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As Funções Mentais Nas Sociedades Inferiores
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As Funções Mentais Nas Sociedades Inferiores
E-book597 páginas8 horas

As Funções Mentais Nas Sociedades Inferiores

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Sobre este e-book

Estudo das funções mentais em povos primitivos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de mai. de 2015
As Funções Mentais Nas Sociedades Inferiores

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    As Funções Mentais Nas Sociedades Inferiores - Lucien Lévy-bruhl

    Lucien Lévy-Bruhl

    As funções Mentais

    nas

    Sociedades Inferiores

    Tradução: Souza Campos, E. L. de

    Teodoro Editor

    Niterói – Rio de Janeiro – Brasil

    2a Edição: 2018

    Original: Les fonctions mentales dans les sociétés inférieures. Première édition, 1910.

    Versão desta tradução: Paris: Les Presses universitaires de France, 9a Edição 1951.

    Traduzido por: Souza Campos, E. L. de

    © 2018 desta tradução: Teodoro Editor - Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

    As funções mentais nas sociedades inferiores

    Lucien Lévy-Bruhl

    Introdução

    I

    Índice

    As representações chamadas coletivas __ para só defini-las por alto e sem nos aprofundarmos __ podem ser reconhecidas pelos seguintes sinais: elas são comuns aos membros de um dado grupo social; elas são transmitidas de geração para geração; elas se impõem aos indivíduos e despertam neles, de acordo com os casos, sentimentos de respeito, de medo, de adoração etc. para com seus objetos. Elas não dependem do indivíduo para existir. Não que elas impliquem num sujeito coletivo distinto dos indivíduos que compõem o grupo social, mas porque elas se apresentam com características que não se pode atribuir unicamente aos indivíduos como tais. É por isso que uma língua, mesmo que ela só exista __ propriamente falando __ na mente dos indivíduos que a falam, ela não é para eles uma realidade social menos inquestionável, fundamentada num conjunto de representações coletivas. Ela se impõe a cada um desses indivíduos, ela preexiste a eles e sobrevive a eles.

    Disso se retira uma consequência muito importante sobre a qual os sociólogos insistiram com razão e que escapou aos antropólogos. Para compreender o mecanismo das instituições (sobretudo nas sociedades inferiores), é preciso primeiro se desfazer do preconceito que consiste em acreditar que as representações coletivas em geral e as das sociedades inferiores em particular, obedecem às leis da psicologia fundamentada na análise do sujeito individual. As representações coletivas têm suas leis próprias, que não podem ser descobertas __ sobretudo quando se trata de primitivos¹ __ pelo estudo do indivíduo branco, adulto e civilizado. Pelo contrário, é sem dúvida o estudo das representações coletivas e de suas ligações nas sociedades inferiores que poderá jogar alguma luz sobre a gênese de nossas categorias e de nossos princípios lógicos. Já o Sr. Durkheim e seus colaboradores deram alguns exemplos do que se pode obter seguindo este caminho. Sem dúvida ele levará a uma teoria do conhecimento positiva e nova, fundamentada no método comparativo.

    Essa grande tarefa só poderia ser realizada por uma série de esforços sucessivos. Talvez ela fosse facilitada se inicialmente fossem determinadas as leis gerais obedecidas pelas representações coletivas nas sociedades inferiores. Pesquisar precisamente quais são os princípios diretores da mentalidade primitiva e como esses princípios fazem sentir sua presença nas instituições e nas práticas, este é o problema preliminar que será objeto da presente obra. Sem os trabalhos daqueles que me precederam __ antropólogos e etnógrafos de diferentes países __ e, particularmente, sem as indicações que me forneceram as obras da escola sociológica francesa que mencionei, eu não poderia esperar resolver essa questão, nem mesmo colocá-la em termos úteis. Somente a análise que esta escola fez de numerosas representações coletivas e das mais importantes, como as do sagrado, do mana, do totem, da magia e religiosas etc. tornou possível a tentativa de um estudo conjunto e sistemático dessas representações entre os primitivos. Eu pude, baseando-me nesses trabalhos, mostrar que o mecanismo mental dos primitivos não coincide com aquele cuja descrição nos é familiar entre as pessoas de nossa sociedade. Eu acreditei mesmo poder determinar em que consiste essa diferença e estabelecer as leis mais gerais que são próprias à mentalidade dos primitivos.

    Eu encontrei também um último recurso com os psicólogos, muito numerosos hoje em dia, que, seguindo o Sr. Ribot, se dedicam a mostrar a importância dos elementos emocionais e motivacionais na vida mental em geral e até na vida intelectual propriamente dita. A Logique des Sentiments, do Sr. Ribot, a Psychologie des Emotionalem Denkens, do Prof. Heinrich Maier, para citar somente duas obras, esclarecem os limites muito estreitos em que a psicologia tradicional, sob a influência da lógica formal, pretendia encerrar a vida do pensamento. O mecanismo mental é infinitamente mais flexível, mais complexo, mais sutil e ele abrange muito mais elementos da vida psíquica do que acreditava um intelectualismo muito simplista. Por isso, eu tirei grande proveito das observações psicológicas do Sr. Ribot. No entanto, as pesquisas que eu realizei diferem profundamente das suas. Sua análise recai sobretudo sobre assuntos que interessam sob o ponto de vista emocional, passional, ou até mesmo patológico, tomados em nossa sociedade e ele estuda pouco os fenômenos coletivos. Eu me proponho, pelo contrário, determinar as leis mais gerais das representações coletivas (nelas incluídos os elementos afetivos e motivacionais), nas sociedades mais baixas que conheçamos.

    II

    Índice

    Que as funções mentais superiores devam ser estudadas pelo método comparativo __ ou seja, sociológico __ não é lá uma ideia nova. Auguste Comte já havia enunciado isso nitidamente no Cours de Philosophie Positive. Ele dividiu o estudo dessas funções entre a biologia e a sociologia. Sua célebre fórmula não se pode definir a humanidade pelo homem, mas, pelo contrário, o homem pela humanidade, quer mostrar que as mais altas funções mentais ficam ininteligíveis quando se estuda somente o indivíduo. Para compreendê-las é preciso considerar o desenvolvimento da espécie. Na vida mental do ser humano, tudo o que não equivale a uma simples reação do organismo às excitações que ele recebe é necessariamente de natureza social.

    A ideia era fecunda. Mas ela não gerou seus frutos imediatamente, nem no próprio Comte, nem entre seus sucessores mais ou menos diretos. Em Comte, ela encontrou, por assim dizer, a estrada interrompida por uma sociologia que ele havia acreditado poder construir em todos os seus detalhes e que era, na realidade, uma filosofia da história. Ele pensa ter demonstrado que a lei dos três estados exprime exatamente a evolução intelectual da humanidade, considerada como um todo e também a de uma sociedade particular, qualquer que ela seja; ele não precisa, portanto, para fundamentar a ciência das funções mentais superiores, começar por um estudo comparativo dessas funções nos diferentes tipos de sociedades humanas. Do mesmo modo, para estabelecer seu quadro cerebral, ele não se guia pela anatomia, antecipadamente certo de que os trabalhos dos anatomistas virão confirmar sua classificação e sua localização das faculdades. Do mesmo modo, para constituir sua teoria das funções mentais em seus traços essenciais, a lei dos três estados lhe basta, pois as leis mais particulares não podem deixar de vir se alinhar sob ela. Da mesma forma, ele construiu sua doutrina segundo o desenvolvimento da civilização mediterrânea; mas ele não duvida presuntivamente de que as leis assim descobertas não sejam válidas para todas as sociedades humanas. Comte é, portanto, num certo sentido, o iniciador de uma ciência positiva das funções mentais e, em grande parte, o mérito de tê-la concebido e de ter mostrado o que é uma ciência sociológica lhe deve ser reconhecido. Mas ele não realizou as pesquisas dos fatos que essa ciência exige. Ele nem mesmo as esboçou e, no momento em que ele escreveu sua Politique Positive, ele as condenou como fúteis.

    No entanto, esse estudo paciente e minucioso dos fenômenos mentais nos diferentes tipos de sociedades humanas, cuja necessidade Comte não percebeu, outros já o tinham iniciado e eles os prosseguiram com perseverança __ como cientistas, não como filósofos __ e com o simples desejo de conhecer e classificar os fatos. Eu quero falar dos antropólogos e dos etnógrafos e, em particular, da escola antropológica inglesa. A obra capital de seu líder, o Sr. E. B. Tylor, a Civilisation Primitive, lançada em 1871 e que marca uma data na história da ciência, mostrou o caminho a um grupo numeroso de colaboradores zelosos e disciplinados, cujas obras não são indignas de seu modelo. Com seu trabalho, uma massa considerável de documentos foi acumulada, com relação às instituições, os costumes, as línguas das sociedades ditas selvagens ou primitivas e, ao mesmo tempo, com relação às representações coletivas, que nelas dominam. Na Alemanha e na França, trabalhos do mesmo gênero prosseguem. Nos Estados Unidos, o Departamento de Etnologia do Instituto Smithsonian publicou excelentes monografias sobre tribos indígenas da América do Norte.

    Porém, quanto mais a coleção de documentos se enriquecia, mais uma certa uniformidade de fatos tornava-se impressionante. Na medida em que sociedades de tipo inferior eram descobertas, ou melhor, estudadas, sobre pontos do globo os mais distantes e, às vezes, antípodas umas das outras, analogias extraordinárias entre algumas delas e frequentemente mesmo até semelhanças exatas nos mínimos detalhes se revelavam: mesmas instituições, mesmas cerimônias religiosas ou mágicas, mesmas crenças e mesmas práticas relativas ao nascimento e à morte, mesmos mitos etc. O método comparativo se impôs, por assim dizer, por ele mesmo. O Sr. Taylor, na Civilisation Primitive, faz dele um uso constante e muito feliz; o mesmo com o Sr. Frazer, no Rameau d’Or; o mesmo também com os outros representantes da escola, como os senhores Hartland e Andrew Lang.

    Fazendo isso, eles foram os preparadores, os precursores indispensáveis da ciência positiva das funções mentais superiores. Mas, como Comte, mesmo que por outras razões, eles não a instituíram. Como o emprego do método comparativo não os levou a isso? Seria a falta de terem colocado os problemas gerais e, uma vez comparadas as sociedades primitivas entre si, compará-las com a nossa? Não, pelo contrário. A escola antropológica inglesa, a exemplo de seu líder, sempre se preocupa em mostrar a relação da mentalidade selvagem com a mentalidade civilizada e de explicá-la. Mas é precisamente essa explicação que os impediu de ir além. Eles a tinham totalmente pronta. Eles próprios não a buscaram nos fatos; isso lhes foi imposto. Constatando, nas sociedades inferiores, instituições e crenças tão diferentes das nossas, eles não se perguntaram se, para se dar conta disso, não seria o caso de examinar várias hipóteses. Eles tomaram como certo que os fatos só podiam ser explicados de uma única maneira. As representações coletivas das sociedades consideradas provinham de funções mentais superiores idênticas às nossas, ou deveriam ser relacionadas com uma mentalidade que difere da nossa, em uma medida a ser determinada? Essa alternativa não se apresentou em suas mentes.

    III

    Postulado comumente admitido: a mente humana é sempre igual em toda parte. O animismo dos Srs. Tylor e Frazer e de sua escola implica neste postulado.

    Índice

    Sem entrar numa discussão crítica do método empregado e dos resultados obtidos por estes cientistas² __ discussão que eu não poderia dar a amplidão que conviria __ eu gostaria somente de mostrar, em algumas palavras, as consequências que produzidas, para sua doutrina, sua crença na identidade de uma mente humana perfeitamente igual sob o ponto de vista lógico, em todos os tempos e em todos os lugares. Essa identidade é admitida pela escola como um postulado³, ou, melhor dizendo, como um axioma⁴. Ela não precisa ser demonstrada, nem mesmo ser formalmente enunciada; é um princípio sempre subentendido e muito evidente para que se precise parar para considerá-lo.  Por consequência, as representações coletivas dos primitivos, tão estranhas geralmente para nós e as ligações não menos estranhas que se constata neles, não levantam problemas cuja solução possa enriquecer ou modificar a concepção que nós temos da mente humana. Sabemos antecipadamente que a mente deles não é diferente da nossa. Tudo o que resta a pesquisar é como funções mentais idênticas às nossas puderam produzir essas representações e essas ligações. Aqui aparece a hipótese geral valiosa para a antropologia inglesa: o animismo.

    O Rameau d’Or, do Sr. Frazer, por exemplo, mostra bem de que maneira o animismo dá conta de muitas crenças e de práticas que estão difundidas quase por toda parte nas sociedades inferiores e que numerosos traços sobrevivem em nossa própria sociedade. Observa-se que a hipótese se decompõe em dois tempos. Em primeiro lugar, o primitivo, surpreendido e emocionado pelas aparições que se apresentam em seus sonhos __ onde ele revê os mortos e os ausentes, conversa com eles, briga com eles, os ouve e os toca __ acredita na realidade objetiva dessas representações. Para ele, por consequência, sua própria existência é dupla, como a dos mortos ou dos ausentes que lhe aparecem. Ele admite ao mesmo tempo sua existência atual __ enquanto indivíduo vivo e consciente __ e sua existência como alma separável, podendo se tornar exterior e se manifestar em estado de fantasma. Haveria aqui uma crença universal nos primitivos, porque todos sofreriam de uma ilusão psicológica inevitável, origem dessa crença. Em segundo lugar, desejando explicar os fenômenos naturais que impressionam seus sentidos, ou seja, assinalar-lhes uma causa, eles logo generalizam a explicação que deram para seus sonhos e alucinações. Em todos os seres, por detrás de todos os fenômenos naturais, eles veem almas, espíritos, vontades iguais àquelas que eles acreditam ter constatado neles mesmos, em seus companheiros e nos animais. Operação lógica ingênua, mas não menos espontânea, nem menos inevitável, para a mente do primitivo, do que a ilusão psicológica que a precede e sobre a qual está fundamentada.

    Assim se forma nele, nenhum esforço de reflexão, somente pelo jogo do mecanismo mental idêntico em nós todos, uma filosofia infantil e grosseira, sem dúvida, mas perfeitamente consequente com ela mesma. Ela nunca se coloca nenhuma questão que ela não resolva logo para seu inteiro contentamento. Se, por absurdo, toda experiência que as gerações se transmitiram ao longo dos séculos se apagasse subitamente, se nós nos encontrássemos em presença da natureza como verdadeiros primitivos, nós construiríamos infalivelmente uma filosofia natural, também primitiva e essa filosofia seria um animismo universal, irrepreensível sob o ponto de vista lógico, levando em conta os poucos dados positivos que disporíamos.

    A hipótese animista é mesmo, portanto, neste sentido, uma consequência imediata do axioma que domina os trabalhos da escola antropológica inglesa e que, em nosso ponto de vista, a impediu de se submeter à ciência positiva das funções mentais superiores, para onde o método comparativo deveria encaminhá-la. Pois, enquanto ela explica, com esta hipótese, a semelhança das instituições, das crenças e das práticas nas sociedades inferiores mais diversas, ela não se preocupa em demonstrar que as funções mentais superiores são idênticas nessas sociedades e na nossa. Nela, o axioma deu lugar à demonstração. Que nas sociedades humanas se produzam mitos, representações coletivas como aquelas que estão na base do totemismo, como a crença nos espíritos, na alma exterior, na magia simpática etc. isso decorre necessariamente da estrutura da mente humana. As leis da associação das ideias e o uso natural e irresistível do princípio da causalidade deveriam produzir, com o animismo, essas representações coletivas e suas ligações. Há aqui apenas o jogo espontâneo de um mecanismo lógico e psicológico invariável. Nada explica melhor __ contanto que ele seja admitido, como o faz implicitamente a escola antropológica inglesa __ o fato de que esse mecanismo, nas sociedades inferiores, não difere dos nossos.

    É preciso admiti-lo? É o que examinaremos. Mas, desde já, é manifesto que, se esse axioma fosse colocado em dúvida, o animismo, que se fundamenta nele, seria, no mesmo golpe, colocado em suspeita e não poderia, em nenhum caso, lhe servir de prova. Não se poderia, sem entrar num círculo vicioso, explicar a produção espontânea do animismo nos primitivos por uma certa estrutura mental e afirmar a existência neles, dessa estrutura mental, apoiando-se nessa mesma produção espontânea do animismo. O axioma e sua consequência não podem se prestar mutuamente para sua evidência.

    IV

    Crítica do método dessa escola. Exemplos tirados do Sr. Frazer: 1) Ela só leva ao provável; 2) Ela negligencia a natureza social dos fatos a explicar. Influência sobre essa escola da psicologia associacionista e da filosofia evolucionista de Herbert Spencer.

    Índice

    Por fim, é verdade que a hipótese animista seja verificável pelos fatos e que por ela se explicam suficientemente as instituições e as crenças das sociedades inferiores. É por isso que o Sr. Tylor, o Sr. Frazer, o Sr. Andrew Lang e tantos outros representantes da escola empregaram nela tanto saber e tanto talento. É difícil imaginar, para quem não os leu, a extraordinária abundância de documentos que eles utilizam em apoio à sua tese. No entanto, nessa copiosa demonstração é preciso distinguir dois pontos. O primeiro, que se pode considerar como estabelecido, é a presença das mesmas instituições, crenças e práticas, num grande número de sociedades bem afastadas umas das outras, mas de tipo análogo. Donde se conclui legitimamente a presença de um mesmo mecanismo mental que produz as mesmas representações. É bem claro que semelhanças deste tipo, tão frequentes e tão precisas, não poderiam ser fortuitas. Mas o acúmulo dos fatos, que é decisivo sobre este primeiro ponto, não tem o mesmo valor quando se trata de provar que essas representações têm sua origem comum na crença no animismo, nessa filosofia natural espontânea que seria como a primeira reação da mente humana às solicitações da experiência.

    Sem dúvida que a explicação assim obtida de cada crença ou de cada prática é geralmente plausível e sempre se pode imaginar o jogo do mecanismo mental que teria produzido isso no primitivo. Mas ela não é plausível. E a primeira regra de um método prudente não é jamais tomar como demonstrado o que é verossímil? Muitas experiências advertiram os cientistas de que o verossímil raramente é verdadeiro! A reserva é igual, sobre este ponto, nos linguistas e nos físicos, nas ciências ditas morais bem como nas ciências naturais. O sociólogo tem menos razões para ser desconfiado? A própria linguagem dos antropólogos e a forma de suas demonstrações deixam ver bem que elas não vão além do verossímil e o número de fatos relatados não acrescenta nada à força probatória do raciocínio.

    O costume é quase universal, nas sociedades inferiores, de destruir as armas de um morto, suas vestimentas, os objetos que ele utilizava, sua casa e, às vezes, de imolar seus escravos e suas mulheres. Como dar conta disso? Diz o Sr. Frazer⁵: "Esse costume pode⁶ ter nascido da ideia de que os mortos gostariam que os vivos os espoliassem. A ideia de que as almas dos objetos assim destruídos vão se juntar aos mortos no país das almas é menos simples e, provavelmente⁷, mais recente". Sem dúvida que esse costume pode ter nascido assim; mas ele pode também ter nascido de outra forma. A hipótese do Sr. Frazer não se impõe à exclusão de qualquer outra e sua frase mesma o confessa. Quanto ao princípio geral sobre o qual o Sr. Frazer se apoia e que ele formula expressamente um pouco mais a frente __ Na evolução do pensamento, como na da matéria, o mais simples vem primeiro no tempo __ ele provém, sem dúvida nenhuma, do sistema de H. Spencer, mas ele não é mais correto por causa disso. Eu duvido que se possa demonstrá-lo com relação à matéria. No que toca ao pensamento, o que conhecemos dos fatos tenderia mais a contradizê-lo. O Sr. Frazer parece confundir aqui simples com indiferenciado. Mas veremos que línguas faladas nas sociedades menos avançadas que conhecemos __ australianos, Abipones, habitantes das ilhas Andaman, fueguinos etc. __ apresentam uma extrema complexidade. Elas são muito menos simples, embora mais primitivas, do que o inglês.

    Um outro exemplo tirado do mesmo artigo do Sr. Frazer⁸. É um costume muito difundido, nas regiões mais diversas e em todos os tempos, colocar na boca de um morto, seja grãos, seja uma moeda ou um pedaço de ouro. O Sr. Frazer cita um número considerável de documentos que atestam isso. Depois, ele o explica assim: "O costume original pode ter sido colocar alimento na boca do morto. Mais tarde, ele foi substituído por um objeto precioso (moeda ou outra coisa), para permitir ao morto comprar ele mesmo seu alimento". A explicação é verossímil. Mas, num caso em que podemos controlá-la, ela é falsa. Esse costume, com efeito, existe na China desde tempos imemoriais e o Sr. De Groot nos fornece, de acordo com antigos textos chineses, a verdadeira razão dele. O ouro e o jade são substâncias que duram indefinidamente.

    "São símbolos da esfera celeste, que é imutável e indestrutível, imperecível e que não se corrompe. Por consequência, o ouro e o jade (as pérolas também) munem de vitalidade as pessoas que os engolem. Em outros termos, eles aumentam a intensidade de suas almas (shen), que são, como o céu, compostas da substância Yang. Eles defendem os mortos da corrupção e favorecem seu retorno à vida"⁹.

    É preciso mesmo, ir mais além.

    Os taoistas e os autores médicos afirmam que quem ingerir ouro, jade ou pérolas, não apenas prolonga a vida, mas assegura também a existência de seu corpo após a morte, salvando-o da putrefação. A mera existência dessa doutrina implica que, na mente de seus autores, os seus que adquirem a imortalidade ingerindo tais substâncias continuam a utilizar seus corpos após a morte e são transportados para a região dos imortais, corporalmente. Isso joga uma luz nova sobre o costume, comum aos antigos e aos modernos, de preservar os mortos da corrupção colocando as três substâncias preciosas em suas bocas ou em outro orifício; era uma tentativa para transformá-los em seus¹⁰.

    É dado, aliás, aos mortos, meios para que eles fazem suas compras no outro mundo, mas isso não é colocado em suas bocas. Trata-se, portanto, de uma crença análoga àquela que faz com que sejam procuradas, na China, as madeiras mais duras, ou então, àquelas das árvores sempre verdes, para os caixões. Essas árvores contêm uma quantidade maior do princípio vital e o comunicam ao corpo que está no caixão¹¹. Estes são casos, muito comuns, de participação por contato.

    Estes dois exemplos bastarão, sem dúvida e poderíamos citar muitos outros semelhantes. As explicações da escola antropológica inglesa, não passando de verossimilhanças, são sempre afetadas por um coeficiente de dúvida, variável de acordo com o caso. Elas tomam como certo que as vias que nos parecem, a nós, conduzir naturalmente a certas crenças e a certas práticas, são precisamente àquelas por onde passaram os membros das sociedades onde se manifestaram essas crenças e essas práticas. Nada é mais perigoso do que este postulado, que não se verificaria, talvez, cinco vezes em cem.

    Em segundo lugar, os fatos que ele trata de explicar __ instituições, crenças, práticas __ são fatos sociais por excelência. As representações e as ligações entre representações que esses fatos implicam, não devem apresentar o mesmo caráter? Elas não são necessariamente representações coletivas? Mas então a hipótese animista se torna suspeita e, com ela, o postulado que a fundamenta. Pois, hipótese e postulado só intervêm no mecanismo mental de uma mente humana individual. As representações coletivas são fatos sociais, como as instituições das quais elas tratam e, se há um ponto que a sociologia contemporânea estabeleceu bem, é que os fatos sociais têm suas próprias leis, leis que a análise do indivíduo, enquanto indivíduo, jamais conseguiria mostrar. Por consequência, pretender explicar representações coletivas através do mecanismo das operações mentais observadas no indivíduo (associação das ideias, uso ingênuo do princípio de causalidade etc.), é uma tentativa condenada de antemão. Sendo negligenciados dados essenciais do problema, o fracasso é certo. Da mesma forma, podemos fazer uso, na ciência, da ideia de uma mente humana individual virgem de qualquer experiência? Vale a pena pesquisar como esta mente representaria os fenômenos naturais que se passam nela e ao redor dela? De fato, não temos nenhum meio de saber como seria uma mente assim. Por mais longe que possamos remontar, por mais primitivas que sejam as sociedades observadas, nós só encontramos mentes socializadas, se é que se falar assim, já ocupadas por uma multidão de representações coletivas, que lhes são transmitidas pela tradição e cuja origem se perde na noite dos tempos.

    A concepção de uma mente humana individual se oferecendo virgem à experiência é, portanto, tão quimérica quanto à do homem antes da sociedade. Ela não responde a nada de compreensível nem de verificável para nós e as hipóteses que ela implicaria só poderiam ser arbitrárias. Se, pelo contrário, partirmos das representações coletivas, como nos é dado, como a realidade sobre qual deve recair a análise científica, sem dúvida nós não teríamos explicações verossímeis e sedutoras a opor à da escola antropológica inglesa. Tudo seria muito mais simples. Nós nos encontraríamos em presença de problemas complexos e, na maioria das vezes, nos faltariam dados suficientes para resolvê-los. Na maioria das vezes também, as soluções que proporíamos serão hipotéticas. Mas, pelo menos, podemos esperar que o estudo positivo das representações coletivas nos propiciará o conhecimento das leis que as regem e obter assim uma interpretação mais exata da mentalidade das sociedades inferiores e até mesmo da nossa.

    Um exemplo talvez faça ressaltar a oposição entre o ponto de vista da escola antropológica inglesa e aquele onde gostaríamos de nos colocar. O Sr. Tylor escreve:

    Conforme essa filosofia infantil primitiva que vê na vida humana o princípio que permite imediatamente compreender a natureza inteira, a teoria selvagem do universo que relaciona os fenômenos em geral à ação voluntária de mentes pessoais difundidas em toda parte. Não é uma imaginação agindo independentemente, é a inferência razoável, segunda a qual os efeitos são devidos à causas, que conduziu as pessoas grosseiras dos primeiros tempos a povoar com tais fantasmas suas casas, suas vizinhanças, a vasta terra e os espaços celestes. As mentes são simplesmente causas personificadas.¹²

    Nada de mais simples, nada de mais aceitável do que esta explicação de um grande conjunto de crenças, desde que se admita, com o Sr. Tylor, que elas são o resultado de uma inferência razoável. Mas, é muito difícil concordar com ele. A considerar as representações coletivas que implicam, nas sociedades inferiores, a crença em espíritos espalhados por toda parte na natureza e que inspiram as práticas relativas a esses espíritos, não parece que elas sejam o produto de uma curiosidade intelectual em busca de causas. Os mitos, o ritos funerários, as práticas agrárias, a magia simpática, não parecem nascer de uma necessidade de explicação racional. Eles respondem a necessidades, a sentimentos coletivos imperiosos, poderosos e profundos nas sociedades inferiores.

    Eu não digo que essa necessidade de explicação não exista totalmente. Como tantas outras virtualidades que se desenvolverão mais tarde se o grupo social progride, essa curiosidade desperta e talvez se manifeste um pouco na atividade mental dessas sociedades. Mas é certamente contrário aos fatos ver nela um dos princípios diretores dessa atividade e a origem das representações coletivas relativas à maior parte dos fenômenos da natureza. Se o Sr. Tylor e seus discípulos se satisfazem com essa explicação é porque eles fazem nascerem essas crenças em mentes individuais semelhantes às suas. Mas, assim que se leva em conta o caráter coletivo das representações, a insuficiência dessa explicação aparece. Sendo coletivas, elas se impõem ao indivíduo, ou seja, elas são para ele um objeto de fé, não um produto de seu pensamento. E como a preponderância das representações coletivas é muito maior, em geral, quanto mais as sociedades são menos evoluídas, não há lugar, na mente do primitivo, para as questões como? ou por que?. O conjunto das representações coletivas que ele possui e que provocam nele sentimentos de uma intensidade que não imaginamos é pouco compatível com a contemplação desinteressada dos objetos, que supõe o desejo totalmente intelectual de conhecer sua causa.

    Sem entrar aqui numa discussão detalhada da hipótese animista, que encontrará seu lugar mais adiante, é portanto permitido pensar que a fórmula do Sr. Tylor os espíritos são causas personificadas não bastará para dar conta do que são os espíritos nas representações coletivas das sociedades inferiores. Para nós, que vamos nos ater primeiramente à análise dessas representações, sem ideia pré-concebida sobre o mecanismo mental do qual elas dependem, será que talvez não sejam os espíritos, pelo contrário, que nos ajudarão a compreender o que são certas causas? Talvez encontremos que a operação da causa eficiente __ vexata quœstio, para os filósofos __ seja um tipo de precipitado abstrato do poder místico atribuído aos espíritos? Mas esta é uma hipótese que nós nos reservamos examinar e, em todo caso, desafiaremos as fórmulas categóricas e abrangentes. A escola antropológica inglesa, com sua hipótese de animismo e suas ideias pré-concebidas, tem sempre pelo menos uma explicação verossímil para os fatos que ela reuniu. Fatos novos surgem? Sua hipótese é suficientemente genérica e plástica para permitir explicá-los também; aí está a engenhosidade. Ela vê nisso um tipo de explicação de sua doutrina. Mas essa confirmação tem precisamente o mesmo valor que as explicações verossímeis, que ela não passa de um novo exemplar.

    É de se perguntar, sem dúvida, como um cientista como o Sr. Taylor, cuja perspicácia é tão admirável e possui uma crítica tão penetrante em matéria de fatos particulares, pôde se mostrar menos exigente quando se trata de uma teoria geral e como seus discípulos o imitaram também, da mesma forma, neste ponto? Talvez seja o caso de reconhecer aqui a influência da filosofia inglesa contemporânea e, em particular, da evolução. Quando foi lançado Civilisation Primitive e por muitos anos depois, a psicologia associacionista parecia ter definitivamente ganhado a causa. O evolucionista Herbert Spencer, então em plena voga, exercia a mais viva sedução sobre uma multidão de mentes. Eles viam nela a fórmula da síntese filosófica mais abrangente; fórmula que podia, ao mesmo tempo, se adaptar a não importa que categoria de fatos naturais e servir assim de fio condutor para a pesquisa científica. Ela se aplicava tanto à história do sistema solar como à gênese dos organismos ou da vida mental. Era de se esperar que ela fosse estendida aos fatos sociais. Spencer não se furtou a isso. Ele toma, ele também, como se sabe, por hipótese diretriz na explicação da mentalidade das sociedades inferiores, a teoria do animismo fundamentada na psicologia associacionista.

    Julga-se hoje em dia muito severamente o evolucionismo de Spencer. Suas generalizações parecem apressadas, ambiciosas e pouco fundamentadas. Mas, há uns trinta anos, elas eram avaliadas como sólidas e poderosas. O Sr. Tylor e seus discípulos pensaram encontrar nela uma garantia para a continuidade que eles estabelecem no desenvolvimento das funções mentais do ser humano. Essa doutrina lhe permitiu apresentar esse desenvolvimento como uma evolução ininterrupta e cujas etapas podem ser destacadas, desde as crenças animistas das sociedades mais baixas até à concepção do sistema do mundo em Newton. Ao mesmo tempo, quase em todo Civilisation Primitive e, particularmente, na conclusão, o Sr. Tylor se preocupa em refutar a teoria segunda a qual as sociedades ditas primitivas ou selvagens seriam, na realidade, sociedades degeneradas, sendo sua representação da natureza, suas instituições e suas crenças, restos quase apagados, mas ainda reconhecíveis, de uma revelação original. A esta hipótese de ordem teológica, o Sr. Tylor não pôde opor nada de melhor do que a hipótese da evolução, que é, seguindo ele, de ordem científica? Esta lhe fornece uma interpretação racional dos fatos. O que se apresentou a ele como os vestígios de um estado anterior mais perfeito, o Sr. Tylor explicou sem grandes dificuldades, sob o ponto de vista da evolução, como o rudimento ou o germe de um estado ulterior mais diferenciado.

    Se lembrarmos, enfim, o que a hipótese geral do animismo introduziu de clareza e inteligibilidade aparente na massa dos fatos, não ficaremos surpresos com a sorte que ela compartilhou com a doutrina evolucionista, nem com o fato de que a escola antropológica inglesa, em sua grande maioria, permaneceu fiel a ela até o presente.

    V

    A ideia da existência de tipos de mentalidade diferentes entre si, como as sociedades. Ineficiência, para determiná-los, dos documentos contemporâneos e antigos. Em que medida e de que forma lidar com eles?

    Índice

    As séries de fatos sociais são solidárias umas às outras e elas se condicionam reciprocamente. Um tipo definido de sociedade, que tem suas instituições e seus costumes próprios, terá então, também, necessariamente, sua mentalidade própria. A tipos sociais diferentes corresponderão mentalidades diferentes e as instituições e os costumes são muito mais, no fundo, aspectos das representações coletivas, do que as representações, por assim dizer, consideradas objetivamente. Somos levados assim a perceber que o estudo comparativo dos diferentes tipos de sociedades humanas não se separa do estudo comparativo das representações coletivas e das ligações entre essas representações que dominam nessas sociedades.

    Considerações semelhantes não tiveram que prevalecer entre os naturalistas, quando, conservando totalmente a ideia de identidade das funções essenciais entre todos os seres vivos __ ou, pelo menos, entre todos os animais __ eles se decidiram por admitir tipos fundamentais diferentes uns dos outros? Sem dúvida que a nutrição, a respiração, a secreção, a reprodução, são processos que não variam em seu fundo, qualquer que seja o organismo onde eles são produzidos. Mas eles podem acontecer sob um conjunto de condições histológicas, anatômicas, fisiológicas, nitidamente diferentes. A biologia geral deu um grande passo quando reconheceu que não devia, como ainda acreditava Auguste Comte, procurar na análise do organismo humano, o que torna mais inteligível o organismo da esponja. Deixou-se, dali em diante, de perturbar o estudo propriamente biológico com ideias preconcebidas sobre a subordinação dos seres uns aos outros, com todas as reservas feitas sobre a possibilidade de formas originárias comuns, anteriores à diferenciação dos tipos.

    Da mesma forma, há características comuns a todas as sociedades humanas, pelas quais elas se distinguem das outras sociedades animais: uma língua falada nela, tradições que se transmitem nela e instituições que se mantém nela. Por consequência, as funções mentais superiores têm em toda parte um fundo que não pode deixar de ser o mesmo. Mas, isso admitido, as sociedades humanas, como os organismos, podem apresentar estruturas profundamente diferentes umas das outras e, por consequência, diferenças correspondentes nas funções mentais superiores. É preciso, portanto, desistir de reduzir de antemão as operações mentais a um tipo único, quaisquer que sejam as sociedades consideradas e de explicar todas as representações coletivas através de um mecanismo psicológico e lógico sempre o mesmo. Se for verdade que existem sociedades humanas que diferem entre si através de sua estrutura, como os animais invertebrados diferem dos vertebrados, o estudo comparado dos diversos tipos de mentalidade coletiva não é menos indispensável à ciência do homem quanto a anatomia e a fisiologia comparadas o são para a biologia.

    É preciso dizer que esse estudo comparado, assim concebido em sua generalidade, apresenta dificuldades atualmente insuperáveis? No presente estado da sociologia, não se poderia pensar em empreendê-lo. A determinação dos tipos de mentalidade é tão árdua quanto à dos tipos de sociedade e pelas mesmas razões. O que eu vou tentar aqui, a título de ensaio ou de introdução, é o estudo prévio das leis mais gerais às quais obedecem as representações coletivas nas sociedades inferiores e mais especialmente nas sociedades mais baixas que conhecemos. Eu me esforçarei para constituir, senão um tipo, pelo menos um conjunto de características comuns a um grupo de tipos próximos uns dos outros e de definir assim os traços essenciais da mentalidade própria às sociedades inferiores.

    A fim de melhor identificar esses traços, eu compararei essa mentalidade com a nossa, ou seja, a mentalidade das sociedades surgidas da civilização mediterrânea, onde se desenvolveram a filosofia racionalista e a ciência positiva. Há uma vantagem evidente, para um primeiro esboço de estudo comparativo, em escolher os dois tipos mentais, acessíveis às nossas investigações, entre os quais a distância é máxima. É entre eles que as diferenças essenciais serão melhor marcadas e elas terão, por consequência, as menores chances de escapar à nossa atenção. Por outro lado, é partindo deles que poderemos mais facilmente abordar em seguida o estudo das formas intermediárias ou de transição.

    Mesmo restrita desta forma, a tentativa não parecerá, sem dúvida, menos audaciosa e de sucesso incerto. Ela permanece incompleta, ela abre, sem dúvida, mais problemas do que os resolve e ela deixa sem solução mais de um grande problema que ela aborda. Eu não ignoro isso, mas, na análise de uma mentalidade tão obscura, eu acredito preferível me limitar ao que me aparece mais claramente. Por outro lado, no que concerne à mentalidade própria à nossa sociedade, que deve me servir simplesmente de termo de comparação, eu a considerarei como suficientemente bem definida pelos trabalhos dos filósofos, lógicos e psicólogos, antigos e modernos, sem prejulgar disso que uma análise sociológica ulterior poderá modificar os resultados obtidos por eles até o presente. O objeto próprio de minhas pesquisas é, portanto, estudar, nas representações coletivas das sociedades inferiores, o mecanismo mental que regula seu jogo.

    Mas essas próprias representações e suas ligações, nós só as conhecemos através das instituições, das crenças, dos mitos e dos costumes das sociedades inferiores. E tudo isso, por sua vez, como nos é dado? Quase sempre através das narrativas de viajantes, de marinheiros, de naturalistas, de missionários, enfim, através dos documentos reunidos nas coleções etnográficas dos dois mundos. Não há sociólogo que não deva se preocupar com o valor desses documentos. É um problema capital ao qual se aplicam as regras ordinárias da crítica e que eu não posso abordar aqui. Eu devo destacar, no entanto, que o cuidado de observar cientificamente as sociedades inferiores, por meio de um método objetivo, preciso, minucioso e, enfim, tão semelhante quanto possível àquele que os cientistas empregam para a determinação dos fenômenos naturais, este cuidado é muito recente. E, por um tipo de ironia, agora que ele nasceu, ele quase que não tem mais objetivo. O último século viu acontecerem perdas irreparáveis para o estudo comparativo das sociedades humanas. Rapidamente e nas regiões mais diversas, sociedades foram extintas, cujas instituições teriam sido do mais alto interesse para esta ciência. E as sociedades inferiores que subsistem estão condenadas a um desaparecimento próximo. É preciso que os bons observadores se apressem.

    O enorme conjunto de observações mais antigas está longe de compensara o que nós perdemos desta forma. Com raras exceções, os fatos recolhidos de passagem, por viajantes que só fazem atravessar uma região, têm muito pouco valor. Diz com razão o Major Powell:

    Esses viajantes, não podem mostrar as instituições da sociedade tribal... da mesma forma que eles não podem dar uma descrição exata da flora de um país, da fauna de uma região ou da estrutura geológica de um continente.¹³

    Geralmente também, aqueles que primeiro viram essas sociedades inferiores, mesmo se permaneceram entre elas por muito tempo, estavam preocupados com outra coisa bem diferente, do que dar uma relação precisa, exata e tão completa quanto possível das instituições e dos costumes que se ofereciam a eles. Eles notavam o que lhes pareciam mais notáveis, mais estranho, o que mais aguçava sua curiosidade. Eles descreviam isso com mais ou menos precisão. Mas as observações assim recolhidas eram para eles alguma coisa de acessória e não eram jamais a razão principal de sua estadia nessas sociedades. Por outro lado, eles não tinham nenhum escrúpulo em interpretar os fatos ao mesmo tempo em que os descreviam. A própria ideia de um escrúpulo assim lhes era estranha. Como não duvidar deles, se a maior parte de suas interpretações são grandes contra-sensos e se os primitivos e os selvagens escondem quase sempre com um zelo ciumento o que há de mais importante e de mais sagrado em suas instituições e em suas crenças?

    No entanto, como o Sr. Tylor bem mostrou, à luz do que sabemos hoje em dia, muitas dessas velhas observações se esclarecem e se corrigem. E até mesmo se tornam bem preciosas. Por exemplo, as observações de certos missionários que residiram por muito tempo na sociedade que eles nos retratam, que quase assimilaram seu espírito e nos quais podemos sem muita dificuldade, separar a observação propriamente dita das ideias preconcebidas que se misturam a elas. Tais são, entre outros, os padres jesuítas que foram os primeiros a entrar em contato com as tribos nativas da América do Norte. No século XVIII, Dobrizhoffer entre os Abipones e, mais recentemente, Turner em Samoa e Codrington na Melanésia etc. Os observadores deste tipo, sendo os mais antigos, tinham a vantagem de ignorar qualquer teoria sociológica e acontece geralmente que seu relato tem tanta importância para nós quanto mais eles não compreendem nada do que relatam. Em troca, ela é irritantemente incompleta e muda, justo em pontos essenciais.

    A esses esboços, cuja exatidão jamais é certa e que seus autores às vezes retocavam ou completavam convenientemente segundo o gosto da época, as observações recolhidas hoje por etnógrafos profissionais se opõem como boas fotografias. De fato, os colaboradores do Escritório de Etnologia do Instituto Smithsoniano de Washington e, em geral, os exploradores contemporâneos, usam aparelhos fotográficos e também fonógrafos, como instrumentos indispensáveis. É de preferência com esses investigadores prevenidos das dificuldades de sua tarefa e exercitados no método que permite a abordagem com mais chances de sucesso, que nós buscaremos nossos documentos. Também não podemos jamais dispensar as precauções que a crítica exige. Muitos deles são missionários __ católicos ou protestantes __ e são convencidos, como seus predecessores dos séculos passados, que os selvagens possuem de Deus algum rudimento de religião natural e devem ao diabo as mais condenáveis de suas práticas. Muitos também __ eclesiásticos ou leigos __ leram as obras do Sr. Tylor e do Sr. Frazer e se tornaram seus discípulos. Dando-se, desde então, por tarefa, acrescentar uma verificação nova às teorias de seus mestres, eles observam com olhos preconceituosos. O inconveniente se torna muito grave quando eles partem munidos de um questionário detalhado, concebido no espírito da escola. Um tipo de quadro os impede dali por diante de perceber qualquer fato que não esteja mencionado no questionário e, na relação dos

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