada signo, e que tem astro regente independente do regente do signo

    mormente – sobretudo, principalmente

    miúra – touro bravo, difícil de lidar

    Vênus – deusa do amor

    Lucinha Lins, que, como eu, também batalhava no mundo do jingle, avisou que ia fazer um disco e um show tendo como tema os signos do zodíaco. Não me lembro quem foi o intermediário, mas recebi a encomenda e resolvi falar sobre o meu signo, claro! Num samba de breque, que é uma das vertentes do samba que mais me encantam. E com uma letra que conta uma historinha, como é tradição no estilo. Sempre Sempre Mais, show dirigido por Jorge Fernando, foi um sucesso – teve também uma versão em disco – e trazia no elenco Cláudio Tovar, com quem Lucinha iniciava bem sucedida parceria: são bem casados até hoje.

    * Esta versão da letra é a que foi gravada pelo autor em 1999. A letra gravada por Lucinha Lins em 1982 foi adaptada para o feminino e, portanto, traz algumas pequenas alterações.

    LP Lucinha Lins – Sempre, Sempre Mais (Philips/1982)

    CD Nei Lopes – Sincopando o Breque (CPC-UMES/1999)

    A NETA DE MADAME ROQUEFORT

    com Rogério Rossini

    Madame Roquefort

    Traz cada vez melhor o seu charme burguês

    E já tem quase oitenta e três

    Da Rua do Chichorro

    Foi morar no morro mas fala francês

    Sua garçonnière tem bufê e étagère

    E um lindo sommier

    Só tem filé mignon

    Maionese, champignon

    Champanhe e vinho rosé

    (do bom Chateau Duvalier que é o que tem melhor buquê)

    Lá por volta das sete

    Ela pega o Chevette e vai fazer balé

    De sapatilha de croché

    Depois, no Arpoador

    Com seu maiô de tricô

    Ela não faz forfait

    De bustier com fecho-eclair

    E quando chega a noite

    Ela vai à boate com seu Chevrolet

    Mas quem dirige é o chofer

    E você imagine

    Que nem no Regine’s ela paga couvert

    (É hors-concours na discotèque, opinião de Eddie Barclay)

    Porém na gafieira

    Ela é bem brasileira no modo de ser

    (collant grená, saia godê)

    Comendo croquete

    Tomando Grapette de pé no bufê

    Com seu vestido de plissê

    E quando ouve o trumpete

    Mesmo em fita cassete

    Pega rouge e batom

    Fazendo um charme pro garçom

    Retoca a maquiagem

    Pra manter a boa imagem

    E sai dançando ao som

    De um belo solo de piston

    Numa canção de Jean Sablon

    E a neta de Madame

    Por mais que eu reclame, por sua vez

    Também não fala português

    Seguindo a tradição

    Sua comunicação é no idioma inglês

    (É tudo rap, body-board, CD-rom e CD-player)

    Esse país não é mesmo sério

    Já dizia um bom gaulês!

    © Sony

    Rua do Chichorro – rua localizada no bairro carioca do Catumbi, aberta no século XIX pelo desembargador Chichorro da Gama

    garçonnière – casa ou pequeno apartamento particular alugado ou possuído por um homem, destinado a encontros amorosos

    bufê – espécie de aparador ou de armário usado na sala de jantar e sobre o qual pode estar o serviço de mesa das refeições

    étagère – espécie de estante de prateleiras abertas e sem portas, às vezes com um gabinete fechado na base, onde se guardam objetos ornamentais ou ainda objetos de louça ou baixelas; aparador

    sommier – espécie de divã

    Chevette – carro da General Motors que foi lançado no Brasil em 1973 e fabricado até 1993

    Arpoador – nome dado a uma praia e a uma formação rochosa no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro

    fazer forfait – faltar a um compromisso

    bustier – corpete usado pelas mulheres, curto, geralmente sem alças, e que cobre apenas o busto

    Regine’s – famosa boate carioca na década de 1970

    Eddie Barclay – produtor musical francês, fundador da gravadora Barclay, descobriu nomes como Jacques Brel, Charles Aznavour e Léo Ferré

    Grapette – refrigerante com sabor de uva

    Jean Sablon – cantor e compositor francês, célebre pelas elegantes interpretações de canções populares

    Este samba foi feito logo depois que eu conheci Sonia, com quem me uni em 1982 e contraí núpcias em 1996. Conheci-a no Morro do Pinto, na época uma comunidade de baixa classe média, muito organizada, originária de um núcleo de imigrantes italianos, à qual sua avó materna pertencia. Ela era diretora de um dos blocos carnavalescos locais. E, para minha surpresa, era formada em francês, sendo fluente na língua de Molière e Charles Aznavour. Nosso primeiro papo misturou samba com literatura africana de expressão francesa, e eu fiquei muito impressionado com isso. Aí resolvi fazer uma letra brincalhona, usando algumas informações só pra rimar, como, por exemplo, Chichorro, rima fácil pra morro. Foi uma homenagem muito amorosa, que recebeu melodia do saudoso maestro Rogério Rossini, parceiro de altas farras, com quem eu trabalhava numa produtora de jingles no centro do Rio.

    LP Graça Biot – Coisa Feita (Continental/1983)

    CD Nei Lopes – Sincopando o Breque (CPC-UMES/1999)

    CD Michel Tasky – Um Malandro em Paris (Independente/2017)

    A SELEÇÃO DO SEU MANEL

    com Rogério Rossini

    Podes crer, podes crer

    Seu Manel tomou umas e outras

    E cismou que era o Telê

    Queria tirar Casagrande

    E na camisa 9 colocar Senzala

    Por um tigre-de-bengala

    No lugar do Leão

    Ao invés do Careca

    Botou na jogada um cabeludão

    E um urubu

    Na posição do Falcão

    Pra barrar o Marinho

    Escalou azul-pavão

    Mexendo lá na ponta esquerda

    Seu Manel queria convocar o Tato

    Juntamente com o Olfato

    Paladar e Visão

    Para barrar o Sócrates

    Ele tentou colocar o Platão

    E um japonês

    Na posição do Alemão

    E no lugar do Branco

    Pôs um tremendo negão

    Mas o bicho quase pega

    Quando Seu Manel passando dos limites

    Quis botar o Dinamite

    Na nossa seleção

    Acendeu o pavio

    E acabou provocando uma baita explosão

    Arrebentou

    A boca do pacotão

    Mas no final das contas

    O Brasil foi campeão

    © Sony/Top Tape

    Telê – Telê Santana, técnico da Seleção Brasileira de futebol na Copa de 1986

    Casagrande, Leão, Careca, Falcão, Sócrates, Alemão e Branco – jogadores da Seleção Brasileira de futebol na Copa de 1986

    Marinho e Tato – jogadores de futebol, fizeram parte da escalação da Seleção Brasileira no período anterior à Copa do Mundo de 1986

    Dinamite – Roberto Dinamite, jogador da Seleção Brasileira de futebol nas Copas de 1978 e 1982

    Este samba integrou o Projeto Casa Própria, tentado na Copa de 1986. É uma letra satírica, contando a piada do português que escalou a seleção confundindo-se com os nomes e apelidos dos jogadores. Pura brincadeira, outra parceria com o saudoso maestro Rogério Rossini, que o que tinha de grande músico, popular quase erudito, tinha também de italiano moleque e sacana. Rogério foi uma das maiores resistências etílicas que eu conheci. O que se devia, segundo ele, aos quatro rins com que tinha nascido.

    LP O Mundo é Verde-Amarelo (Top Tape/1986) – com Nei Lopes

    ABENÇALGUEIRO

    com Almir Guineto

    Foi lá que eu nasci

    E me batizei

    Lá aprendi

    Me diplomei

    Salgueiro!

    Na fé do meu padrinho São Sebastião

    Que cura minha alma e põe meu corpo são

    Pego a viola, que alegria!

    E me faço rei nesta folia (noite e dia)

    Abençalgueiro

    Deus te abençoe

    És incomparável, me perdoe

    Lá na subida da minha vida

    Um belo dia um novo sol raiou

    Branco e vermelho

    Jogo de espelhos

    Onde minha poesia se deslumbrou

    Academia

    Que me arrepia

    Meu primeiro verso

    Meu primeiro amor

    Foi lá que eu nasci

    E lá se encerra

    O bem maior que Deus botou na terra

    © Sony/Peermusic

    Em 1958, assisti, na avenida Presidente Vargas, pela primeira vez a um desfile dos Acadêmicos do Salgueiro, escola revolucionária, que me encantou. Embora nascido e criado em Irajá, jurisdição do Império Serrano, e tendo gente da família extensa ligada à Portela, virei salgueirense. Principalmente pela influência de um grande amigo, o falecido Maurício Theodoro, colega de ginásio, na Escola Técnica Visconde de Mauá, que era de lá. Em 1963, pelas mãos do Maurício e do saudoso ogã Gilberto Popó, figura marcante na minha vida (foi quem me levou ao encontro dos Orixás), estreei nos Acadêmicos do Salgueiro e fui campeão no primeiro e grande campeonato da escola: o legendário desfile da Chica da Silva. Na década de 1980, compositor profissional desde 1972, eu escrevi a letra de Abençalgueiro – sobre o Morro, que também me fascinava, e a escola, problemática mas adorável – letra que Almir Guineto, que nasceu lá, musicou e gravou. Nela, uma homenagem em código, cifrada, à clef, ao pai do Almir e do Mestre Louro, Seu Iraci Serra, magnífico violonista da Academia. Ela está no trocadilho da frase "Foi lá que eu nasci e lá se encerra o bem maior que Deus botou na Terra. Nessa letra, o Almir só mudou um verso. Por razões pessoais, onde eu escrevi quanta emoção, que tempo bom que foi, ele mudou para és incomparável me perdoe".

    LP Almir Guineto – Olhos da Vida (RGE/1988)

    CD Dorina – Sambas de Almir (Vieira Records/2003)

    AFOXÉ PRA LOGUN

    Menino caçador

    Flecha no mato bravio

    Menino pescador

    Pedra no fundo do rio

    Coroa reluzente

    Todo ouro sobre azul

    Menino onipotente

    Meio Oxóssi, meio Oxum

    Eh, eh, eh, eh...

    Quem é que ele é?

    Ah, ah, ah, ah

    Onde é que ele está?

    Axé, menino, axé!

    Fara Logun, Fara Logun, Fá

    Axé, menino, axé!

    Fara Logun, Fara Logun, Fá

    Menino, meu amor

    Minha mãe, meu pai, meu filho

    Toma teu axoxó

    Teu onjé de coco e milho

    Me dá do teu axé

    Que eu te dou teu mulucum

    Menino, doce mel

    Meio Oxóssi, meio Oxum

    © Sony

    Oxóssi – orixá ioruba cuja epifania é a caça

    Oxum – orixá feminino cuja encarnação no Brasil é a água doce em geral

    axé – a força sagrada de cada orixá, que se revigora, no candomblé, com as oferendas dos fiéis e os sacrifícios rituais; saudação votiva de felicidade

    Logun – (Logun-Edé) orixá da riqueza e da fartura, filho de Oxum e Oxóssi, deus da guerra e da água, segundo as lendas, vive seis meses nas matas caçando com Oxóssi e seis meses nos rios pescando com Oxum

    axoxó – prato de milho vermelho cozido ou inhame, caprichosamente enfeitado com lascas de coco, iguaria predileta deste orixá

    onjé – comida, alimento em geral

    mulucum – alimento de Oxum, espécie de pasta de feijão fradinho, preparada com tempero e 5 ou 8 ovos cozidos

    Na passagem para os anos 1970 me foram revelados os Orixás de meu quadro espiritual, à frente Logun-Edé, entidade complexa e fascinante, que conjuga as naturezas de Oxum e Oxóssi, de quem é filho. E em 1978, definidas algumas pendências, eu alegremente assentava esse Orixá mistérioso (que é Ele, o Pai e a Mãe) ao mesmo tempo, para poder cultuá-lo condignamente. Energizado pelas fortes e belíssimas emanações d’Ele, resolvi oferecer-lhe uma canção no ritmo de sua nação, o ijexá, que embala os afoxés baianos. Fiz letra e música e a composição foi gravada por Clara Nunes em seu último disco, de 1982. Engraçado é que eu achava que ia fazer um grande sucesso. Mas quem roubou a cena e me tirou o doce da boca foi meu amigo Edil Pacheco, grande compositor baiano que no mesmo disco emplacou aquele estrondoso Filhos de Gandhi, Badauê, Ilê Aiê, Malê Dibalê, Otum Obá.... Coisas do destino... Desde 2016, cultuo Logun-Edé junto com Oxum e sob a guarda de outras divindades que compõem meu quadro espiritual, após minha consagração como sacerdote do culto de Ifá.

    LP Clara Nunes – Nação (EMI/1982)

    AFROLATINÔ

    com Cláudio Jorge

    Ai, eu nasci

    Na terra do samba de fato

    Num país mulato chamado Brasil

    Um dia porém me livrei das amarras

    Enfrentei a barra e meu barco partiu

    Afrolatinô, afrolatino

    Afrolatinô, afrolatino

    E após navegar por milhares de milhas

    No som das Antilhas me desmilingui

    Trinidad, Tobago, Bahamas, Aruba

    Porto Rico, Cuba, Jamaica e Haiti

    E nesses lugares eu vi com espanto

    Que tudo era banto, nagô, lucumi

    Angola, Cabinda, tudo irmão da gente

    Tudo exatamente como tem aqui

    © Sony

    Antilhas – região do continente americano formada pelo Mar do Caribe, suas ilhas e estados insulares

    banto – cada um dos membros da grande família etnolinguística à qual pertenciam, entre outros, os africanos no Brasil chamados angolas, congos, cabindas, benguelas, moçambiques etc. e que engloba inúmeros idiomas falados, hoje, na África Central, Centro-Ocidental, Austral e parte da África Oriental; relativo aos bantos ou às suas línguas

    nagô – indivíduo dos nagôs, designação de qualquer africano escravizado, comerciado na antiga Costa dos Escravos e que falava o iorubá; relativo a nagô

    lucumi – no espanhol cubano, termo que designa os africanos iorubanos, correspondente ao brasileiro iorubá ou nagô

    Cabinda – província costeira de Angola que é um enclave dentro da República do Congo, ao norte da foz do rio Congo

    Para mim, a latinidade é apenas uma questão linguística: não acho que haja nenhuma relação natural de irmandade entre, por exemplo, um brasileiro e um argentino, ou boliviano, cubano, dominicano etc, pelo simples fato de falarmos, todos, línguas neo-latinas. Isso de dizer nós, os latinos, para mim, é uma grande bobagem. Agora: a africanidade, sim, é um fator cultural de base étnica extremamente importante. Um indivíduo afrobrasileiro, no meu entender, tem muito mais a ver com um afrocubano, por exemplo, do que com um brasileiro de origem européia ou asiática. Nós, afrodescendentes, em qualquer grau de mestiçagem, somos consequência de um processo histórico-cultural sem precedentes. Há algum tempo tenho em curso a produção de um dicionário de africanismos nas Américas. E isto, para mostrar, através dos vocabulários, a quantidade de palavras semelhantes e de mesma origem africana que circulam ao mesmo tempo no Brasil, na América do Sul, no Caribe, e nos Estados Unidos. Por que isso ocorre? Porque, de um modo geral, os descendentes de africanos em todas essas regiões compartilham origens étnicas comuns, principalmente as localizadas no centro-oeste africano, nos atuais Congo e Angola. Daí, eu ter usado o neologismo afro-latino, na forma verbal afrolatinô (de um imaginário verbo afrolatinar), para mostrar que muito mais que latina a cultura afrodescendente é afrolatinada.

    LP Elson do Forrogode – Alô Brasil (RGE/1989)

    CD Nei Lopes – Zumbi 300 Anos – Canto Banto (Saci/1996)

    CD Nei Lopes – Celebração (Carioca Discos/2003)

    AGORA É BARRA

    com Afonso Machado

    Eu não sou água

    Como diz aquele samba

    Nem sou caçamba

    Que a corda leva aonde vai

    Não sou cabrito

    Que se ferra

    Mas não berra nem um ai

    Não está de acordo

    Vai pra casa do teu pai

    Eu já fiz tudo

    O que era possível um homem fazer

    Te dei guarida, boa vida

    O que mais podes querer?

    Morar de graça no meu coração

    Não vale a pena

    A vargem que era grande

    Ficou pequena

    Diz aí à freguesia

    Pra parar com essa marra

    O tanque está cheio:

    Acabou o recreio

    Agora é barra

    © Girândola/direto

    Vargem Grande, Freguesia, Tanque – bairros da região de Jacarepaguá e Barra da Tijuca

    Recreio (dos Bandeirantes) – bairro da Zona Oeste carioca, é um dos mais jovens da cidade, localizado na região administrativa da Barra da Tijuca

    Barra (da Tijuca) – bairro nobre na Zona Oeste carioca

    Um certo dia, passando pela extensa Avenida das Américas, que liga Santa Cruz à Barra, me dei conta de que depois do Recreio dos Bandeiranntes, popularmente Recreio, vem a Barra. Aí, a dualidade bem e mal, prazer e sofrimento, alegria e tristeza, crime e castigo veio à minha cabeça. Recreio é diversão, lazer, entretenimento. Barra é trabalho pesado, situação incômoda. Dessa dualidade, veio a metáfora que se fez letra de samba, o sujeito da fala dizendo: Chega! Agora, você vai ver o que é bom pra tosse!

    Inédita

    ÁGUA DE MORINGA

    com Wilson Moreira

    Encha uma moringa

    Co’água de cacimba

    Bote na janela

    Pr’ela refrescar

    De manhã bem cedo

    Tome uns quatro dedos

    Desça pela goela

    Deixe escorregar

    Que gosto danado de bom

    Tem água de moringa

    É que nem o cheiro do chão

    Quando uma chuva respinga

    É feito café

    Com bolo de milho (aberém)

    É que nem gosto

    De beijo no rosto do meu bem

    E pensar que a vida já foi

    Feito água de moringa

    Hoje nem dá jeito beber

    Porque ela amarga na língua

    A onça surgiu

    Bebeu da cacimba e secou

    E, de um bote só

    A moringa e o pote espatifou

    © Sony

    moringa – vaso de barro bojudo e de gargalo estreito usado para acondicionar e conservar fresca a água

    cacimba – buraco que se cava até atingir um lençol de água subterrâneo; poço, cisterna

    goela – garganta

    aberém – bolo de massa de milho ou de arroz, envolto em folhas de bananeira e cozido

    Não me lembro bem quando esse samba foi feito, mas sei porque. Ele integra bem a vertente nostálgica da minha obra, voltada para um passado meio real, meio idealizado. Minha casa no Irajá, onde nasci em 1942, era pobrezinha mas tinha um quintalzão, árvores, galinhas – o que consegui recuperar, na década de 1980, com o sítio de Seropédica. O real é que, na casa, num tempo em que lá ninguém tinha geladeira, a gente bebia água de uma talha de barro, que estava (ou parecia estar) sempre fresquinha. A minha parceria com o Wilson nasceu exatamente pela grande possibilidade de visitar esse tipo de ambiente, meio rural e bastante suburbano, que era o dele também, em Realengo, com família do interior fluminense. Então, eu deitei e rolei. E a água de moringa entra aí, na verdade, como uma metáfora do tempo que nóis era pobrezinho de marré-de-ci mas era feliz – ou pensava que era –, porque a consciência política ainda não tinha nascido.

    LP Célia – Meu Caro (Pointer/1983)

    LP Nei Lopes – Negro Mesmo (Continental/1983)

    CD Nei Lopes – Celebração (Carioca Discos/2003)

    ÁGUIA DE HAIA

    com Luís Filipe de Lima

    Saí do baile, rumo de Copacabana

    E em pleno Campo de Santana recebi um santo

    Quem viu me disse que foi um espanto

    Que eu falei coisas meio um tanto ou quanto, sei lá...

    Dizem que eu falava discursando

    Com sotaque de baiano intelectual

    E de repente, sem ter dó nem piedade

    Eu entrei na Faculdade de Direito Nacional

    Data vênia, Homo sapiens! Dura Lex sed Lex

    In natura, causa mortis, habeas corpus cum jontex!

    (In extremis, lato sensus, ad libitum, ad hoc,

    Libertas quae sera tamen! Delenda est pop-rock!)

    Na faculdade, escrevi regras e tratados

    Dei lições pro doutorado com muita ciência

    Só me chamavam de Vossa Excelência

    Me convidaram pra livre-docência, pois é...

    Discursei três horas sem dar pausa

    Fui doutor honoris causa e quase fui reitor

    Porém, no meio dessa história gloriosa

    O caboclo Rui Barbosa de mim desincorporou

    Ab origine, spiritu tuum! Ex libris, quiproquó!

    Revertere ad locum! Olha o teu status quo!

    (Vade retro, alter ego! Ite dominus missa est!

    Vôte, persona non grata! Modus in rebus, ô peste!)

    E eu que já era um mestre consagrado

    Fui então chamado de Doutor Bebum

    De catedrático eu passei a ser lunático

    Um caso psiquiátrico, um alcoólatra comum

    Tudo isso culpa de um traçado

    Também, fui misturar conhaque com rum

    Agora, quando eu passo levo vaia:

    Águia de Haia, Rui Barbosa 171!!!

    (Vade ônibus! Mutatis mutantes, modus vivendi!

    Sacania Vabis! In memoriam, in vino veritas?

    Humm... Canabis!!!!!!!!!!!!!!!!)

    © Girândola/Fina Flor

    Campo de Santana – nome pelo qual é conhecida a Praça da República, logradouro situado no Centro do Rio de Janeiro

    livre-docência – uma das titulações do magistério universitário

    doutor honoris causa – título honorífico concedido, como homenagem, a pessoa que não possui grau de doutor, mas que é considerado digno desse título por suas qualidades pessoais (Por ironia do destino, em 2012, Nei Lopes recebeu esse título da congregação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ. E cinco anos depois recebeu outros, concedido pela UFRGS, tendo em 2022 mais dois, aprovados pela UFRJ e pela UERJ)

    Rui Barbosa – jurista e político brasileiro (1849-1923), nascido na Bahia, notabilizou-se como grande orador

    traçado – mistura alcoólica de aguardente de cana com vermute

    171 – indivíduo trapaceiro ou fraudador; o número 171 remete ao artigo do Código Penal que tipifica o crime de estelionato

    Na década de 1980, João Nogueira gravava o nosso samba de breque Baile no Elite. E a gafieira homenageada na letra existe há muito tempo, funcionando até hoje, no mesmo lugar do Centro do Rio: esquina da rua Frei Caneca com a Praça da República, o popular Campo de Santana. A um quarteirão dessa esquina localiza-se o velho prédio da Faculdade Nacional de Direito, onde ingressei gloriosamente em 1962, graças ao bom latim aprendido com os mestres José Carrão e Hélio Alonso, bacharelando-me na turma de 1966. Em Baile no Elite o personagem narrador acorda decepcionado. Então, anos depois, eu resolvi dar outro final à história. Agora, o protagonista sai do baile e toma a direção da Central do Brasil, com a intenção de ir para Copacabana. Mas está completamente bêbado e acaba entrando na Faculdade de Direito, onde protagoniza a vergonhosa palhaçada descrita na letra. É como diz um colega: Aos piores papéis se prestam aqueles que se dedicam ao feio vício da embriaguez. No que outro replicava, em latim: Cullus bebedorum dominus non habet.

    CD Nei Lopes – Chutando o Balde (Fina Flor/2009)

    CD Breque Moderno – Soraya Ravenle, Marcos Sacramento e Luís Filipe de Lima (Rob Digital/2010)

    AGUXÓ

    com Tião Neto

    Galo cantou, cocorocó!

    Sino bateu, mas é breu, noite só

    Ainda tem gás no meu fifó

    Me chega mais teu aguxó

    Escuta lá fora o assobio

    Parece até pio de um noitibó

    Me chega a me dar arrepio

    Esse vento tão frio nesse cafundó

    Parece coisa do demônio

    Ai meu Santo Antônio de Categiró

    Me torce e retorce esse facho

    E põe fogo embaixo

    Com o aguxó

    © Girândola/Perfil Musical

    aguxó – o mesmo que oguxó, tocha para acender fogão (termo nagô da Bahia)

    fifó – pequeno candeeiro à querosene provido de pavio

    noitibó – ave da família dos Caprimulgídeos, comedora de insetos, de hábitos noturnos e cujo bico é fendido até abaixo do olho

    cafundó – local muito distante

    Santo Antônio de Categiró – santo preto do catolicismo popular brasileiro

    facho – archote, tocha de fogo

    Este samba nasceu por ideia do saudoso Tião Neto, um dos mais importantes e atuantes contrabaixistas do movimento da bossa nova. Integrante de diversos trios do ambiente das boates onde a bossa nasceu ou se consolidou, principalmente o do pianista Sérgio Mendes. Até o fim da vida de Tom Jobim, foi integrante do trio acompanhante do célebre pianista e compositor. Amigo conquistado no ambiente dos estúdios de gravação, um dia ele me perguntou se eu sabia o que era aguxó. Quando eu defini o termo pra ele, ele me disse que nem o Dori Caymmi, que era filho de baiano, tinha sabido responder à pergunta. E me disse que tinha um samba sem letra, mas com esse nome. Dispus-me, então, a letrar o samba. Que eu gravei no LP do querido amigo, cantando e tocando pandeiro, como consta da ficha técnica. Tião faleceu em 2001, deixando muita saudade.

    LP Tião Neto – Carroussel (Niterói Discos/1992) – part. esp.: Nei Lopes

    ALQUIMIAS

    com Everson Pessoa

    Quando for assim me chama

    Que eu tenho o dever de poder desfazer essa trama

    Traçar e tecer todo o enredo

    E por fim nesse drama

    Bolar e escrever o final que a plateia reclama

    Quando for assim me liga

    Que eu sei como embaracei o fio dessa intriga

    Fui eu que usando magia

    E alquimias antigas

    Queimei e antagonizei duas almas amigas

    E como eu assumo e confesso

    Os feitiços que faço

    Quando for assim

    Me chama, me ata e me mata

    Dentro dos teus braços

    © Girândola/direto

    A expressão quando for assim tem sempre o caráter de uma admoestação, uma repreensão, uma bronca. Quase sempre ela é usada para culpar uma pessoa de não ter seguido um conselho e ter se dado mal por isso. E contém também um quê de reclamação: Você deveria ter feito do jeito que eu falei, é o que ela também diz, no fundo. Analisando essa expressão, me veio a ideia de uma bronca, que no fundo é uma cantada, uma exaltação da superioridade do conselheiro em relação ao rival ou aquele a quem a pessoa amada se deu. Uma superioridade que envolve até poderes mágicos e de alquimias antigas. Covardia, mesmo! Canalhice, talvez.

    Inédita

    ALTO ASTRAL

    com Afonso Machado

    Tenho motivos para estar num alto astral

    Mais colorido do que banca de jornal

    Com um sorriso iluminado feito altar de catedral

    De quem ganhou na Loteria Federal

    É que encontrei Maria Helena do Juncal

    Uma cachopa com um corpo escultural

    Com mais beleza e mais saúde que comida natural

    E, ainda por cima, filha de um industrial

    A conheci no fim do seu Curso Normal

    Noiva de um cara que era da Escola Naval

    Mas me dei bem na matinê de um baile no Imperial

    Na terça-feira de um saudoso carnaval

    Fomos felizes por demais um ano e tal

    Que lindas tardes no apê em Marechal!

    Até que um dia a calmaria transformou-se em vendaval

    Ela casou e foi morar em Portugal

    Hoje, entretanto, vi seu nome no jornal

    Pedindo ajuda a um consultor sentimental

    Ah, quem diria, uma mulher tão sedutora e tão fatal

    Solicitando amor pela caixa postal

    Me habilitei, mandei retrato e coisa e tal

    Deu tudo certo, ela lembrou, foi tão legal

    E ainda disse que eu estou cada vez mais cada qual

    E é por isso que eu estou num alto astral

    © Girândola/direto

    cachopa – mulher jovem

    Curso Normal – antigo curso de formação de professores do primeiro grau de ensino, outrora exclusivamente feminino

    Imperial – referência ao Imperial Basquete Clube, antiga agremiação em Madureira, mesmo bairro da tradicional Escola Normal Carmela Dutra

    Marechal (Hermes) – bairro da Zona Norte carioca

    cada vez mais cada qual – cada vez melhor, mais bonito, mais bacana

    Historinha fictícia nascida mais da reunião de palavras com rimas em al. Esta letra foi uma tentativa de parceria com o querido Luiz Carlos da Vila que nos deixou sem criar a melodia. Mas o grande bandolinista Afonso Machado tomou a si a responsabilidade. E se saiu muito bem. Em tempo: Maria Helena do Juncal era o nome da personagem central da novela O Direito de Nascer, do cubano Félix Caignet, estrondoso sucesso da Rádio Nacional na década de 1950.

    Inédita

    AMOR DE FEVEREIRO

    com Reginaldo Bessa

    Madrugada de segunda, doce mês de fevereiro

    O amor pedindo passagem nas cores do meu Salgueiro

    Uma rosa nos cabelos e no rosto uma alegria

    Ela veio madrugando no riso claro do dia

    Mas o verão deu lugar à chuva triste do inverno

    Era amor de carnaval e eu pensei que fosse eterno

    A rosa esvaída em sangue ficou pisada no asfalto

    O samba-enredo enredou-se num triste partido-alto

    O que era doce acabou-se: a quarta-feira a levou

    Como testemunha surda, uma lágrima rolou

    Respingando de saudade a lapela do meu terno

    Era amor de carnaval e eu pensei que fosse eterno

    © Warner

    samba-enredo – em escolas de samba, o samba composto especialmente para o desfile de carnaval e que relata o enredo apresentado

    partido-alto – variedade de samba em que, depois do estribilho, que os cantores vão repetindo a intervalos, cada um dos sambistas improvisa, ou diz de memória, versos alusivos ao tema da música

    Num carnaval, eu na ala de compositores do Salgueiro e a bela mulata num bloco alvirrubro da Zona Sul que integrava o enredo (sobre o carnaval carioca) nos encontramos na concentração... O enredo era Eneida, Amor e Fantasia.

    CD Leonardo Bessa – Parece um Sonho (Saladesom Records/2013)

    AMOR MALFAZEJO

    com Wilson Moreira

    Minhas mãos tremendo de paixão

    Dolorosa expressão

    De uma mente que o amor dilacerava

    Um vulcão

    Por dentro me queimava

    E você, tudo bem, gargalhava

    Pondo uma gota de fel no último beijo

    Triste beijo de amor malfazejo

    Poxa, tudo foi tão cruel

    Mas, enfim, existe Deus no céu

    Hoje eu vou me levantando

    Pouco a pouco me aprumando

    Até as samambaias

    Que viviam no vaso de barro secaram

    De tanta ingratidão

    E quase a minha vida se evaporava

    No

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