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Filhos De Cã, Filhos Do Cão
Filhos De Cã, Filhos Do Cão
Filhos De Cã, Filhos Do Cão
E-book652 páginas7 horas

Filhos De Cã, Filhos Do Cão

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Sobre este e-book

Iniciei meu estudo sistemático da África Negra Pré-colonial e do escravismo brasileiro há pouco mais de 45 anos, ainda jovem historiando, na Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Naquele então, a escravidão era preocupação mais do que marginal na historiografia brasileira. E a história da África era tema praticamente inexistente. Minha opção pelo marxismo é anterior ao início do meu estudo da história da África Negra Pré-Colonial, tema que escolhi um pouco coagido, quando foi rejeitada minha escolha da Unidade Popular chilena, como tema de dissertação de mestrado. Acompanhado por minha companheira, Florence Carboni, italo-belga, que ainda balbuciava em português, saímos à procura da documentação arquival e material sobre o trabalho e a resistência dos escravizados no Rio Grande do Sul.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de fev. de 2022
Filhos De Cã, Filhos Do Cão

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    Filhos De Cã, Filhos Do Cão - Mário Maestri

    Filhos de Cã, Filhos do Cão

    o trabalhador escravizado na historiografia brasileira

    Ensaio de Interpretação Marxista

    Mário Maestri

    Filhos de Cã, Filhos do Cão

    o trabalhador escravizado na historiografia brasileira

    Ensaio de Interpretação Marxista

    2022

    Copyright© do autor

    Foto da Capa

    Escravos na Costa da África, c. 1833. Óleo sobre tela. Brand, François Auguste (1798-1882). 64X90 cm.

    Design Gráfico

    Sirlete regina da silva

    Para Eduardo R. Palermo, Ester J.B. Gutierrez,
    Euzébio Assumpção, Solimar Oliveira Lima,
    Théo L. Piñero (em memória).
    Para Florence Carboni, sem quem
    simplesmente nada teria sido possível.

    Sumário

    Palavras Iniciais – Uma Explicação Necessária 13

    Notas Palavras Iniciais 19

    Primeira Parte

    Os Primórdios. Portugal.

    1 Introdução 23

    Trabalhador Escravizado, Espelho Distorcido 23

    A representação e o Representado 24

    Visões de Mundo 25

    Consenso Escravista 27

    Produzindo Distorções 28

    Comunidade Semiótica 29

    O Negro no Poço 30

    Negro e Negro 31

    Visões de Mundo dos Subalternizados 33

    Vozes Silenciadas 34

    Linguagem Escravizada 35

    Notas Capítulo 1 37

    2 Igreja, Ideologia e Escravidão 39

    2.1 Escravidão no Mundo Antigo 39

    Notas Capítulo 2 55

    3 A Escravidão em Portugal 57

    3.1 Portugal: História, Ideologia e Escravidão 57

    Notas Capítulo 3 70

    4 Portugal: Escravidão e Ideologia 72

    4.1 Zurara: a Narrativa Fundadora do Racismo 72

    4.2 Curral Divino: Escravização e Cristianismo 89

    Notas Capítulo 4 96

    5 Brasil 1530-1888: a Dominância Escravista 98

    5.1 Colônia: O Protagonista Ausente 98

    5.2 Fernão de Oliveira – Cristão-velho Abolicionista 107

    5.3 António Sanches – Cristão-novo de Judeu Abolicionista 117

    Notas Capítulo 5 127

    6 Império Lusitano: Apologia e Crítica 132

    6.1 A Crítica Geral de Thomas Clarkson 132

    6.2 Azeredo Coutinho: Intelectual Orgânico

    da Escravidão 144

    6.3 Por uma Crítica da Economia Política da Escravidão Colonial 158

    Notas Capítulo 6 164

    7 A Historiografia Brasileira e o Trabalhador Escravizado – Século 19 168

    7.1 O Escravo e a Literatura Ficcional em Prosa na Segunda Metade do Século 19 169

    Notas Capítulo 7 175

    8 Castro Alves: O Trabalhador Escravizado como Protagonista 177

    Independência e Nacionalidade 179

    Degenerados e Corruptores 181

    Libertando os Ventres 183

    Punhais Assassinos 188

    Notas Capítulo 8 190

    SEGUNDA Parte

    Da Abolição aos Dias Atuais 191

    9 A Longa Agonia da Escravidão – A Revolução Abolicionista 193

    Relações de Produção Emperravam a Produção 194

    A Revolução Abolicionista 195

    Empurrando com a Barriga 196

    Abolicionismo Radical 198

    Revolução Abolicionista,

    Contra-Revolução Republicana 200

    O III Reinado 201

    República Elitista e Federalista 202

    Foi ou não revolucionária? 203

    A Integração dos Ex-Cativos na Pós-Abolição 204

    Notas Capítulo 9 207

    10 A República Velha - Ideologia, Colonialismo e Imperialismo

    O Racismo Científico 210

    O conde de Gobineau e a Origem do

    Racismo Científico 211

    O Falso Conde 212

    Do Racismo Científico ao Melhoramento Racial 214

    Notas Capítulo 10 216

    11 Nina Rodrigues e Euclides da Cunha – o Racismo Científico no Brasil 217

    Nina Rodrigues e a Escola Baiana 217

    Manuel Querino – O Cativo como Herói do Trabalho 219

    Interpretação revolucionária 220

    O trabalho como civilização 221

    Palmares – terra de progresso e ordem 222

    Cativo dedicado 223

    Desescravizando a linguagem 224

    Herói do trabalho 226

    Notas Capítulo 11 227

    12 República Nova – A invenção do Brasil 229

    Gilberto Freyre e o Patriarcalismo Brasileiro 229

    Racismo Científico 230

    12.2 Cultura, Meio e Raça: A Invenção do Português 231

    Maldita saúva 233

    12.3. Meio, Raça e Cultura: A Invenção do Índio 234

    12.4. Meio, Raça e Cultura: a Invenção do Judeu 235

    Socialismo dos bobos 237

    12.5 Meio, Raça e Cultura: A Invenção do Negro 238

    A Mulher e a Agricultura 239

    12.6 Meio, Raça e Cultura: a Invenção do Brasileiro 240

    Notas Capítulo 12 241

    13 Sobrados e Mucambos: A Dissolução do Patriarcalismo Brasileiro 243

    13.1 Sobrados e mucambos: continuidade e superação 243

    Revolução nas Ciências Sociais 244

    Um Passado Perdido 246

    Nós – Brancos e Proprietários 247

    Lamentação pungente 249

    Um cativo que era senhor 250

    13.2 Reafirmação da Natureza do Judeu 251

    13.3 Reafirmação da natureza do índio 252

    13.4 Sobrados e Mucambos: a Ciência Racista de Gilberto Freyre 254

    A mulher conservadora 255

    O Grande Pai Branco 257

    13.5 A Agonia do Patriarcalismo Escravista 257

    13.6 O Paraíso escravista 259

    Vidinha pra Lá de Boa! 261

    Gordo e Feliz 262

    O grande desastre 264

    13.7 Sobrados & mucambos: o Fim de uma Era 265

    Também decadência 266

    Novos protagonistas 268

    A revolução que Não Houve 269

    Notas Capítulo 13 271

    14 Édison Carneiro e o Quilombo de Palmares 273

    Notas Capítulo 14 275

    15 FRATURAS ISOLADAS: PÉRET E MOURA 276

    15.1 Benjamin Péret e Palmares 276

    15.2 Clóvis Moura: um Salto Epistemológico 279

    15.3 Escravidão e Industrialismo: a Escola Paulista 285

    Notas Capítulo 15 288

    16 Autonomia e luta: o escravismo colonial 290

    16.1 Formação e Trajetória de um Militante Comunista 291

    16.2 O escravismo colonial – Uma Revolução Copernicana 297

    16.3 Leis Tendenciais da Produção Escravista Colonial 303

    16.4 O escravismo colonial – Avanço e Recuo da Maré 306

    Notas Capítulo 16 324

    17 A Escravidão Feliz e o Escravizador Escravizado 329

    17.1 Como era Gostoso ser Escravo no Brasil: Edição e Recepção 332

    17.2 África e Travessia, Antessala da Nova Vida 333

    17.3 Como Era Gostoso Ser Escravo No Brasil 335

    Ninguém trabalhava! Ninguém apanhava! 336

    17.4 A Resistência Servil em Mundo de Simetria e Interdependência 339

    17.5 Nascido para a Alforria 343

    Notas Capítulo 17 345

    18 O Medo Move a História e a Família Escravizada cria a Paz 348

    Medo e repressão 349

    Notas Capítulo 18 359

    19 A Escravidão Reabilitada e o cancelamento acadêmico de

    Jacob Gorender 360

    Notas Capítulo 19 366

    Bibliografia citada 367

    Palavras Iniciais

    - Uma Explicação Necessária

    O presente ensaio, Filhos de Cã, Filhos do Cão: o trabalhador escravizado na historiografia brasileira, é trabalho inacabado de autor ainda vivo. Devo portanto uma explicação sobre as razões desta edição, que não esperou a conclusão do trabalho.Vamos lá. Iniciei meu estudo sistemático da África Negra Pré-colonial e do escravismo brasileiro há pouco mais de 45 anos, ainda jovem historiando, na Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Naquele então, a escravidão era preocupação mais do que marginal na historiografia brasileira. E a história da África era tema praticamente inexistente.

    Minha opção pelo marxismo é anterior ao início do meu estudo da história da África Negra Pré-Colonial, tema que escolhi um pouco coagido, quando foi rejeitada minha escolha da Unidade Popular chilena, como tema de dissertação de mestrado. Em 1976, o diretor do curso de História da UCL negou de cara aquela proposta do jovem refugiado brasileiro chegado do Chile. Na histórica instituição, não haviam soprado os ventos do Maio de 1968. Meio embretado, terminei abordando a história da África Central Pré-Colonial, estudo pelo qual me apaixonei.¹ A seguir, optei pela escravidão sulina como tema de tese de doutoramento.²

    No Rio Grande do Sul, da história do trabalhador escravizado, sabia-se pouco e o interesse era quase nulo.³ O único trabalho acadêmico consistente era de Fernando Henrique Cardoso – A escravidão no Brasil Meridional – que não se preocupava com o escravismo propriamente dito, mas como esse fora empecilho ao desenvolvimento do capitalismo. FHC pouco interesse dedicou ao trabalhador escravizado, registrando já na importante obra a sua fixação nas classes dominantes.⁴ Acompanhado por minha companheira, Florence Carboni, italo-belga, que ainda balbuciava em português, saímos à procura da documentação arquival e material sobre o trabalho e a resistência dos escravizados no Rio Grande do Sul.

    Um passado ignorado

    Nos arquivos e bibliotecas rio-grandenses, descobrimos registros de quilombos, de insurreições servis, de infinitas fugas de cativos, de justiçamentos de escravistas e feitores, das duras condições de existência e trabalho do cativo, também no Sul. Revelações em geral redescobertas, em forma pioneira, por colegas que se interessaram pelo tema nas décadas seguintes. Percorremos o sul do Estado, visitando os centros escravistas urbanos e rurais, onde subsistiam ainda resquícios de charqueadas, de senzalas, etc., hoje já na imensa maioria desaparecidos. Pela mão de colega geógrafo e arqueólogo amador da FURG, onde eu trabalhava, visitamos, na ilha dos Marinheiros, diante da cidade de Rio Grande, o que ele dizia ser resquício de um acampamento quilombola. Mesmo que não fosse, a emoção foi enorme.

    No pontal do Bujuru, na margem da Lagoa dos Patos, região que segue de dificilíssimo acesso, em excursão irresponsável, pois acompanhado de nosso filho Gregório, então bebê, seguindo planta garimpada na riquíssima Biblioteca Rio-Grandense, de Rio Grande, encontramos o talvez último galpão charqueador ainda em pé. Tiramos foto minutos antes que desabasse um terrível temporal e nosso fusquinha quase desaparecesse na areia, para sempre, ao lado de caminhões e tratores atolados e semi-engolidos pelas areias ao longo do caminho. A foto tirada com o aparelho fotográfico de que dispúnhamos não resultou. Em um caíque, seguimos pelo Pelotas, da desembocadura arroio-acima, por águas cristalinas, onde emergiam pequenas tartarugas e peixes, pelo caminho fluvial do século 19, em uma quase viagem no tempo, vislumbrando nas margens as sedes da antigas charqueadas, algumas quase intocadas.

    Oportunidades únicas perdidas

    Também em Pelotas, em forma inesperada, conversei com um senhor uruguaio idoso, que relatou as condições terríveis de trabalho nas charqueadas, mesmo após a Abolição. Ele aprendera a profissão com um velho cativo. Enfadou-se quando sorri, ao me contar que dormiam em pé, como cavalos, apoiados na pá ou no machado, de tão cansados. Oportunidade de ouro perdida, como a do relato que escutei de velho caboclo, ao pé da serra da Barriga, anos mais tarde, que me falou do Zumbi Sueca e dos quilombolas com cuias de mel da região, em linguagem de difícil compreensão! Não tínhamos o recurso atual de levar sempre no bolso o gravador e o aparelho fotográfico do IPhone.

    Em 1980, voltei para a Bélgica para defender minha tese de doutoramento, também no Centre d´Histoire de l´Afrique da UCL, sempre sobre a direção do africanista Jean-Luc Vellut. Aconselhado pelo vice-reitor da FURG, fiz pedido de passagem ao CNPq, que resultou na ordem expressa do rio-grandino Golbery de Couto e Silva que eu fosse defenestrado daquela instituição universitária, que ele tanto favorecera. Dito e feito. Em 1982, fui ajudar a fundar o PPGH em História da UFRJ, convidado pela saudosa professora Eulalia Maria Lahmeyer Lobo, magnífica historiadora e grande amiga. Naquela instituição, ministrei em forma pioneira a disciplina História da África Pré-Colonial. Voltei da Itália, em 1988, gentilmente convidado para representar Curso de História da UFRJ no I Centenário da Abolição da Escravatura, celebrado feericamente.

    Na UFRJ, na PUC-RS e na UPF, ampliei minha investigação sobre a escravidão colonial associando-a aos trabalhos de meus orientandos – no total, 27 teses de doutorado e dissertações de mestrado especificamente sobre a escravidão colonial e, secundariamente, sobre a África Negra. Em boa parte, elas foram publicadas na Coleção Malungo, dedicada exclusivamente aos estudos escravistas, criada por mim, em 1988, para a Editora Ícone, de São Paulo, e a seguir transferida para a UPF Editora – 23 títulos publicados. Na PUC-RS, de 1990 a 1995, formei a primeira equipe dedicada intensamente ao estudo da escravidão colonial, com destaque para o Rio Grande do Sul. Um território praticamente inexplorado.⁵

    Meus mestres

    Naqueles anos, tive o privilégio de conhecer estudiosos marxistas referências da escravidão colonial, que se transformaram em amigos próximos, aos quais muito devo: no Brasil, Décio Freitas, Clóvis Moura, Jacob Gorender, Manuel Correia de Andrade e, em Portugal, o africanista José Capela. A chegada do correio eletrônico e da internet, que facilitaram em forma quase inacreditável a comunicação e a pesquisa, puseram fim a contatos por carta cujo valor apenas hoje posso dimensionar. A eles vai dedicado esse trabalho.

    Nos últimos anos da Ditadura Militar, no contexto da forte retomada do movimento social, o interesse pela escravidão avolumou-se no Brasil, assumindo entretanto, mais e mais, um forte viés ideológico e apologético. O debate inicial que travávamos com as interpretações patriarcais da escravidão, defendidas com imenso sucesso por Gilberto Freyre e seus epígonos, logo se desdobraram em dura disputa com a historiografia neo-patriarcalista e as múltiplas vertentes de seus desdobramentos.

    A hegemonia da historiografia neo-patriarcalista da escravidão estadunidense ensejou seu desembarque no Brasil, através de diversos caminhos – pronta tradução de seus trabalhos referenciais, professores visitantes, historiadores brasileiros formados nos USA, etc. Esse movimento, de conteúdo político-ideológico ambicioso, com um atual amplíssimo sucesso, foi fortemente favorecido pelo Departamento de Estado e pela CIA, principalmente através da prestativa Fundação Ford. Naqueles anos, éramos acusados de esquerdistas paranóicos, quando apontávamos o dedo ianque na operação historiográfica, hoje documentalmente comprovada.⁶ O truque mais esperto do Diabo é convencer-nos de que ele não existe.

    Uma revolução copernicana

    Em 1978, a publicação e o enorme sucesso de público da tese O escravismo colonial, de Jacob Gorender, ex-dirigente do PCB, ex-fundador do PCBR, ex-prisioneiro político, foguearam o debate entre as visões materialistas do passado e as leituras neo-paternalistas da escravidão, de viéses social-democrata e, logo, social-liberal.⁷ Discutia-se sobre o passado com os pés no presente e os olhos no futuro. Acompanhei de perto o esforço do baiano genial em construir uma epistemologia marxista própria à leitura da escravidão brasileira, para afiançar e revolucionar a interpretação geral da formação social do país. Paradoxalmente, o debate ficou restrito sobretudo à Academia, sem maior repercussão entre as múltiplas vertentes da militância marxista brasileira, às quais ele se dirigia em forma prioritária.

    Muito logo, O Escravismo Colonial, magistral interpretação materialista da escravidão colonial como modo de produção historicamente novo, conheceu fortíssima campanha de impugnação, concluída, anos mais tarde, com ataque direto e pessoal ao autor, com o objetivo alcançado de seu literal cancelamento acadêmico. Um objetivo não garantido no confronto de idéias, mas pela hegemonia geral das forças conservadoras que apoiavam a campanha de descrédito. Todas essas questões abordadas no texto que segue, Filhos de Cã, Filhos do Cão: o trabalhador escravizado na historiografia brasileira.

    Em 1991, a vitória mundial da maré contra-revolucionária, assinalada pela dissolução da URSS e das ditas democracias populares do Leste Europeu, encerrava também os tempos de debates frutíferos sobre a escravidão colonial, tendo como eixo interpretativo a resistência e o trabalho do produtor escravizado. Nos anos seguintes, recuaram em forma substancial aqueles estudos e discussões, assim como os sobre a sociedade brasileira que optavam como ótica de análise a luta de classes. Eram os tempos do fim da história, da morte do marxismo, do socialismo, da luta de classes, do radioso amanhecer de tempos felizes sob a ordem capitalista, dizia-se.

    Mais tarde, quando os estudos sobre a escravidão retomaram importância, deram-se já sob a hegemonia plena das visões da negociação apaziguadoras entre escravizados e escravizadores, sempre em proveito dos primeiros. Os cativos teriam construído, com suas pequenas e incessantes negociações e vitórias, um mundo mais que vivível, quando não quase esplendoroso, como o já apresentado, em 1982, por Kátia de Queirós Mattoso, em Ser escravo no Brasil, narrativa fabulosa e hilária, saudada pela Academia como trabalho referencial.⁸ Em 1988, em magistral crítica sobre a historiografia brasileira especializada – A escravidão reabilitada –, Jacob Gorender lembrava que, se a colaboração e não a disputa de classes alcançara tamanhos sucessos para os oprimidos na escravidão, como se propunha, certamente ela apontaria o caminho a ser trilhado no presente.⁹

    Era da Contra-Revolução

    Durante esses anos, publiquei artigos variados e editei livros, no Brasil, na França e na Itália, abordando sobretudo a escravidão colonial brasileira. Aproveitei estadas na Itália para avançar o estudo do modo de produção escravista patriarca clássico e o que defini como pequeno mercantil, hegemônico nos dois séculos anteriores e posteriores à fundação do Império romano, com o objetivo de melhor compreender a escravidão colonial americana.¹⁰ Na virada do século, empreendi a consolidação sobretudo de artigos já publicados, com o objetivo de iniciar uma leitura sistemática da evolução do trabalhador escravizado na historiografia brasileira. Esbocei, assim, o trabalho agora publicado. Entretanto, sobretudo o refluxo dos estudos sobre a escravidão colonial e a hegemonia quase total da ótica neo-patriarcalista e colaboracionista na escravidão, dificultaram a possibilidade de continuação daquele projeto.¹¹

    Na pós-gradução, escasseavam propostas de pesquisa sobre a escravidão, ainda mais apoiados no método materialista. Nesses anos, o marxismo era anatematizado como aberração sectária a ser abandonado, de todo, por novos e mais gentis métodos e temas históricos – micro-historia, histórica oral, análise do discurso, história das mentalidades, história da sexualidade, histórica cultural, nova história política, etc. Historiadores consagrados se deram à escritura de biografias de reis, de rainhas, de princesas, de abnormidades sociais, e por aí vai. Convidado para contribuir à proposta de Programa de Pós-Graduação em História, trabalhei na Universidade de Caxias do Sul. Em associação com Florence Carboni, doutora em Linguística, intervimos no forte debate travado em torno da imigração colonial camponesa no sul do Brasil, fortemente influenciado por concepção identitárias, sobre a qual dirigi diversas dissertações de mestrado.

    Desde sempre, empreendera ensaio de interpretação sintética da formação social brasileira, da descoberta até 1888, como sustentáculo da investigação sobre a escravidão colonial brasileira. Prosseguira também no estudo das regiões africanas diretamente atingidas pelo tráfico em direção ao Brasil, com o mesmo objetivo, publicando, em 1988 – História da Africa Negra Pré-colonial.¹² Convidado a participar da fundação do PPGH da UPF, encarreguei-me das disciplinas sobre a história do Rio Grande do Sul, o que me permitiu publicar, em 2000, uma Breve história do Rio Grande do Sul, em mais de quinhentas páginas na edição original.¹³

    O homem põe, deus dispõe

    Preparei-me, finalmente, para avançar o trabalho proposto, Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira. Calculava que me exigiria uns dois anos de trabalho exclusivo. Mas o homem põe e deus dispõe. Em 2008, escrevera talvez o único artigo crítico sobre o livro de Francisco Doratioto, Maldita guerra, sobre o confronto da Tríplice Aliança contra o Paraguai, que se tornou, até hoje, espécie de interpretação semi-oficial do Estado, do Exército e da Academia brasileira, como parte do movimento de hegemonia historiográfica conservadora.

    Em 2008, aceitei o convite para participação, em 2009. de encontro em Buenos Aires, no ano seguinte, sobre o tema. Falei que nada publicara sobre aquele conflito, a não ser a resenha, em que propunha ser aquele livro essencialmente restauração da antiga historiografia nacional-patriótica brasileira, questionada pelo célebre ensaio jornalístico de Júlio Chiavenato.¹⁴ Disseram ser isso mesmo que queriam. Tratou-se de uma quase emboscada acadêmica. Fiquei logo sabendo que abriria o encontro polemizando com Francisco Doratioto. Era desertar, dizendo-me doente, ou preparar-me para o combate. Passei meses estudando furiosamente o tema, pelo qual me apaixonei. E não me saí mal, no confronto!

    A descoberta do Paraguai

    Em 2010, já envolvido no estudo da história da bacia do Prata, encerrei a coordenação de investigação sobre a economia pastoral escravista no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso e no Piauí. Os resultados da pesquisa foram publicados em três livros, assim como os textos de autores com trabalhos sobre a escravidão e a economia pastoril. De 2009 a 2018, por dez anos, orientei minhas investigações e orientações quase exclusivamente para o estudo da Guerra da Tríplice Aliança contra a República do Paraguai, sobre a qual publiquei uma história geral em quatro tomos, editada no Brasil e naquele país.¹⁵ Um projeto historiográfico que me permitiu conhecer colegas argentinos, uruguaios e sobretudo paraguaios magníficos. Trilhei, como nos tempos de jovem historiador da escravidão sulina, o norte da Argentina e o Paraguai, este último, de cabo a rabo! A maior parte dos trabalhos de meus orientandos e companheiros nessa aventura foi publicado no Brasil e no Paraguai.

    Desde minha opção pelo marxismo e pela revolução socialista, em 1967, ainda pseudo-estudante de Engenharia (raramente passava pelos portões daquela escola da PUC-RS), jamais me afastei da atividade política, como militante organizado ou independente, com períodos de desigual dedicação à luta política e social. Em 2018, aos 70 anos, me aposentei no PPGH da UPF. Então, com o golpe de 2016, voltara a me envolver intensamente na discussão da Revolução Brasileira e a luta contra o golpe. Nos últimos seis anos, publiquei três breves ensaios sobre o identitarismo negro, o neo-estalinismo e o conflito China-USA.¹⁶ Sobretudo, me dediquei a concluir trabalho de maior fôlego que vinha redigindo havia também longos anos – Revolução e contra-revolução no Brasil.¹⁷

    E o velho projeto, "Filhos de Cã, filhos de cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira", sem ter sido esquecido, ficara no computador, praticamente intocado havia treze anos, pesando-me sobre a consciência. O retorno a ele, e a extensão da análise aos dias atuais, exigiria-me tempo de que não disponho, após longo afastamento do tema, como centro de minha atividade como historiador. Sem vislumbrar qualquer possibilidade de retomá-lo e concluí-lo, decidi-me pela presente publicação, apenas virtual, sem qualquer atualização, ampliação e correção, já que consistiu em um esboço e uma contribuição à compreensão dos anos de debate acima referidos.

    Beco Passo da Batalha, fevereiro de 2022.

    Notas Palavras Iniciais

    ¹ MAESTRI, Mário. A agricultura africana nos séculos XVI e XVII no litoral angolano. Porto Alegre: EdUFRGS, 1978.

    ² O escravo no Rio Grande do Sul: A charqueada escravista e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST/ UCS, 1984.

    ³ MAESTRI, Mário. História e historiografia do trabalhador escravizado no RS: 1819-2006. Los estudios afroamericanos y africanos en América Latina: herencia, presencia y visiones del otro. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Centro de Estudios Avanzados, Programa de Estudios Africanos. "http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/coediciones/20100823031132/06mae.pdf

    ⁴ CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: Difel, 1962.

    ⁵ MAESTRI, Mário. A Nossa África: a Mãe Espoliada. Apresentação apresentada na sessão de abertura do I Colóquio sobre A História de África da Atlântica e a Educação, Fundação Joaquim Nabuco, Recife, 24 de maio de 2017. ESTUDIOS HISTÓRICOS – CDHRPyB- Año IX – Julio - Diciembre 2017 - Nº 18 – ISSN: 1688 – 5317. Uruguayhttps://estudioshistoricos.org/18/eh1817.pdf

    ⁶ CHAVES, Wanderson. A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria. (1950-1970). Curitiba: Apris, 2019. 295 p.

    ⁷ GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5 ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2013

    ⁸ MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. Pref. C. F. Cardoso. São Paulo: Brasiliense, 1982.

    ⁹ MAESTRI, Mário. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.

    ¹⁰ MAESTRI, Mário. Breve história da escravidão. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986; id. O escravismo antigo. 20 ed. São Paulo: Atual, 2002

    ¹¹ MAESTRI, Mário. Historiografia, Escravidão e Luta de Classes no Brasil. ESTUDIOS HISTORICOS. CDHRPyB- Año VI - Julio 2014 - Nº 12. ISSN: 16885317. Uruguay. https://estudioshistoricos.org/12/contra%20a%20corrente.pdf

    ¹² MAESTRI, Mário. História da África Negra Pré-colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

    ¹³ MAESTRI, Mário. Breve história do Rio Grande do Sul. Da pré-historia aos dias atuais. 2 ed. Porto Alegre: FCM Editora, 2021.

    ¹⁴ MAESTRI, Mário. A Guerra Contra o Paraguai: História e Historiografia: Da instauração à restauração historiográfica [1871-2002] », Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Colloques, mis en ligne le 27 mars 2009, consulté le 27 janvier 2022. URL : http://journals.openedition.org/nuevomundo/55579 ; DOI : https://doi.org/10.4000/nuevomundo.55579

    ¹⁵ MAESTRI, Mário. Paraguay: la República Campesina. 1810-1865. Asunción: Intercontinental, 2016. 287 p.; El Mar del Plata: dominación y autonomía en el sur de América: Argentina, Brasil, Uruguay (1810-1864). Asunción: Intercontinental, 2017; Guerra sin fin: la Triple Alianza contra el Paraguay: La campaña ofensiva. 1865-1865. Asunción: Intercontinental, 2016.

    ¹⁶ MAESTRI, Mário. Abdias do Nascimento: Quilombola ou capitão-do-mato? Ensaios de interpretação marxista sobre a política racialista para o Brasil. Porto Alegre: FCM Editora, 2018; Domenico Losurdo, Um Farsante na Terra dos Papagaios. Porto Alegre: FCM Editora, 2021; O despertar do dragão. Nascimento e consolidação do imperialismo chinês. 1949-2021. O conflito USA-China no mundo e no Brasil. Porto Alegre: FCM Editora, 2022.

    ¹⁷ MAESTRI, Mário. Revolução e contra-revolução no Brasil: 1530-2019. 2 ed. Porto Alegre: FCM Editora, 2020. 449 p. .https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil

    Primeira Parte

    Os Primórdios. Portugal.

    Da Colônia à Abolição

    1 Introdução

    Trabalhador Escravizado, Espelho Distorcido

    Em O escravismo colonial, Jacob Gorender lembra que o trabalhador escravizado ocupou, nas ciências sociais, antes da Abolição, em 13 de maio de 1888, e décadas após ela, de maneira mais ou menos perfeita, status correspondente à situação social que conhecera na escravidão. Até poucas décadas, foi abismal a discrepância entre o papel econômico-social objetivo do cativo na antiga formação social brasileira e as representações sobre ele. Essa afirmação pode ser estendida à pré-história e à proto-história da historiografia brasileira.¹ Foi também profunda a desqualificação do trabalhador escravizado na historiografia lusitana, que de modo raro se referiu à contribuição do negro-africano escravizado e à importância do tráfico negreiro na história de Portugal. As duas primeiras obras de referência sobre o tema, Os negros em Portugal: uma presença silenciosa, e História social dos escravos e libertos negros em Portugal: 1441-1555, foram escritas, respectivamente, por um brasileiro, José Ramos Tinhorão, e por um inglês, A.C. de C.M. Saunders.² Nos últimos anos foram publicados alguns trabalhos excelentes sobre aqueles temas.³

    As narrativas historiográficas brasileiras, até quase os anos 1960, e lusitanas, até há poucos anos, desconheceram ou minimizam a contribuição do trabalhador escravizado nas respectivas formações sociais. Paradoxo que se agrava no caso do Brasil, onde foi essencial o papel social objetivo do escravizado, primeiro americano, a seguir negro-africano. Mesmo quando participava nas reconstruções historiográficas lusitanas, luso-brasileiras e brasileiras tradicionais, o cativo foi no geral por elas explicado, sem participar de sua explicação. Quando muito, ele surgia como uma espécie de figurante mudo de um drama que jamais teria protagonizado.

    Observável sem dificuldade na historiografia, esse fenômeno foi mais ou menos comum aos outros grandes domínios de expressão da cultura dita culta e das ciências sociais lusitanas, luso-brasileiras e brasileiras – ficção em prosa; ficção em verso; dramaturgia; artes plásticas; música; sociologia; arqueologia; arquitetura, etc. Nos fatos, tratou-se de fenômeno cultural unitário, articulado no tempo e no espaço. No relativo ao Brasil, exemplifica tal fenômeno que não tenhamos, até hoje, romances históricos clássicos sobre a escravidão e que quase inexistam levantamentos arqueológicos sistemáticos referentes ao escravismo – de quilombos, de senzalas, de charqueadas, de cemitérios de negros, etc.

    No Brasil, até a Abolição, as narrativas sobre a escravidão foram na essência justificações ideológico-culturais de realidades sociais pré-existentes e existentes, produtos de processo no qual, através de mediações mais ou menos complexas, as práticas e as formações sociais organizam em forma tendencial o mundo das representações sociais, desde a ótica das classes dominantes. Sobre esse processo, lembravam os linguistas soviéticos M. Bakhtin e V.

    Volochinov: A realidade ideológica é uma superestrutura situada diretamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um locatário habitando o edifício social dos signos ideológicos.

    A representação e o Representado

    As representações descrevem determinações essenciais ou arranham a superfície dos fenômenos representados. Um signo não existe apenas como parte da realidade, ele reflete uma outra. Ele pode distorcer esta realidade, ser fiel a ela, ou ainda a perceber de um ponto de vista especial, etc.⁵ Porém, no mundo das expressões ideológico-culturais, as distorções entre o ser-objeto e sua representação não são arbitrárias, mas prenhes de conteúdos, mais ou menos de maneira substancial ligado à essência negada, ignorada ou desconhecida do fenômeno abordado. No domínio de contradições sociais antagônicas, as narrativas textuais, orais e escritas, registrando representações ideológicas hegemônicas, expressam, refletem e consolidam as relações sociais dominantes, possuindo funções justificadoras, legitimadoras e integracionistas.

    As representações dominantes durante a ordem social escravista expressavam as necessidades das classes escravizadoras de manterem na subordinação os produtores escravizados, fortalecerem o auto-convencimento sobre suas razões particulares, consolidando assim a forma de produção e exploração vigente. Entretanto, não se tratavam de simples invenções oportunistas originadas nas classes dominantes. Não eram, assim, construção arbitrárias dos escravistas. Eram visões de mundo originadas, determinadas e sustidas pelas relações sociais de produção e reprodução vigentes.

    As representações do trabalhador escravizado negro-africano, registradas pela pré-historiografia, proto-historiografia e historiografia lusitanas, luso-brasileiras e brasileiras, abarcam mais de quinhentos e cinquenta anos, se tomamos como marco inicial da gênese desse discurso a chegada dos primeiros negro-africanos em Portugal, em 1444. Para tal, deixamos de lado as visões dominantes no mundo lusitano sobre os cativos mouros. Um período cronológico cem anos mais longo do que a vigência da ordem escravista colonial brasileira, com início em 1532 e fim em 1888.⁶

    De 1444 até os dias de hoje, as formações sociais portuguesa, luso-brasileira e brasileira conhecerem transformações políticas e sociais de qualidade. Classes dominantes e dominadas surgiram, desenvolveram-se, entraram em crise, extinguiram-se, metamorfosearam-se, gerando novas representações ideológicas sobre as novas formas dominantes de exploração do trabalho. Paradoxalmente, a análise das narrativas historiográficas tradicionais sobre o cativo e a escravidão negro-africana, daquela primeira data até hoje, sugere, na aparente descontinuidade, profunda unidade essencial e, até mesmo, formal. Mesmo quando, após 1888, o trabalhador escravizado conquistou um mais significativo espaço nessas narrativas, ele permaneceu, como já proposto, um ser passivo no mundo social, explicado pelas operações interpretativas, sem apoiar e explicar de maneira substancial estas últimas.

    A profunda unidade aparente dos relatos sobre o negro-africano e seus descendentes escravizados sugere não apenas a solidez e a permanência, no passado, dos fenômenos reproduzidos, ou seja, a escravidão colonial. Sugere também continuidades das múltiplas sociedades que produziram aquelas representações, através de mais de meio milênio. Essa continuidade nos relatos sobre a escravidão e o trabalhador escravizado assinalaria a ausência de rupturas de qualidade nas estruturas das sociedades em questão. O que determinaria ausência de transformações essenciais de forma e de conteúdo nas suas representações. Ou a eventual articulação não necessária entre o representado, o representante e a representação. O que negaria a proposição de que uma transformação de qualidade na organização social determinaria em maneira necessária modificações estruturais nas suas representações.⁷

    Visões de Mundo

    A profunda homogeneidade essencial das narrativas sobre o pouco mais de meio milênio de escravidão moderna sugeriria domínio total das representações nascidas das classes dominantes. E, assim sendo, a incapacidade essencial das classes escravizadas de gerarem narrativas e contra-narrativas ideológico-culturais expressando suas visões de mundo e necessidades, ainda que limitadas pelas circunstâncias objetivas e subjetivas que conheciam. Sugeriria do mesmo modo a impotência dos escravizados de criarem as condições gerais para abrirem espaço para representações de suas necessidades por segmentos sociais exteriores a elas. Em 1889, em O que fazer, V.I. Lenin analisou a produção de pensamento revolucionário acabado como processo de modo necessário exterior ao movimento operário moderno, que propunha incapaz de elevar-se, por si só, à consciência da oposição irredutível e de seus interesses com toda a ordem política e social existente. Isso é, de alçar-se ao nível de consciência social-democrata [socialista revolucionária].

    Para o dirigente soviético, a consciência revolucionária elaborada podia chegar apenas desde fora da classe operária. Ela seria produto de intelectuais burgueses que se antagonizavam com os interesses das classes a que pertenciam ou estavam próximas, para interpretar de maneira científica o mundo, desde o ponto de vista dos oprimidos, a partir das contradições econômicas e sociais postas pela ordem capitalista.⁸ Visão que não propunha o intelectual burguês revolucionário como um Prometeu, trazendo do Olimpo o fogo do conhecimento para os simples mortais. Tratava-se e trata-se de processo cognitivo de realidade objetiva dependente da construção pelos trabalhadores das condições sociais para tal. Os intelectuais apenas decifram, no mundo das representações, as possibilidades e realidades produzidas pelas classes trabalhadoras.

    Investigações históricas mais detidas comprovaram que, desde a gênese do escravismo negro-africano, em meados do século 15, geraram-se narrativas que dissolviam no essencial os relatos justificadores e legitimadores da exploração escravista. As performances argumentativas dessas representações, provenientes desde afora das classes escravizadas, aproximaram-se de maneira crescentemente essencial do objeto representado. Elas expressavam visões de mundo impossíveis de serem articuladas como narrativas teóricas pelas classes escravizadas. No entanto, à exceção dos momentos de crise das formações escravistas, essas visões jamais alcançaram a frutificar e, sobretudo, legitimar-se como explicações performativas dos fenômenos abordados, conhecendo marginalização, silenciamento e esquecimento.⁹

    O sentido da aparente homogeneidade essencial das narrativas sobre o trabalhador escravizado, durante a gênese, consolidação, crise e superação da ordem escravista é questão que não foi ainda elucidada a contento. Não foi no mesmo sentido discutida e explicada de modo suficiente a incapacidade das negações das justificativas do escravismo de alcançar repercussão social, mesmo secundária, produzindo narrativas explicativas consistentes e tendencialmente perenes.

    Consenso Escravista

    No mundo Ibérico, a consolidação do tráfico de trabalhadores africanos escravizados pôs em questão a justiça – ou a injustiça –, não da escravidão como instituição. Questionou apenas não são sujeitos a escravização de negro-africanos livres capturados na costa do Continente Negro. A pré-existente servidão do mouro – muçulmano era compreendida como uma consequência moral e legal de uma derrota em guerra justa ou da sua rejeição, em conhecimento de causa, da fé verdadeira, quer dizer, do cristianismo. Era o justo castigo terrestre a graves ofensas contra o iracundo Criador. Eram essas as explicações e justificativas dominantes da exploração daquele trabalhador escravizado.¹⁰

    O negro-africano era um pagão, mas não um infiel. Era um rústico que, jamais tendo conhecido a Palavra Divina, não podia ser acusado e castigado por negar-se a aceitá-la. Não pecava contra um Verbo que não se manifestara, ou não se fizera ouvir. Devia conhecer e rejeitar a doutrina reta para, apenas então, conhecer a servidão como castigo do pecado inaceitável. A discrepância entre a teoria e a realidade, entre a doutrina e a prática, colocava-se na plenitude de sua contradição também para a cristianíssima Coroa lusitana, primeira grande envolvida e exploradora dos negócios africanos, com destaque para o apresamento de negros da costa da África. A escravidão do negro-africano não podia ser justificada com os mesmo critérios que apoiavam a servidão do mouro. Mas a necessidade faz a lei e, com ela, a moral.

    Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx lembrava que, sobre as diferentes formas de propriedade e as condições sociais de existência levanta-se toda uma superestrutura de sentimentos, de ilusões, de modos de pensar e de concepções filosóficas, com expressões infinitamente variadas, que a classe, como um todo, cria e modela a partir de seus fundamentos materiais e das condições sociais correspondentes.¹¹ Com maior ou menor dificuldade e criatividade, as contradições, entre as justificativas consolidadas de uma forma de exploração e as novas realidades objetivas que se apresentam quando de sua plena vigência, geram novas construções apologéticas. E, em geral, elas são produzidas a partir da adaptação-manipulação dos signos e das enunciações produzidos e estruturados nos discursos estabelecidos na vigência das realidades superadas. Essa transição é ainda menos dramática quando as rupturas que exigem novas narrativas não são essenciais, como no caso da transição da escravidão moura à negro-africana, na qual apenas variaram a etnia, a cultura e a religião do produtor escravizado.

    Produzindo Distorções

    A produção de narrativas apologético-justificativas não se dá em forma linear, imediata, mecânica e consciente. Ainda que a consciência da necessidade dessa produção e de sua defesa não seja jamais inexistente. A construção e a consolidação das novas justificativas, por parte das classes que as originam, processam-se através de uma seleção dos materiais existentes e da avaliação relativa de sua recepção pelos grupos sociais a que se destinam. Em geral, entre os destinatários das narrativas justificadoras encontram-se em destaque os subordinados. Nesse caso, é necessário a existência de intercomunicação. semiótica entre dominados e dominadores, realidade mais ou menos limitada na escravidão. Mikhail Bakhtin lembra que o signo e a situação social onde se insere são indissoluvelmente ligados. O signo – propunha – constitui momento de confronto permanente de interesses sociais contraditórios, sempre e quando as comunidades pertençam a uma única comunidade semântica.¹²

    O analista desavisado pode cobrir com conteúdos semânticos anacrônicos narrativas produzidas em contextos histórico-sociais diversos. O caráter socialmente dirigido e excludente das narrativas do passado dificulta em geral a compreensão de sua funcionalidade profunda por contemporâneos habituados à enunciação de pressupostos de conteúdos universalistas e tidos como atemporais. No passado, não raro, discursos justificadores visavam as camadas sociais que os locutores reconheciam como possuidoras de essência plena. E marginalizavam ou ignoravam, de modo mais ou menos ampla, grupos sociais subalternizados que, mesmo fora da esfera de abrangência das narrativas, as motivavam e as determinavam.

    A ordem escravista baseava-se em forma substancial, muitas vezes, no estabelecimento de contatos entre grupos sociais dominantes e dominados pertencentes a comunidades semióticas diversas e estranhas, umas às outros. O que contribuiu para que a violência física constituísse fator de coesão social primordial, considerando-se a baixa capacidade coesiva das narrativas ideológicas na ausência substancial da referida comunicabilidade semiótica. Um trabalhador escravizado apenas chegado da África participava de maneira marginal das narrativas e visões de mundo de seu escravizador. Para melhor consecução das necessidades dos escravizadores, impunha-se que os escravizados fossem introduzidos no campo ideológico-semiótico dos escravizadores, na medida suficiente para facilitar a produção material e a dominação social. Para tanto, tendia-se a reprimir os códigos linguísticos, culturais, simbólicos, religiosos, etc. dos subalternizados, em favor da extensão, sempre chã e aproximativa, do campo ideológico-comunicacional dos dominadores. A dissolução e empobrecimento do universo semiótico dos subalternizados eram formas de restrição de sua capacidade de resistência. A não introdução do rústico nos códigos comunicacionais civilizados era vetor de sua redução à barbárie escravista.¹³

    Comunidade Semiótica

    A construção de comunidade comunicacional única, ainda que jamais democrática e igualitária, e sempre autoritária e hierarquizada, permitia que as narrativas dominantes abrangessem, de modo mais ou menos amplo, também as classes subalternizadas, mesmo e sobretudo quando eram objeto da desqualificação apologética. A inclusão dos excluídos nas narrativas justificadoras ampliava-se enquanto se expandia a construção de comunidade semiótica envolvendo opressores e oprimidos. Na escravidão colonial, quando o cativo novo ou da Costa, apenas chegado da África, tornava-se um cativo ladino, semi-aculturado, ou era um escravizado crioulo, nascido nas Américas. Nesses casos, o gerenciamento ideológico dos subalternizados assumia função crescente, mesmo quando a compulsão física se mantivesse como essencial.¹⁴

    Nos mais de quinhentos anos sucessivos à captura dos primeiros negro-africanos na costa setentrional da África, as classes dominantes escravistas produziram narrativas racionalizadoras do tráfico de trabalhadores escravizados, adaptadas às flutuações históricas do longo período. Com a derrota do sul escravista dos USA, na Guerra da Secessão, em 1865, o comércio transatlântico de trabalhadores escravizados perdeu seu último apoio substantivo, impondo-se então o abolicionismo do tráfico. Entretanto, a escravidão colonial americana permaneceu vigente por ainda vinte e três anos.¹⁵ Também a defesa dos proprietários luso-brasileiros e brasileiros do tráfico e da ordem escravista processou-se através de adaptações e metamorfoses determinadas pelo contexto histórico, até a definitiva abolição do comércio atlântico de africanos em direção ao Brasil, em 1850, e da escravatura, em 1888. Como todas as narrativas justificadoras da realidade social, essa apologia foi determinada pela história de maneira substancial.

    Mikhail Bakhtin lembrava: Uma inscrição, como qualquer enunciação-monólogo, é prevista para ser compreendida; ela é orientada para uma leitura no contexto da vida cientifica ou da realidade literária do momento, ou seja, no quadro da evolução da esfera ideológica da qual é parte integrante.¹⁶ Quando elas foram produzidas em contexto sociocultural histórico anterior ao de seus analistas, as apologias necessitam ser contextualizadas, para que os signos desvelem seus conteúdos essenciais quando da enunciação, revelando assim o seu sentido exato na época de sua produção. A concretização da palavra se dá através da sua inclusão no contexto histórico real de sua realização primitiva.¹⁷

    O Negro no Poço

    A defesa do padre António Brásio, erudito africanista lusitano, do caráter segundo ele não racista da cultura e da sociedade dominante portuguesas, exemplifica a necessidade permanente da contextualização das narrativas. Em 1944, o jesuíta lembrava que, em Portugal, o preto era, não um escravo à maneira dos matos do Brasil, das Antilhas, da Reunião, dos estados meridionais da América do Norte.¹⁸ No que tinha razão, ainda que não devido às razões que supunha. A escravidão em Portugal era forma de produção subordinada, doméstica e pequeno-mercantil. Devido a esse seu caráter, ensejava aos produtores diretos condições de vida médias no geral superiores às do escravismo das colônias mercantis americanas, onde dominava o modo de produção escravista colonial. Fato do qual não se pode deduzir benignidade e humanismo português, já que também foram lusitanos, por séculos, os escravistas dos matos do Brasil.¹⁹

    Como exemplo da pretensa benevolência lusitana, o bom sacerdote lembrava que, em 13 de novembro de 1515, ao saber o rei dom Manuel que escravos que em Lisboa faleciam não eram suficientemente soterrados, o que levava os cães vadios a devorá-los, visto que a maioria deles [os escravos] se atirava ao monturo, o monarca mandou abrir um poço – na futura rua do Poço dos Negros – para que se atirassem os ditos escravos à cova e, de tempos a tempos, se lançasse sobre eles alguma quantidade de cal virgem. Um leitor contemporâneo desprevenido interpretará o exemplo como meta-discurso do padre Brásio sobre a violência das classes dominantes renascentistas lusitanas para com o trabalhador escravizado. Entretanto, o sacerdote servia-se daqueles sucessos para demonstrar a magnanimidade da ordem portuguesa de então. Com o poço e com a cal virgem se dava uma sepultura digna aos escravizados falecidos.

    Em História social dos escravos e libertos negros em Portugal, A. C. Saunders propunha que o rei dom Manuel assim procedera em defesa da salubridade de Lisboa, já que os mais grosseiros dos comerciantes e donos de escravos deixavam pura e simplesmente seus cativos mortos a apodrecer em estrumeiras e monturos, ou [...] os enterravam em sepultura tão à superfície que os cães facilmente escavavam e comiam os cadáveres.²⁰ Um comportamento atinente à saúde pública e à beleza da capital do reino, que seria

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