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De que lado você samba?: Raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição
De que lado você samba?: Raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição
De que lado você samba?: Raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição
E-book450 páginas4 horas

De que lado você samba?: Raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição

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Sobre este e-book

O livro trata das dinâmicas do racismo na cidade da Bahia – a mais negra do país - nas primeiras décadas depois da Abolição. Ao percorrer diferentes territórios físicos e culturais da capital baiana, focaliza aspectos de sua vida cotidiana (festas, religiosidades e sociabilidades urbanas) e personagens centrais desse momento da cidade. Nesse período, trabalhadores braçais, médicos, cientistas, lideranças religiosas e jornalistas, negros e brancos, elaboravam e disputavam suas crenças, projetos e expectativas para a jovem República que se instituía, reeditando exclusões baseadas em critérios sociorraciais. A obra oferece, assim, uma análise dos confrontos políticos experimentados naqueles anos, marcados pelas mudanças na estrutura de poder e pela ênfase na ciência, especialmente a medicina, como forma de legitimar a exclusão racial e social.
O livro, no formato ePub3, é composto por uma introdução, seis capítulos e um epílogo, com 165 imagens, 33 fonogramas e 2 vídeos, permitindo ver e escutar ao mesmo tempo em que se realiza a leitura do texto. Como todos os volumes da coleção "Históri@ Illustrada", a obra é acompanhada por um vídeo que pode ser visto (ou baixado) gratuitamente. Acesse o vídeo "De que lado você samba?" no canal do Cecult - Históri@ Illustrada no youtube.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de jun. de 2021
ISBN9786586253801
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    De que lado você samba? - Gabriela dos Reis Sampaio

    Capa do livro, De que lado você samba? Raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição. Autores, Gabriela dos Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque. Editora Unicamp.

    Gabriela dos Reis Sampaio

    Wlamyra Ribeiro de Albuquerque

    DE QUE LADO VOCÊ SAMBA?

    Raça, política e ciência na Bahia do pós-abolição

    Editora1Lunicamp

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    Reitor

    MARCELO KNOBEL

    Coordenador Geral da Universidade

    TERESA DIB ZAMBON ATVARS

    editoraUnicamp

    Conselho Editorial

    Presidente

    MÁRCIA ABREU

    Ana Carolina de Moura Delfim Maciel – Euclides de Mesquita Neto

    Márcio Barreto – Marcos Stefani

    Maria Inês Petrucci Rosa – Osvaldo Novais de Oliveira Jr.

    Rodrigo Lanna Franco da Silveira – Vera Nisaka Solferini

    colecao

    Coleção Históri@ Illustrada

    Comissão Editorial

    Silvia Hunold Lara (Coordenadora)

    Vera Nisaka Solferini – Maria Clementina Pereira Cunha

    Martha Campos Abreu – Sidney Chalhoub

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    Sumário

    Capa

    Folha de rosto

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    INTRODUÇÃO

    1. O CARNAVAL DO TREZE DE MAIO

    1.1. As cores da Abolição

    1.2. A liberdade da Cabocla

    2. VARRERAM O SILVA JARDIM

    2.1. De que lado a banda negra toca?

    2.2. Africanos, meretrizes e mulatas

    2.3. Da Bahia, para inglês ver

    3. A REPÚBLICA DOS MÉDICOS

    3.1. O lugar da ciência na roda da política

    3.2. Esqueçamos o incidente

    3.3. O retorno do Doutor Farinha Seca

    4. NAVEGADORES E CIENTISTAS

    4.1. Os doutores da folia

    4.2. Momo, Vasco da Gama e Macaco Beleza

    4.3. O problema da raça

    4.4. O doutor negro e o racismo científico

    4.5. O roubo da Cabocla

    5. DOUTORES E FEITICEIROS

    5.1. Nos candomblés

    5.2. Religião e política

    5.3. Sob a proteção dos orixás

    5.4. Cabeça feita ou ruim da cabeça?

    6. SANTO GONOCÔ E PAI OJÚ

    6.1. A gente quer sambar

    6.2. O barúiu do vatapá

    6.3. A civilização não é uma utopia no continente africano

    EPÍLOGO - QUASE PRETOS DE TÃO POBRES

    NOTAS

    CRÉDITOS DE IMAGENS, FONOGRAMAS E VÍDEOS

    FONTES E BIBLIOGRAFIA

    SOBRE AS AUTORAS

    Pontos de referência

    Capa

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    1. Vista da cidade de Salvador, 1860.

    1. Vista da cidade de Salvador, 1860.

    Por muito tempo, Salvador foi mais conhecida como Cidade da Bahia, como se a conexão com o Atlântico fosse a sua melhor definição. Não por acaso, ela foi, e continua a ser, muito descrita e retratada a partir do mar. Navegadores e viajantes contaram as suas primeiras impressões da cidade quando ainda a viam a certa distância, erguida no relevo irregular diante das águas. Maximiliano da Áustria, por exemplo, no tórrido janeiro de 1860, enquanto se aproximava da costa, registrou que sob o rico e dourado esplendor solar dos trópicos e um reluzente céu azul, chegamos, às 10 horas, de coração alegre, à grande e extensa Bahia de Todos os Santos. Antes dele, Maria Graham viu uma cidade magnífica de aspecto, vista do mar, [que] está colocada ao longo da cumeeira e na declividade de uma alta e íngreme montanha.¹ Vista da cidade, a baía também se fazia notar. Cronistas, desenhistas e fotógrafos fizeram registros em que aparecem os casarões coloniais da parte baixa, voltados para o mar, a encosta cheia de vegetação e o casario da parte alta de Salvador. Uma bela cidade, em dois níveis, como se pode ver nas fotografias panorâmicas da época.

    2\. Panorama de Salvador, 1875.

    2. Panorama de Salvador, 1875.

    3\. Detalhe do panorama de Salvador, 1875.

    3. Detalhe do panorama de Salvador, 1875.

    No desembarque, a paisagem deslumbrante era o cenário de um dos principais destinos dos milhões de africanos escravizados que, com trabalho pesado, garantiam a riqueza das elites bem estabelecidas em diferentes cidades no mapa atlântico. Assim que pisasse no porto, qualquer viajante do século XIX passava a transitar entre a gente negra e pobre que ocupava o espaço público com seus afazeres, sociabilidades e ritmos. Em Salvador, culturas, tradições e religiosidades constituídas em diversas sociedades africanas refaziam-se, cotidianamente, dentro dos limites configurados por relações escravistas. A esses trabalhadores, em grande parte adeptos do candomblé, a rua garantia o sustento, era lugar de disputa por fregueses, autonomia e direitos como o de professar as suas crenças. A saudação a Exu que se ouve a seguir é a maneira de esse povo de santo pedir caminhos abertos para ocupar as ruas da cidade.

    4. Trabalhadores negros diante dos armazéns na zona portuária, 1902.

    4. Trabalhadores negros diante dos armazéns na zona portuária, 1902.

    1. Sirê de Exu, Filhos de Gandhi.

    Com uma população em torno de 56 mil habitantes, em 1855, Salvador era majoritariamente negra: desse total, 67% eram pretos e pardos; 30% da população era constituída por escravos, segundo Kátia Mattoso.² Ainda na primeira metade do século XIX, segundo João Reis, 42% da população era escrava e 58% dela era livre ou liberta – seu cálculo é para o ano de 1835. Naquele ano, os africanos constituíam 33,6% da população, dos quais 26,5% eram escravos e 7,1% eram livres. Entre os brasileiros e europeus, que perfaziam 66,4% do total de habitantes da cidade, 28,2% eram livres e brancos, 22,7% eram livres e libertos de cor, e 15,5% eram escravos. Pelas contas desse historiador, a população de Salvador era de aproximadamente 65 mil pessoas, em 1835.³ Nos anos que antecederam a extinção definitiva do tráfico de escravizados para o Brasil, em 1850, tal como se viu em outros portos do litoral brasileiro, houve o aumento da entrada de africanos na Bahia. Em Salvador, a população africana era grande, mesmo na segunda metade do século XIX, depois que o tráfico atlântico passou a ser duramente reprimido e o comércio interprovincial foi incrementado.

    Em 1872, segundo o censo, a população da cidade era de 108.138 pessoas. Desse total, 95.637 (88,4%) foram classificados como livres, e 12.501 (11,6%) eram escravos, dos quais 36,7%, africanos. Em termos de identificação racial, essa população aparece no censo como brancos (30,9%), mulatos (43%), negros (23,5%) e caboclos (2,2%). Os brancos seguiam minoritários em termos censitários, embora abundassem na classe dos proprietários de terras e escravos, funcionários públicos e doutores, fossem eles médicos, engenheiros ou advogados. No entanto, crescia em todo o país o consenso de que o escravismo estava se tornando o principal obstáculo ao desenvolvimento nacional. Poemas, crônicas, charges e peças teatrais – a exemplo de Scenas da escravidão – eram, cada vez mais, parte do repertório abolicionista que buscava emocionar o público, representando nos teatros o cotidiano de violência.

    5\. *Scenas da escravidão*, capa de partitura para piano.

    5. Scenas da escravidão, capa de partitura para piano.

    Ainda na década de 1860, fotógrafos estrangeiros instalaram-se na freguesia da Sé, na cidade alta, de onde avistavam a baía tão decantada pelos viajantes. Salvador foi então fotografada em terra firme, sobre os telhados do bairro comercial na cidade baixa. Daquelas janelas coloniais viam-se a movimentação do porto e as ruas que permaneciam agitadas pelo comércio. Essa cidade desnivelada geográfica e socialmente expunha a céu aberto peculiaridades históricas e culturais a atrair a atenção dos fotógrafos que podiam notá-las das janelas de seus estúdios. Na imagem a seguir, veem-se homens e mulheres negros próximos ao sobrado no qual era anunciado um estúdio de Photographia.

    6\. Praça do teatro São João, a poucos metros de um estúdio fotográfico.

    6. Praça do teatro São João, a poucos metros de um estúdio fotográfico.

    Quando a ordem escravista entrou em falência, distinguir pretos, mestiços e brancos ou livres, libertos e escravizados, mais do que trabalho demográfico, foi exercício político fundamental para a organização do mundo idealizado pelas elites, no qual as hierarquias sociorraciais pudessem ser preservadas. Entre 1870 e 1888, o número de libertos e negros nascidos livres cresceu no rastro da rebeldia dos escravizados e das leis emancipacionistas. A escravidão definhava, perdendo legitimidade e amparo legal. Enquanto isso, Salvador ia sendo estampada em crônicas, charges, partituras e cartões-postais como a África nas Américas, a capital que guardava nítidas memórias do tempo do cativeiro e uma musicalidade com fortes referências africanas, tal como se pode ouvir na voz do compositor de chulas, modinhas e lundus Xisto Bahia (1841-1894).

    2. Preta Mina, de Xisto Bahia.

    A cidade marítima incrustada na natureza bruta dos trópicos foi dando lugar a representações que ora adocicavam a labuta dos escravizados e exaltavam o exotismo das culturas africanas, ora animalizavam a população negra. Esse deslocamento calculado entre a encarnação do idílico e da barbárie foi empenho das elites para manter a sua posição de poder, quando a condição senhorial estava na berlinda. No esforço de racializar o seu mundo, ou seja, de atribuir sentidos raciais a ações, projetos e posições políticas dos grupos sociais, essa elite oitocentista exibiu a capital da Bahia como lugar refratário a transformações profundas e, por isso, tradicional. Era como se a cidade fosse refém da configuração geográfica que a definia no mapa nacional e da estrutura colonial que, a partir dela, fundou o Brasil. Nessa dinâmica política e cultural, a gente negra da baía pitoresca circulava por todo o Atlântico, impressa nos cartões-postais, como registros de permanências.

    7\. Coleção de postais com trabalhadores negros, *c.* 1860.

    7. Coleção de postais com trabalhadores negros, c. 1860.

    Tais imagens foram muito úteis por dar materialidade à ideia de subalternidade e exotismo, especialmente das mulheres negras que trabalhavam nas ruas. Os estereótipos da preta quituteira, da mulata sensual, do capoeirista ágil que resolvia as desavenças na risca da faca continuaram a ser estampados como marcas históricas e culturais da cidade no pós-Abolição. As mulheres encaravam as lentes fotográficas com roupas, torços, pulseiras e adereços que as apresentavam como vendedoras de rua. Eram comerciantes que, com seus balaios, agenciavam suas expectativas e formas de liberdade no espaço público.

    8 e 9. Mulheres negras com roupas e adereços que se tornaram típicos, 1885 e *c.* 1869.

    8 e 9. Mulheres negras com roupas e adereços que se tornaram típicos, 1885 e c. 1869.

    Também fazem parte dessa mesma construção de estereótipos as marcas da tradição, do atraso, do passadismo e da persistência de relações antiquadas que, em geral, justificam não só as desigualdades raciais, mas também os desequilíbrios regionais. Se a bela mulata representava a baía pitoresca, a quituteira disforme foi figura frequente nas crônicas políticas que buscavam ridicularizar a Bahia, em âmbito nacional. Foram frequentes, nos primeiros anos da República, charges que provocavam riso, quando a caracterizavam com as formas de uma negra sisuda e com traços animalizados, como a que vemos a seguir.

    10\. Caricatura publicada na capa da revista *O Malho*, 1919.

    10. Caricatura publicada na capa da revista O Malho, 1919.

    Há muitas disputas políticas que essas imagens tentam esconder ou amenizar, mas também acordos e conquistas negras se tornam visíveis a partir delas. Como se verá nas próximas páginas, a presença negra não estava restrita aos lugares sociorraciais subalternos e estereotipados. Negros e negras rivalizaram e ocuparam espaços políticos e culturais, assim como territórios urbanos relevantes durante a crise do escravismo e no pós-Abolição. Carregadores, vendedoras de rua, capoeiras, jornalistas, carnavalescos, médicos e artífices negros contrariavam os retratos emoldurados pela cidade pitoresca.

    Este livro é sobre a experiência negra que não cabe nos cartões-postais numa cidade muito mais plural do que permite o enquadramento das lentes que buscam exotismo. Ambivalências, divergências e distinções de projetos políticos ganharam expressão nas muitas circunstâncias em que homens e mulheres se expressaram publicamente, convidando-nos a um olhar mais matizado para essa cidade com muitas fronteiras simbólicas, cadenciada por ritmos de matriz africana e assimetrias sociais.

    Analisaremos os litígios, as tensões e as negociações nas fronteiras sociorraciais de Salvador, focalizando especialmente o período entre 1888 e 1905, quando não faltaram crises, cisões e reformas de diferentes proporções e profundidades na sociedade brasileira. A Abolição, a crise da Monarquia, a estruturação do governo republicano, a divulgação das teses do racismo científico, a regulamentação do carnaval, a perseguição aos candomblés foram transformações sociais, políticas, econômicas e científicas interligadas que tiveram lugar naquela opulenta cidade de negros.

    Fronteiras são sempre zonas instáveis, incertas. Onde acabava a paisagem da baía pitoresca e começava a cidade pujante dos grandes comerciantes, mas também das ganhadeiras? A partir de que ponto o passado escravista foi deixado para trás, e o que desse passado foi preservado e contestado? Quais as linhas divisórias entre os planos republicanos dos estudantes de medicina e aqueles dos artesãos negros e letrados? Como intelectuais negros buscaram se distinguir naquele mundo racializado? Quais os princípios hierárquicos do velho mundo imperial a serem preservados na ordem republicana? Quais os limites entre as sociabilidades próprias ao escravismo e aquelas projetadas para o pós-Abolição?

    O que propomos é nos movermos notando a temperatura das mudanças históricas e a velocidade de suas freguesias mais centrais. Estamos falando daquelas mais densamente povoadas no coração da cidade alta – especialmente a Sé, mas passando também por outras, como Santo Antônio, chegando até a distante Vitória – e as da Conceição da Praia e do Pilar, na cidade baixa, que incluíam o porto e as instalações a ele relacionadas. Por isso, estamos interessadas na dinâmica urbana de uma cidade configurada secularmente por pertencimentos de diferentes ordens e com territórios dados pela condição jurídica, racial e de classe de seus habitantes. Este é um livro para ler, ver e ouvir, seguindo os lugares sociais e espaciais que se fizeram fronteiriços racialmente na capital baiana entre 1888 e 1905.

    11\. Planta da cidade de Salvador em 1894, por Adolfo Morales de los Rios.

    11. Planta da cidade de Salvador em 1894, por Adolfo Morales de los Rios.

    A freguesia da Sé, uma das mais densamente povoadas, merece destaque. Local onde a cidade se iniciou nos tempos coloniais, era lá, ainda, que se concentravam, ao longo da segunda metade do século XIX, o centro do governo administrativo e religioso da província, além das residências de ricos comerciantes e altos funcionários públicos, bem como as moradias de trabalhadores livres e libertos, muitas vezes nas lojas de grandes sobrados e pequenas casas nas ruas centrais. Havia também muitos escravos na Sé, grande parte deles empregada no serviço doméstico ou no ganho, atividade que garantia mais rendas aos seus senhores e movimentava a vida urbana.

    12\. As freguesias de Santo Antônio e da Sé.

    12. As freguesias de Santo Antônio e da Sé.

    Podiam ser carregadores de cadeiras ou trabalhar, no mesmo espaço que libertos e livres, na venda de produtos diversos – água, lenha, mingau, frutas, doces; embora circulassem por toda a parte, concentravam-se nas áreas centrais da cidade. Ainda que os escravos de ganho vivessem separados de seus senhores, preferindo morar em outras áreas, como Pilar ou Penha, eram numerosos os homens e as mulheres de cor que viviam na Sé. Não por acaso, mesmo no século XX, essa freguesia continuou a ser retratada e cantada como síntese da imagem da Bahia tradicional do tempo dos ioiôs e das sinhás, onde a democracia racial teria formado o tipo nacional, mestiço, com mulheres que requebram para o deleite dos homens.

    Com seus sobrados, igrejas, santos e montes tal qual um postal, como evoca o paulista, nascido em Campinas, Dênis Brean, em Bahia com H, desejava-se a gostosa Baía dos amantes, servil, mulata e sem marcadores raciais que revelassem violências e desigualdades. A grafia da Bahia com h passou a ser a forma oficial de distinguir o estado de outras baías, em 1931, graças a um decreto governamental. Na canção composta no final do Estado Novo e gravada por Francisco Alves, em 1947, tem-se a exaltação da tradição, da Bahia imortal, na qual era preciso pedir licença ao senhor para passear pelas ruas da Baixa dos Sapateiros, por Charriou, Barroquinha e Taboão.

    3. Bahia com H, por Francisco Alves.

    Na Sé estava localizado o Terreiro de Jesus, praça de ligação entre o centro com a cidade baixa e outros bairros populosos, como Santo Antônio. Do alto da Sé – acessível pelas ladeiras íngremes como a da Montanha e a da Preguiça, por onde subiam os carregadores com caixas, pacotes e pessoas que vinham à cidade pelo mar – avistavam-se os navios que chegavam ao porto.

    13\. O porto de Salvador e as ladeiras que levam à cidade alta, 1870.

    13. O porto de Salvador e as ladeiras que levam à cidade alta, 1870.

    14\. O Terreiro de Jesus e o Campo Grande.

    14. O Terreiro de Jesus e o Campo Grande.

    4. Saudação a Ogum, Pai Cido.

    O Terreiro separava-se do vizinho largo do Pelourinho por quarteirões compactos de ruas e becos estreitos, onde se organizavam conhecidos candomblés.⁵ Na década de 1860, no Maciel de Baixo, perto do solar do Ferrão – sobrado de propriedade de Antônio de Freitas Paranhos, o futuro barão da Palma –, havia um famoso candomblé, localizado em uma de suas lojas.⁶ Quase vizinho dali, na propriedade da família Silva Reis, na esquina das ruas Gregório de Matos com a São Miguel, estava, anos depois, um animado batucagé, onde se reuniam à noite, ao som de atabaques, homens e mulheres africanos e nacionais. Logo adiante, nas portas do Carmo, havia outro candomblé,⁷ e não muito distante dele, na rua do Sodré, vivia o famoso Domingos Sodré, sacerdote africano.⁸

    15\. Fachada atual do Solar do Ferrão, 2008.

    15. Fachada atual do Solar do Ferrão, 2008.

    Quem quiser saber da vida alheia vá ao chafariz do Terreiro, indicava o jornal O Alabama, em 1864, apontando a importância do local como ponto de comunicação da cidade, do fuxico e do mexerico.⁹ Era local relevante também para as aguadeiras e lavadeiras, muitas delas africanas.

    16\. O Terreiro de Jesus e seu chafariz, *c.* 1859.

    16. O Terreiro de Jesus e seu chafariz, c. 1859.

    Na Sé havia também conventos, como o da Ordem Terceira de São Francisco, e irmandades, como a do Rosário dos Pretos, bem como a Santa Casa de Misericórdia, com seu hospital. Encontravam-se, ainda, na região a Tipografia Imperial e Nacional e o Colégio Médico Cirúrgico, que deu origem à Faculdade de Medicina da Bahia, localizada no Terreiro de Jesus, fronteira importante neste livro.¹⁰ Ali, entre aulas e debates, os lentes da Faculdade discutiam teorias raciais que visavam justificar a inferioridade dos trabalhadores que, bem ao lado do prédio da escola, gritavam anunciando água, cadeirinhas, peixes e frutas.

    Na Faculdade de Medicina da Bahia, a ciência nacional desenvolvia-se embalada por teorias europeias. Lá estudavam representantes da elite econômica que estariam presentes em cargos importantes do governo. Assim, enquanto efetivavam as reformas que lhes pareciam necessárias, a exemplo da Abolição e da República, muitos dos filhos dessa elite engajavam-se na elaboração de uma compreensão racializada da sociedade. Promover reformas sem alterar as hierarquias herdadas do escravismo, que tanto a favoreciam, foi o principal empreendimento da elite liberal da segunda metade dos Oitocentos estabelecida na Faculdade de Medicina. Por isso, o começo da história contada aqui se dá nesse centro de doutores, aguadeiras, religiosos, carregadores, raparigas, estudantes e políticos que conviviam e rivalizavam.

    No primeiro capítulo, a causa abolicionista é o tema que reúne os protagonistas deste texto. A Abolição removeu o chão social da época em todo o país. Na província da Bahia, a mais profunda reforma do período foi motivo para comemorações que denunciavam leituras distintas da realidade social e narrativas concorrentes acerca do protagonismo da Abolição. Enquanto eram erguidos os estandartes de clubes abolicionistas e a imagem da Cabocla – figura indígena que simboliza a Independência na Bahia –, discutia-se a memória já em construção do processo emancipacionista.

    17\. Celebração militar no Terreiro de Jesus, 1908.

    17. Celebração militar no Terreiro de Jesus, 1908.

    No capítulo 2, temos a chance de perceber a intensa movimentação na zona portuária como pano de fundo para uma animada disputa entre monarquistas e republicanos.¹¹ Navios que faziam viagens atlânticas, barcos de passageiros que circulavam entre Salvador e outras cidades litorâneas do Império brasileiro e da América do Sul, saveiros que transportavam produtos e pessoas entre as cidades do Recôncavo garantiam o trânsito de pessoas, cargas e notícias diariamente. Mercadorias vindas de vários portos da Europa, da África e da Ásia, bem como de outras regiões do país, junto com a mandioca e outros produtos de subsistência cultivados nas roças do Recôncavo; produtos de exportação, como café, açúcar, tabaco e algodão; marinheiros, tripulantes e viajantes de todos os cantos do mundo – tudo chegava naquele porto e tudo dele saía.

    Localizado na imensa baía – tão grande que poderia reunir sem confusão todas as esquadras do mundo¹² –, era, entretanto, bastante engarrafado, dado o intenso movimento das embarcações. O congestionamento de navios levava, muitas vezes, à busca de ancoradouros distantes do cais, prejudicando o desembarque de mercadorias e passageiros.¹³

    18\. A freguesia da Conceição da Praia.

    18. A freguesia da Conceição da Praia.

    A agitação da zona portuária de Salvador já foi descrita pelo viajante francês Louis François de Tollenare, em 1817:

    O golpe de vista encantador que a construção em anfiteatro dá à cidade perde muito de seu valor quando se põe pé em terra. A montanha desce tão bruscamente para o mar que na praia não há mais espaço do que o necessário para construir uma só rua [...]. Esta cidade baixa é o centro dos negócios; observa-se ali uma grande atividade: transporte contínuo de mercadorias, lojas muito frequentadas, gritos de negros que vão e vêm nesse espaço tão estreito, que ainda mais aumenta o tumulto. Se é acotovelado, fica-se atordoado. Quando não se tem mais o que tratar nesta parte da cidade, procura-se deixá-la, com prazer tanto mais vivo quanto ela é obscura e pouco asseada.¹⁴

    Como para o francês, a qualquer viajante que chegasse a Salvador pelo mar, era enviada uma alvarenga, pequena embarcação usada para passageiros e para a condução de mercadorias até os trapiches, localizados na área comercial, na cidade baixa. Perto dali estavam armazéns e escritórios de comerciantes e o prédio da Alfândega, tudo a poucos metros da igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Em 1889, Salvador era uma cidade bem diferente daquela que Tollenare conheceu. Os negócios do tráfico, felizmente, já não marcavam o ritmo do lugar; entretanto, a zona portuária continuava sendo dinamizada pelo trabalho negro.

    Quando monarquistas e republicanos rivalizavam em torno do futuro nacional do pós-Abolição, dois passageiros ilustres, o conde D’Eu e o republicano Silva Jardim, desembarcaram entre balaios, malas e cargas. As visitas importantes provocaram reações distintas de grupos políticos rivais. Um deles era a Guarda Negra, liderada por Manoel Benício dos Passos, mais conhecido como Macaco Beleza, capoeira que insistia em defender o Terceiro Reinado e afrontava os partidários do crescente movimento republicano. É esse o mote do segundo capítulo para tratarmos dos conflitos entre eles.

    O terceiro capítulo é a oportunidade para conhecermos, com base nos membros da elite abrigados na Faculdade de Medicina, as discussões e expectativas em torno da República e do pós-Abolição. Nele, além dos doutores brancos e de famílias ilustres, também entram em cena alguns dos mais importantes líderes negros do movimento operário baiano, como Manuel Querino, Domingos Silva e Ismael Ribeiro. Essa trinca, guardadas as suas discordâncias internas, apresentava-se como um contraponto aos doutores que se articulavam dentro do movimento abolicionista e, mais tarde, sob a bandeira do republicanismo. Nesse capítulo, as fronteiras sociorraciais ganham concretude ao serem examinadas dentro do imponente prédio da Faculdade de Medicina, que servira de refúgio aos estudantes para escapar dos capoeiras defensores do Terceiro Reinado.

    No quarto capítulo, estamos em 1890. A República fora instaurada havia pouco, e o novo governo contava com grande participação de professores da Faculdade de Medicina da Bahia, que se efetivava na elite econômica, intelectual e política do pós-Abolição. Os médicos governavam Salvador, nomeados para os cargos mais destacados da administração do Executivo ou integrando as comissões encarregadas de organizar eventos coletivos importantes para a cidade, como o carnaval. Os desfiles de Momo tornavam-se, então, outra fronteira que pretendia diferenciar o passado escravista da República ancorada em seus preceitos científicos. Mas era também lugar de reconexões entre passado e presente, projetadas em carros alegóricos que podiam representar tanto navegadores europeus quanto reis africanos. Seguiam assim, sob os confetes de Momo e com batuques saídos dos candomblés, as tensões em torno das demandas da população negra e pobre por liberdade para festejar na cidade em que viviam, mesmo depois do 13 de Maio.

    No quinto capítulo, a nossa atenção está nos caminhos que Nina Rodrigues percorreu na capital baiana na

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