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Balança que o Samba é uma Herança: Sambistas, Mercado Fonográfico, Debates Culturais e Racismo nas Décadas de 1960 a 1980
Balança que o Samba é uma Herança: Sambistas, Mercado Fonográfico, Debates Culturais e Racismo nas Décadas de 1960 a 1980
Balança que o Samba é uma Herança: Sambistas, Mercado Fonográfico, Debates Culturais e Racismo nas Décadas de 1960 a 1980
E-book388 páginas5 horas

Balança que o Samba é uma Herança: Sambistas, Mercado Fonográfico, Debates Culturais e Racismo nas Décadas de 1960 a 1980

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Sobre este e-book

Este livro se destina a todos que se interessam pela história do samba, do mercado fonográfico brasileiro e por questões sobre racismo e a importância e contribuição dos negros para a cultura e história brasileira.
Como um grupo de sambistas reagiu após perceber o risco de suas criações serem reduzidas a um mero produto desvinculado de suas ligações simbólicas com a oralidade e a tradição? Eles se incomodaram com a perspectiva de perderem a capacidade de definir as instâncias e parâmetros de legitimidade, abrindo brechas para que suas criações fossem convertidas em objetos de consumo cujo valor e significado fossem definidos de fora pra dentro. Por isso, eles não ficaram apáticos. Buscaram formas de reagir e conciliar as oportunidades que o mercado fonográfico oferecia com a defesa de ideais de tradição e de uma memória associada às suas identidades, entrando nos debates culturais que permeavam o Brasil.
Que estratégias esses sambistas utilizaram para expor e defender suas opiniões? Quem eram esses sambistas? Quais elementos das trajetórias pessoais e artísticas podemos destacar? Como foi a relação com as escolas de samba? Como se aproximaram e lidaram com o mercado fonográfico? Que posicionamentos sobre a condição do sambista e do negro na história e na sociedade brasileira defenderam? De que modo o racismo estrutural da sociedade brasileira atuou sobre suas trajetórias? São perguntas como essas que procuro responder neste livro.
A obra funciona como uma introdução à história do samba, na medida em que analiso temas como significados culturais desse gênero musical e abordo, entre outras questões, o apagamento de negros e mulheres na história do samba, as ligações de sambistas com as escolas de samba, as mudanças pelas quais o mercado fonográfico brasileiro passou, a partir da década de 1960, o surgimento do pagode e analiso uma série de intervenções de sambistas feitas por meio de canções, discos, livros, documentários, entrevistas e depoimentos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de out. de 2022
ISBN9786525027333
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    Balança que o Samba é uma Herança - Lellison de Abreu Souza

    Balança que o samba é uma herança

    sambistas, mercado fonográfico, debates culturais

    e racismo nas décadas de 1960 a 1980

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2022 do autor

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis n.os 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

    Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    Lellison de Abreu Souza

    Balança que o samba é uma herança

    sambistas, mercado fonográfico, debates culturais

    e racismo nas décadas de 1960 a 1980

    Para Maria do Socorro Araújo, minha avó materna, que apareceu em meus sonhos com boas notícias. Para Umberto Vassena, meu amigo que viveu quase um século e não poderá ler este livro. Para minha prima Geane Elisa de Abreu, mais uma vítima da pandemia do coronavírus. Para meu primogênito Emílio, que já nascerá dono de uma biblioteca.

    AGRADECIMENTOS

    Este livro é o resultado de uma jornada de alguns anos. O longo período prévio de pesquisas e a experiência de escrevê-lo foram menos solitários graças à presença e estímulo de algumas amadas pessoas, a quem agradeço em seguida.

    À minha esposa, Carolina, por ser uma fonte constante de incentivo durante os obstáculos enfrentados desde quando a ideia deste livro começou a tomar forma. Não foram poucos. Posso citar entre alguns dos obstáculos, uma fratura no pé direito, uma demissão em 2018, as cinco intervenções cirúrgicas que enfrentei entre o fim de 2019 e o começo de 2020, outros variados problemas de saúde, burocracias diversas, uma invasão ao nosso apartamento e uma pandemia que ainda está em curso enquanto escrevo estas palavras em abril de 2022.

    À minha mãe, Gilcelane, que fez todo o esforço possível para me criar bem e inculcar em mim o gosto pelos estudos e pela leitura, só me deixando ir brincar na rua após eu fazer o dever de casa. Seu esforço valeu a pena.

    Ao meu amigo e sogro, Oswaldo, pois as incontáveis horas conversando e ouvindo música juntos ajudaram a abrir caminhos e levantar questões. De certo modo, tentei responder aqui coisas sobre as quais conversamos ao longo dos anos; à Tânia e à Denise, minhas duas sogras. À Tânia, mãe de Carolina, pelo carinho, por sempre valorizar minhas conquistas e por lembrar-se do que eu estudava em cada viagem; à Denise pelo incentivo constante, pelas dicas, pelas piadas que ajudavam a distrair e pela hospitalidade.

    Na Universidade de Brasília (UnB), agradeço ao professor Anderson Ribeiro Oliva, meu orientador no mestrado, pela parceria e por gentilmente escrever o prefácio deste livro.

    Pessoas do Brasil inteiro e algumas que hoje moram em outros países permaneceram presentes. No Espírito Santo, agradeço à Laisa, presença constante e alma gentil, que desde 2007 tem me mostrado que uma vida sem ternura não é lá grande coisa; à Karol, pela amizade que nem mesmo a força do tempo irá destruir e pelas inúmeras dicas acadêmicas; ao Luiz, irmão de caminhada que ainda carregarei para uma roda de samba; ao padrinho Rafael Dias, músico e musical amigo que vem já há mais de uma década mostrando o poder das canções e ao Helmar Spamer, pomerano multitalentoso e crítico exigente.

    No Distrito Federal, agradeço às irmãs Rosa e Renata, amigas e sambistas que quando sambam evocam e encarnam profundamente a ancestralidade que muitos sequer conseguem perceber. Agradeço à Rosa, por não conseguir disfarçar seu espírito crítico diante de maltratos ao samba e agradeço à Renata pela grande ajuda mobilizando seus contatos no Rio de Janeiro; à Lorena e Ronan, casal amigo que a música me apresentou e que são parcerias e interlocuções constantes; ao Hugo Lacerdda, pelas animadas cantorias, pela delicadeza e pelas muitas risadas e ao Rogério, sempre disposto a uma história e pelas dicas musicais. Dos colegas da pós-graduação em História da UnB, agradeço à Vanessa, pela ajuda em muitas minúcias desconhecidas por este neófito em pós-graduação e pelas divertidas histórias; ao José, grande batalhador sempre disposto a ajudar e a compartilhar o que ía descobrindo, e à Rebecca, que luta tanto que talvez nem saiba o quanto é forte e apoiou meu trabalho.

    No Rio de Janeiro, agradeço à Mellina, pelas risadas e por compartilhar as agruras de ser pesquisador neste país. Em São Paulo, agradeço à Horrana, que de tanto querer aprender, acaba por ensinar e me ajudou. Em Ouro Preto, agradeço à Ana Paula, que sempre disse que a vida acadêmica combinava comigo. Em Contagem, agradeço à Nívia, pelas observações e hospitalidade. Em Nova Iguaçu, agradeço à Thais, que com as conversas sobre música ajudou a tornar a jornada mais divertida. Em Goiânia, agradeço à minha cunhada, Juliana, que esteve na linha de frente no combate ao Coronavírus e sempre arruma tempo para apoiar e pela hospitalidade. Em Portugal, agradeço ao meu compadre e irmão Renan, caboclo sábio e inspirador que ouviu as histórias, tirou sarro e deu conselhos. Na Alemanha, agradeço à Isabel Ribeiro, que desde os tempos do Museu de Arte do Rio é uma interlocução poética e constante e incentivou minha pesquisa.

    No Rio de Janeiro também agradeço ao partideiro Marquinhos de Oswaldo Cruz, pelo incentivo e generosidade; ao Adriano, frequentador antigo das rodas de samba e partido alto; ao discjockey e colecionador de LPs Café e ao escritor mangueirense Onésimo Meirelles, fontes de simpatia e conhecimento; ao jornalista e pesquisador Vagner Fernandes e à pesquisadora Marília Trindade Barbosa, pela educação e disposição em compartilhar; ao historiador Luiz Antônio Simas e à sambista Teresa Cristina, figuras cujos trabalhos me inspiram e que renovam e fomentam em tantas pessoas o interesse pelo samba. 

    Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela bolsa que me concedeu durante o mestrado, o que viabilizou a dedicação exclusiva à pesquisa.

    Por último, agradeço novamente à minha esposa, Carolina, pois um agradecimento só seria pouco. Ela me ajudou em todas as etapas, buscou soluções e materiais, discutiu possibilidades, ouviu pacientemente incontáveis vezes anedotas e causos descobertos ou relembrados durante a idealização e a produção do presente livro; riu dos desencontros (e de alguns encontros) da pesquisa, cantou centenas de sambas comigo, foi fundamental para eu concluir o que tinha me proposto a fazer. Amo você e se eu fosse compositor, lhe escreveria um samba, como não sou, então, deixo estes versos do Luiz Carlos da Vila, que retratam como fico quando você chega: Enfim / Um horizonte melhor me sorriu / Ao ver esperança no ar / Que dos seus lindos olhos luziu / Minha dor virou gota no mar / Sou feliz pois vejo o amor chegar¹.

    HORIZONTE MELHOR. [Compositores: Luiz Carlos da Vila/Adilson Victor. Intérprete: Luiz Carlos da Vila]: Luiz Carlos da Vila. In: UM CANTAR À VONTADE. Luiz Carlos da Vila. São Paulo: Musart Music, 2005. 1 CD (57 min.), faixa 10.

    A visibilidade de músicos negros nas Américas – e a forma como se projetaram no mundo artístico – não pode ser pensada apenas a partir do interesse de empresários do campo cultural, das plateias sedentas por novidades ou do apoio de intelectuais modernos e modernistas. Há de ser entendida a partir das ações que empreenderam na luta por sua visibilidade, pela subversão do racismo e pelo reconhecimento de sua cor, de seus gostos e estilos, em todos os espaços públicos.

    (Martha Abreu)

    PREFÁCIO

    O Samba explicando o Brasil,

    os sambistas resistindo ao racismo

    Como nos lembra Muniz Sodré (2017, p. 117) no:

    [...] sistema nagô, a pessoa é constituída de uma parte material (ara, o corpo) e por uma parte imaterial (emi, respiração ou princípio vital). O corpo, continua o teórico da comunicação, "compõe-se de duas partes inseparáveis, que são a cabeça (ori) e o suporte (aperê). Nessa linha de pensamento regida por cosmogonia e ancestralidade, o ser humano constitui-se de materiais coletivos (procedentes das entidades genitoras divinas e dos ancestrais) e de uma combinação individual. Nele, o orgânico e o inorgânico convergem...

    Não parece ser necessário aprofundarmos os argumentos apresentados para que possamos entender a relevância do samba como um dos elementos constituintes dessas várias esferas de nossas vidas e como uma importante lição sobre nossa história.

    Suas conexões ligam o Brasil, construído pela diáspora forçada de milhões de africanos, com as múltiplas Áfricas. Seus ritmos e cânticos celebram a vida cotidiana, o prazer, as rupturas, a individualidade, a força e a potência da juventude. Mas também cantam a ancestralidade, a tradição, a comunidade, os mais velhos, a resistência e as identidades negras. Suas batidas nos levam aos terreiros e rodas de samba do passado e do presente, seus ritmos mudam as batidas do coração, suas letras mexem com nossas mentes, balançam nossos corpos, unem corpo e espírito. Suas letras cantam e contam histórias plurais, de vida e de morte, de experiências e resistências, dos muitos brasis e de nossas muitas heranças africanas. Cabeça (ori) e suporte (aperê), cosmogonia e ancestralidade são partes de um todo, assim como instrumento e sambista, letra e compositor, som e ritmo, presente e passado.

    Em Balança que o samba é uma herança, o historiador Lellison de Abreu Souza nos apresenta algumas dessas importantes esferas de compreensão do samba como parte das narrativas que nos formam enquanto sociedade diaspórica, desigual e racista, mas que também é criativa, negra, africana e resistente. Sua investigação nos conduz em uma história ritmada pelos sambas cariocas no século XX, com ênfase nas relações entre racismo, sambistas, sambas e mercado fonográfico nas décadas de 1960 a 1980.

    Sua marca maior é a inquestionável contribuição para o entendimento de como o racismo estrutural e as múltiplas resistências das comunidades de sambistas construíram uma importante face desse patrimônio humano e cultural. O samba como espelho da vida e da história. Os sambistas criando não apenas letras, ritmos e sons, mas múltiplas estratégias de sobrevivência e resistência, diante de uma indústria fonográfica dominada pela branquitude e por suas apropriações culturais.

    Sambistas, como Candeia e Nei Lopes, revelam a condição autônoma de criação musical e de produção de uma epistemologia própria. O samba é, nas melodias e letras, um produtor e um espelho das identidades periferizadas, diaspóricas, resistentes, negras e insubmissas. Insubmissão essa revelada pela criação da Gran Quilombo, pela defesa do partido alto, dos sambas de resistência, vivido e potencializado nas feijoadas que duravam dias e produziam um sentido de comunidade e pertença únicos. Revelada ainda na tensa relação com o mercado fonográfico, nas formas de inscrição nas gravações de instrumentos negados pelo racismo tecnológico, da crítica política, da interpretação da vida.

    O trabalho de pesquisa histórica de Lellison Souza nos permite uma incursão saborosa e densamente construída por uma investigação de alguns anos sobre essas histórias. O livro que vocês têm a oportunidade de ler e ouvir é resultado de quem conecta o samba e a ciência histórica, de quem incorpora o historiador e o sambista. Suas histórias revelam algumas faces de quem somos, de quem nos formou e do que poderemos nos tornar. Que o ritmo que nos balança, com as forças de seus ritmos, com a presença dos ancestrais e com a invenção de histórias e identidades resistentes, possa acompanhá-los durante a vibrante viagem que o texto deste livro nos presenteia. Boa leitura e não esqueçam de ouvir os mestres e mestras do samba que se enunciam por essas histórias. A voz e a vez é deles e delas e precisam ser ouvidas.

    Colina, Brasília. Segundo ano da pandemia.

    Agosto de 2021.

    Anderson Ribeiro Oliva

    Professor associado de História da África do Departamento de História da Universidade de Brasília – UnB.

    Referência

    SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    CAPÍTULO 1

    SAMBA, PARTIDO ALTO E OS SAMBISTAS NO RIO DE JANEIRO

    1.1 A permanência e importância das rodas de samba e partido alto

    1.2 Os lugares do samba e partido alto no Rio de Janeiro

    1.3 Escolaridade, vida profissional e exclusão social

    1.4 A liderança das tias baianas, invisibilização e perseguição pelas autoridades

    1.5 Primeiros contatos com o mercado fonográfico

    CAPÍTULO 2

    O BRASIL E O MERCADO FONOGRÁFICO NAS DÉCADAS DE 1960 A 1970

    2.1 O cenário brasileiro

    2.2 Mercado fonográfico brasileiro, mundialização da cultura e movimentos musicais nas décadas de 1960 e 1970

    2.2.1 O Mercado Fonográfico Brasileiro

    2.2.2 Mundialização da Cultura

    2.3 Maior profissionalização das gravadoras

    2.4 A influência da televisão e dos festivais da canção

    2.5 Discos Marcus Pereira

    2.6 Paradas de sucesso (venda de discos e êxitos radiofônicos)

    CAPÍTULO 3

    SAMBISTAS, INVISIBILIDADE NEGRA E ESTRATÉGIAS CULTURAIS NA DÉCADA DE 1970

    3.1 Escritores, parâmetros de legitimidade do samba e invisibilidade negra

    3.2 O papel do Zicartola

    3.3 As relações dos sambistas com as escolas de samba

    3.3.1 Fase Heroica (1930-1934)

    3.3.1 Fase Autêntica (1935-1953)

    3.3.2 Fase de Interação (1954-1970)

    3.3.3 Fase da Escola de Samba S.A. (1971-1983)

    3.3.5 Fase do Sambódromo ou das Grandes Sociedades do Samba (1984 – até hoje)

    3.4 A Criação da velha guarda da Portela

    3.5 A liderança de Candeia

    3.5.1 O Gran Quilombo

    3.5.2 Os Discos Partido em 5 volumes I e II e Samba de Roda

    3.5.3 O livro de Candeia e Isnard Araújo

    3.6 Sou mais o samba brasileiro

    CAPÍTULO 4

    RESISTIR É CRIAR ALGO NOVO – VELHAS LUTAS E NOVOS SONS DOS SAMBISTAS NA DÉCADA DE 1980

    4.1 O bloco Cacique de Ramos

    4.2 Cantando e contando a defesa do samba do Partido Alto

    4.3 O primeiro livro de Nei Lopes

    4.4 Nei Lopes e Wilson Moreira cantando a história negra

    4.5 Novo nicho mercadológico: o pagode

    CONCLUSÃO

    REFERÊNCIAS

    ANEXO I

    INTRODUÇÃO

    Os sons de atabaques constituem uma das lembranças mais antigas que tenho. Eles eram produzidos no terreiro de umbanda comandado por minha avó materna. O som forte das mãos dos ogãs batendo no couro dos tambores marcava o ritmo das celebrações e captava minha atenção, induzindo-me a tentar reproduzir o compasso das batidas batendo os dedos de uma das mãos numa das pernas.

    Anos depois, numa igreja evangélica pentecostal, era o som das palmas sendo batidas pelos presentes que me impressionava. Sobretudo, o desafio de manter corretamente o ritmo ao mesmo tempo em que se devia cantar. Era fácil se confundir, e notava que muitos adultos, mesmo com décadas de prática, ainda se atrapalhavam ou simplesmente não conseguiam manter as palmas no ritmo certo.

    Na segunda metade do ensino fundamental, tive a oportunidade de integrar uma banda marcial que ensaiava no pátio da escola onde eu estudava. Era um belo projeto, que possibilitava que alunos pobres aprendessem a tocar instrumentos musicais, além de se apresentarem com a banda em diversos bairros da Grande Vitória e em vários municípios do estado do Espírito Santo.

    Era a melhor chance que um jovem pobre, negro e periférico como eu tinha de ter acesso à educação musical e a instrumentos. Minha audição era boa, a compreensão da dinâmica dos sons funcionava bem, mas não me destaquei pela destreza ao tocar os instrumentos a que tive acesso, o que impediu qualquer plano de me tornar músico profissional. Entretanto, ali, naqueles ensaios nas terças e quintas após as aulas do turno vespertino, consolidou-se um grande interesse e prazer pela música, que desde então me acompanha.

    Posteriormente, afastei-me do lado institucional das religiões, a despeito do interesse pelo tema continuar a existir. Também me desliguei da banda marcial, uma vez que iniciei o ensino médio em outra escola e a permanência na banda se tornou incompatível com meus novos horários e rotinas. Outras situações de cunho variado me ocorreram. Uma delas, ligada à música, ocupa lugar especial em minha memória.

    Na verdade, não foi uma situação ou um fato que possui data exata, foi um processo. Cresci morando num bairro periférico de Cariacica (cidade da Grande Vitória, no Espírito Santo). Bairro antigo, bastante populoso, em cuja rua que abrigava minha residência, eu podia ouvir uma miríade de sons. Carros, motocicletas, choro de crianças de variadas idades, discussões passionais e amores entre vizinhos, as músicas tocadas nas casas mais próximas, programas evangélicos transmitidos via rádio ouvidos quase que o dia inteiro por uma vizinha, bêbados falando alto (e cantando) passando em frente à minha casa, sons dos passarinhos, cachorros e gatos de estimação das casas dos meus familiares e dos moradores próximos (mas também, em épocas diferentes, sons de galináceos, um cavalo e um bode, que ficavam num quintal próximo).

    Por fim, escutava também os cânticos e pregações de uma igreja a poucas casas de onde eu morava, o barulho das festas nas casas vizinhas, os berros e pigarros de meu avô, a algazarra de meus primos e amigos jogando bola ou brincando de pique esconde na rua, bem como os sinais sonoros que reforçavam cotidianamente a lembrança de que eu morava numa área violenta, ou seja, sons de tiros, garrafadas, brigas e conversas anunciando que em tal rua do bairro (ou nos arredores) alguém acabara de ser assassinado. Falando em mortes, o sino de uma igreja próxima raramente passava uma semana inteira sem tocar acompanhado de uma voz que informava falecimentos e informações sobre locais de velórios e enterros.

    Enfim, era uma paisagem sonora que desafiava minha capacidade de concentração nos momentos de estudo ou de leituras de lazer. Não era o barulho em si que me incomodava, mas sim o fato de raramente ser um som que me agradasse ou facilitasse a concentração. Não sendo possível silenciar o mundo, acostumei-me, então, a estudar e a me divertir ouvindo música. Se fosse para ter sempre um barulho por perto, que fosse então algo que me agradasse. E até hoje mantenho o hábito de associar os momentos de leitura e escrita com a audição de músicas.

    Fui o primeiro integrante da família a alcançar o ensino superior, no meu caso, a Universidade Federal do Espírito Santo, onde cursei a licenciatura em História entre 2007 e 2012. Muitas foram as tardes de encanto vagando pelas estantes da biblioteca central, verdadeiro portal do conhecimento que me parecia ser o melhor lugar do mundo.

    Vários temas passaram a chamar minha atenção e neles concentrei o foco das minhas leituras. Um deles foi justamente a música. Descobri que aprender sobre o contexto histórico de discos, a biografia dos artistas e bandas que gostava e as histórias por trás da origem das canções aumentava meu prazer ao ouvir as músicas. Comecei a compreender a música não só como um item que eu consumia, mas como um produto de processos históricos específicos cujas características me eram acessíveis.

    Questões começaram a surgir em minha mente. Por quais razões certos artistas tinham tido mais sucesso em relação a outros? O que explicaria o fato de certos gêneros musicais fazerem tanto sucesso em relação a diversos outros gêneros? Tentava entender as razões da ascensão, queda e eventual permanência de artistas nas paradas de sucesso e na memória coletiva ao longo do tempo.

    Paralelamente, compreendi que por trás dos discos e canções existem diversos atores envolvidos na produção e divulgação das músicas. Compositores, intérpretes, instrumentistas, executivos de gravadoras, produtores musicais, técnicos de gravação, capistas, marqueteiros, jornalistas, radialistas, apresentadores de programas televisivos, produtores de shows e eventos, críticos e resenhistas, uma miríade de profissionais, até chegar ao ouvinte.

    Os sons percussivos, batidas de palmas e a cantoria que marcaram minha infância permaneceram na minha memória. E fui reencontrar esses elementos ao começar a me interessar pelo samba. O samba já fazia parte dos sons presentes na minha infância e adolescência, mas sem se destacar muito. Era parte do repertório ouvido por vizinhos. Minha família escutava ocasionalmente. Do meu círculo de amizades, poucas pessoas ouviam. E nenhum samba, até onde me lembro, integrava o conjunto de canções que tocávamos na banda marcial. O fato de parte dos meus conhecidos no meio evangélico tratar todo tipo de música que não fosse gospel como obra do diabo não me influenciou, pois continuava ouvindo o que gostava e qualquer canção que me interessasse.

    Meu interesse pelo samba começou a aumentar sensivelmente mediante o convívio com minha então namorada Carolina e com sua família, notadamente seu pai. Grande conhecedor e ouvinte inveterado de samba, meu sogro me deu muitas dicas do que ouvir. Serviu como uma espécie de porta de entrada para este universo sonoro. As amizades que fiz no espaço cultural onde comecei a trabalhar na metade da graduação também ajudaram bastante nessa aproximação, pois conheci pessoas de grande conhecimento musical, músicos, integrante de bateria de escola de samba.

    O período em que aprofundei o contato com o samba também coincidiu com a época que o interesse em ler sobre música estava chegando ao auge e se convertendo em um hábito. E assim fiz as primeiras leituras sobre o samba e com o tempo surgiram questionamentos específicos sobre esse gênero musical.

    Algo que me intrigava era a ausência de referências a diversos sambistas em livros que abordavam a história da música brasileira. Por vezes, apareciam algumas referências a um conjunto de sambistas que alcançou maior reconhecimento, mas o destaque era dado comumente a outros artistas e gêneros musicais, ainda que os livros não fossem especificamente sobre esses últimos. A sensação era de que aparentemente, para parte dos autores, a música popular brasileira nascera com a Bossa Nova e atingira a maioridade com o Tropicalismo.

    Ficava impressionado com o contraste entre essa ausência de referências a sambistas e o fato de que em boa parte dos livros de história do Brasil apareciam reflexões sobre como o samba foi alçado à condição de símbolo nacional. Como explicar que um gênero tenha chegado a tal status social e político sem que diversos de seus criadores e praticantes fossem objeto de análises mais detidas e de maior valorização? Como entender o fato de que poucos sambistas encontraram meios para expressar suas considerações sobre o gênero musical que criaram?

    As leituras específicas sobre o samba proporcionaram maior conhecimento de mais pedaços e traços das biografias de diversos artistas. A alta frequência de negros e descendentes de escravizados entre os sambistas atuantes na criação e consolidação do gênero nas primeiras décadas do século XX se destacava. Muitos sambistas negros produziram bastante ao longo das décadas, criando conjuntos de canções relevantes, regravadas por vários artistas (incluindo gente não ligada ao samba) e alguns, como Cartola, eram referidos como integrantes do primeiro time de nossos artistas. Entretanto, o contraste entre o volume de informações e material disponível em diversos formatos sobre boa parte desses sambistas era relativamente pequeno, sobretudo se comparado ao volume de material produzido por artistas integrantes de outros gêneros e movimentos musicais, como o Tropicalismo.

    Uma vertente do samba então se destacou em meio às múltiplas possibilidades sonoras que apareceram diante de mim. Era o partido alto, com seus improvisos e espontaneidade característicos. Percebi que existiam sambistas que articulavam suas carreiras em torno dessa vertente, demonstrando grande habilidade como partideiros. E havia também outros artistas que, ainda que não fossem partideiros, em diversos momentos fizeram referência a essa vertente e a seus praticantes, mantendo uma relação de proximidade com o partido alto e partideiros.

    Uma semelhança que unia os dois grupos era o fato de ambos defenderem a existência de uma tradição, de um modo correto de se fazer o samba. Para boa parte desses artistas, o partido alto era a vertente mais bem conservada do samba. Sobre a maioria desses artistas, encontrei um material geralmente disperso. De alguns artistas mal se dispunham de informações biográficas, muito menos de registros de depoimentos sobre suas trajetórias e vídeos de apresentações.

    As primeiras ideias para este livro significaram a chegada da hora de aprofundar essa busca por mais fontes e informações e sobre elas tecer reflexões. Como ponto de partida, eu dispunha do que me foi possível localizar sobre esses sambistas. Era preciso escolher com atenção o foco que eu daria à pesquisa. A ideia era não apenas usar suas obras e biografias como fontes inseridas numa reflexão maior sobre o samba e música em geral. Mas sim, de observar como as suas falas, atitudes e obras, em suma, suas vidas e produção cultural se inseriam nas discussões sobre o samba, o partido alto e a condição dos artistas negros em geral no Brasil.

    Esses homens e mulheres participaram ativamente dos debates culturais de sua época. Dentro de suas condições, emitiram suas considerações

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