Corpos Transitórios: narrativas transmasculinas
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Corpos Transitórios - Bruno Pfeil
Table of Contents
Prefácio
Respir(ar)
Black Trans Lives Matter
Manifesto Transfuturista
Borra de café no fundo da xícara
Estão matando os nossos
O sorriso de Demétrio
É longo nascer duas vezes
Ser Trans
Lau Baldo
Vicente Lara
Morgan Lemes
Nate
Tales Ferre
Homens trans envelhecem? Diálogos entre transmasculinidades e envelhecimento
Últimas palavras: escrever para provocar novas educações sobre as formas de viver
há vida no vácuo?
O Meio e o Abismo
Correr
Agulha
Charada
Quando corpos transmasculines atravessam as cidades
Uma breve autoetnografia de um corpo transmasculino
Rastros luminosos
Das masculinidades que transgridem: João Walter Nery e a ruptura do significado de ser homem
no Brasil
De ilegal à fraude e de fraude a pirata da (cis)temática
Carta para todas as mães
Fora da Cidade eu Falei pra Minha Mãe: dispositivos cênicos da construção de uma subjetividade transmasculina
Transgeneridades decoloniais: do nome morto ao nome desencantado
Da sombra da cisgeneridade a subjetivações transmasculinas
Corpar: cartas performativas de uma criança
Landmarks
Cover
1.pngfolhaderosto.jpgSumário
Prefácio
Respir(ar)
Black Trans Lives Matter
Manifesto Transfuturista
Borra de café no fundo da xícara
Estão matando os nossos
O sorriso de Demétrio
É longo nascer duas vezes
Ser Trans
Lau Baldo
Vicente Lara
Morgan Lemes
Nate
Tales Ferre
Homens trans envelhecem? Diálogos entre transmasculinidades e envelhecimento
Últimas palavras: escrever para provocar novas educações sobre as formas de viver
há vida no vácuo?
O Meio e o Abismo
Correr
Agulha
Charada
Quando corpos transmasculines atravessam as cidades
Uma breve autoetnografia de um corpo transmasculino
Rastros luminosos
Das masculinidades que transgridem: João Walter Nery e a ruptura do significado de ser homem
no Brasil
De ilegal à fraude e de fraude a pirata da (cis)temática
Carta para todas as mães
Fora da Cidade eu Falei pra Minha Mãe: dispositivos cênicos da construção de uma subjetividade transmasculina
Transgeneridades decoloniais: do nome morto ao nome desencantado
Da sombra da cisgeneridade a subjetivações transmasculinas
Corpar: cartas performativas de uma criança
ficha.jpgPrefácio
Este livro surge a partir da junção das discussões que tangenciam as transmasculinidades realizadas entre os membros da equipe da Revista Estudos Transviades e o espaço de acolhimento cedido pela Editora Devires, que viabilizou a presente exposição dos trabalhos nas páginas que se seguem.
Com esta produção, procuramos visibilizar as transmasculinidades dentro e fora da comunidade trans. Ao longo dos anos, uma importante trajetória político-histórica de corpos transmasculines permaneceu apagada junto de seus discursos, vivências, produções e lutas. Além de se configurar como uma tentativa de resgate de partes desse caminho percorrido, este livro busca celebrar o que nossos corpos vivos e potentes estão produzindo nesse momento, as redes que construímos, os afetos e as reflexões que trazemos sobre nós, sobre nosso entorno e sobre o que mais nos vier.
À vista disso, as produções literárias, artísticas e científicas que compõem essa obra revelam múltiplas formas de vivências, territorialidades, corporificações e performatividades dentro das transmaculinidades. Procuramos explorar a diversidade de perspectivas de mundo possíveis e o que nós, enquanto coletivo, aspiramos para os horizontes de futuro que desejamos construir. É um movimento de projeção de nossas vozes para além dos muros enclausurantes da cisheteronormatividade branca e uma afirmação de que nosso discurso é produtor de ideias relevantes que estão alinhadas com a transformação social.
Portanto, convidamos você a realizar um passeio sob o imaginário social em construção das transmasculinidades que esse livro pretende integrar. E, claro, é preciso realizar um agradecimento especial a todas as pessoas que permitiram que esse trabalho fosse possível: Uarê erremays, Nathan Victoriano, João Lucas de Souza Almeida, Daniel de Brito, Caru Brandi, Ernesto Nunes, Esteban Rodrigues, Hanna Godoy, Gabz 404, Luis Mahin Domingues, Shay de los Santos Rodriguez, Nicolas Pustilnick, Arthur Caldeira, Pedro Amorim Neto, Loba, João Apuã de Melo, Caio Lucas Drummond de Lima, Thales Gabriel Trindade de Moura, Guiço Suçuarana, Caio de Souza Tedesco, Thomaz A. Magdinier, Shai Lamas, Nikolas, Ralph Duccini, Carú de Paula Seabra, Felipe Gali, Bruno Latini Pfeil, Cello Latini Pfeil, Ierê Fraga Carvalhedo.
Desejamos uma boa leitura!
Bruno Pfeil
Nathan Victoriano
Nicolas Pustilnick
Respir(ar)
Nathan Victoriano
Corpo transitório
Corpo cansado
Exausto do seu peso
Pesar que limita o viver
Vida que por vezes está por fio
Fio às vezes de linha
Por outras, de cobre
Cobre!
Cobre, esconde, se aperta
Aperta a alma, a liberdade, a respiração
Respira!
Pensa, repensa, recompõe
Põe de novo, respira fundo, segue em frente
Frente e verso, se algo aparece
De repente, tu se torna ser humano que não merece
Não merece vida, respirar e até amar
Amor
Que por diversas vezes tropeço, peço
Impeço
De acontecer, de viver, de sentir
Sentir
Que volta a tudo
Tudo que é desespero, que aperta, que machuca
Que faz adoecer
Doença que só o afeto cura
Na ternura, na paixão, na busca dessa eterna estranha ilusão
Estranho!
Me dizem, às vezes me sinto, mas paro
Me reparo e assim desfaço
Das roupas, dos julgamentos, do olhar do outro
Que tanto fere
Mas que me faz mais forte
De frente, da batalha, da vida, daquelas senzalas
Nas minhas veias correm vida, dos meus
Por isso sigo, ferido mas sigo
Sentindo até hoje o peso das correntes, mas sigo
Até quando já não sei
Mas sigo, com o corpo já cansado, mas sigo
Sigo, com o pesar das nossas histórias, mas sigo
Sigo...
Eu só sigo.
Black Trans Lives Matter¹
João Lucas de Souza Almeida
C:\Users\bruno\Downloads\DSC_0016 - João Lucas Souza (1).jpgManifesto Transfuturista
Daniel de Brito
Hoje não quero saber dos humanos, pouco me importa esses seres regados a biologia sacramentada e todo o seu humanismo racista. Não me interessam os cromossomos, que se danem o xx
, xy
e toda essa álgebra cisgênera.
Tenho amor aos biônicos!
Aos artificiais
e aqueles regados a biotecnologia do corpo que não encontraram o seu lugar nas estruturas já dadas.
Escrevo aos transfeministas, transfuturistas e translúcidos, esses que herdarão as ruínas do nosso tempo.
Por um feminismo do futuro!
Aonde a emancipação dos corpos ultrapasse a categoria mulher.
Por uma emancipação do gênero!
E do útero, e do sexo e do gozo.
Pelo fim da tirania!
E da misoginia e do machismo.
Pela liberdade aos corpos!
E por toda diversidade de boyscetas sobre a terra.
Por um transfuturismo de alegria!
E prosperidade sob o novo mundo de velhas ruínas.
Pela abundância de parafusos!
Para mantermo-nos firmes no caminho.
Pelas energias renováveis!
Que são as nossas redes de apoio.
Pela inteligência artificial!
Com a qual criaremos vida no pós-mundo.
Esse é o manifesto dos inconformados com o passado da narrativa única de dor.
Esse é o manifesto que conjura a extinção da humanidade, desses seres tão limitados em sua própria normalidade.
Essa é a revolta pela vida dos androides cansados da morte.
Homens trans e transmasculines vivos hoje e no futuro!
Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 2020.
CARUBRANDI.jpgBorra de café
no fundo da xícara
Ernesto Nunes
Acho curioso que o cheiro de café sempre me traz memórias boas, porque se faço força para retomar memórias difíceis, lá está o café também, participando daquele momento, mas não são elas que vêm quando sinto seu cheiro. É mesmo intrigante essa capacidade do aroma de café apagar minhas memórias tristes.
Ela segurava a chaleira quente, o vapor da água fervida deixava a cena com jeito de aconchego, eu olhava a composição da chaleira vermelha, contrastando com suas unhas roxas, a garrafa de café com o coador em cima, uma janela ao fundo deixando entrar o sol do fim de tarde. Era aconchegante a casa dela, tudo ali parecia convidar a se deixar estar. Eu a observava atentamente enquanto passava o café, como se ela fosse uma íntima conhecida distante.
Andava ansioso, há dias queria ouvi-la presencialmente, não só pelas suas produções anti acadêmicas (como ela costumava dizer), mas por uma admiração alimentada em meses de conversas virtuais: falávamos sobre militância, diferentes estruturas de opressão, sobre o acordo na colonialidade, entendendo como colonialidade o conjunto de ideologias normativas a respeito dos corpos dissidentes. Certamente eu ouvia mais do que falava. Ela tinha sempre uma nova reflexão. Mas também falávamos sobre plantas, gatos, dores na coluna, a faculdade ou desabafos de tempos políticos ainda tão sombrios.
Achei muito generoso da parte dela se dispor a me receber assim em casa, mas não me surpreendi, sempre me pareceu generoso o jeito dela estar no mundo: das respostas nos grupos de whatsapp à atenção que dava aos meus dramas acadêmicos. Tem umas coisas pequenas que vão aparecendo nos detalhes: é preciso se atentar às miudezas para conhecer as pessoas. Estava feliz de estar ali, sentado na bancada da cozinha, com o gravador e minhas anotações. Agora já no final do curso, a ajuda dela para o meu TCC (trabalho de conclusão de curso) salvaria meu prazo, estava bem perdido, precisava de algumas orientações acadêmicas, referências que estavam ausentes no meu trabalho.
Há quase dois anos conversávamos via redes sociais. Nos conhecemos uns meses depois do início da pandemia, nesse tempo em que existir passou a ser mais virtual e transcendia os limites territoriais da cidade. Os encontros virtualizados anunciavam alcance ilimitado, talvez para apaziguar as fronteiras invisíveis que o vírus criava nos distanciando dos nossos mais próximos e, ao mesmo tempo, nos aproximando de desconhecidos distantes, uma inversão curiosa do mundo. A encontrei por acaso em um curso on line, desses aos montes que surgiram nessa época, que não sei se eu fazia tomado pelo discurso insano da produtividade ou para fugir dos demônios que o isolamento fazia brotar em cada azulejo de casa. A vi novamente em uma live, depois no perfil do instagram, grupo de debates no whatsapp, e foi nesse que iniciamos conversas mais contínuas, nem me lembro por que exatamente começamos nossos papos no privado, talvez algo sobre gatos. Agora, ali sentado no balcão da sua cozinha, me dava conta que não sabia quase nada da sua vida. Sabia sobre suas reflexões ideológicas intelectuais, sua posição política de indignação com as estruturas de opressão profundamente consolidadas; bem, sabia sobre seu gato, o Tom, que tem mania de mastigar tecido, o que certa vez o levou ao veterinário com uma constipação intestinal, sabia também um pouco sobre a distância da família e a solidão, temas bem comuns nas conversas entre os nossos.
Tom é mesmo uma figura, reparei que ele é muito maior do que parecia na câmera, em algumas chamadas de vídeo que fizemos nesses tempos. Ele subiu na bancada e a assistia passando o café com a mesma minuciosidade que eu. Quanto a ela, eu estava reeditando sua existência que, antes apenas virtual, agora se colocava ali, ao vivo. É doido isso de voltar a viver o mundo real, as pessoas têm cheiros, jeitos, minúcias que só são capturadas na partilha não mediada pela tecnologia. O Tom estava atento também, mas para ver se ela faria algum movimento que desse a entender que era hora da ração: que ele é bem guloso, isso também eu já sabia.
A bancada que dividia a cozinha da sala tinha um canto cheio de chás dos mais variados possíveis, fiquei observando e tentando me lembrar se ela havia comentado sobre chás, acho que não. A cozinha era pequena, mas tinha a janela que parecia fazer o ambiente se expandir para além do prédio. Na sala, um pouco maior, ficava um toca disco, uma mesa de centro escura combinando com uma estante bonita cheia de livros, ao lado de um aparador, um tapete que parecia novo, com grandes almofadas, e um sofá maltratado pelas garras implacáveis do Tom, coberto por uma manta, não sei se pra cobrir mais estragos do sofá ou para protegê-lo dos pelos.
Ela terminou de passar o café e abriu a geladeira procurando algo lá de dentro, perguntei se queria ajuda, disse que não, que eu sentasse. Retornei ao balcão observando seus movimentos, a batidinha que dava com os dedos no puxador da geladeira como se o movimento fosse fazer surgir lá dentro o que procurava, algum tipo de bruxaria. A saia vermelha longa deixava aparecer descalço um pé suave de quem parece que pisa nas nuvens, o que contrastava com a carga e a potência do jeito encarnado dela pensar. Tirou da geladeira uma peça de queijo para acompanhar o café.
Enquanto levava suavemente (suavidade que combina pouco com seu tipo mas bastante com seus pés) o prato com queijos, e eu a garrafa de café, para o pequeno aparador perto da estante de livros, junto às almofadas no chão, ela perguntou como estava o trabalho, se já havia começado a escrever. Respondi que sim, que tinha esboçado algumas coisas, mas a verdade é que estava paralisado em frente ao computador há meses, nem uma linha. O trabalho estava todo rabiscado em cadernos, post its que se misturavam a desenhos que fazia enquanto procrastinava, talvez reunindo tudo eu conseguisse ter duas ou três páginas. Mas não tive coragem de dizer, tive medo de que ela me achasse imaturo e desorganizado, inclusive, para aquela ocasião, tinha escolhido a camisa que me fazia parecer mais velho, ou ao menos parecer com a idade que tinha e não aquela cara de 15 aos 24 anos, pela total ausência de uma penugem na cara, apesar de 9 meses de hormonização em T. Mudo de assunto: sua casa é muito bonita e parece com você. Que galanteador! Eu não tava dizendo que você é bonita, eu só… Então sou feia? Não! Eu só…
Ri do jeito engraçado e rápido dela em responder. Ela é afiada no raciocínio. Fisguei isso em um debate que vi gravado no youtube, onde ela apresentava o trabalho de doutorado, antes da pandemia. Assisti procurando ideias para o meu TCC, mas não sei se teria visto uma hora e quarenta minutos de vídeo se não fosse por ela. O jeito dela falar sempre me hipnotizou um pouco. To só te enchendo, garoto! Deu um tapinha com as pontas dos dedos na minha testa comentando: também gosto daqui. Mudei tem uns quatro anos, dividia aqui com outras amigas da Universidade que aos poucos foram mudando, depois, no período que tive só na casa, na época do meu ex, fiz umas mudanças, ele tava sempre por aqui, me ajudou com uns detalhes, trabalhava com madeira…
Apontou com o rosto para a estante de livros, pausou a fala, tomou um gole de café e permaneceu em silêncio. Não conhecia esses silêncios dela, acho que virtualmente os silêncios têm barulho. Não soube dizer exatamente se seus olhos estavam tristes ou esvaziados de sentir. Você nunca me contou essa história direito... Tem coisa que não vale a pena, garoto.