Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Os Vilelas
Os Vilelas
Os Vilelas
E-book609 páginas9 horas

Os Vilelas

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Quando os anseios pessoais de quatro Vilelas entram em conflito com suas próprias noções de moral, a lealdade, o orgulho e o egoísmo são desafiados. Além disso, os entrelaces dos vínculos familiares e os empecilhos corriqueiros da vida moldam ainda mais as escolhas que definem o destino de pai, mãe, filho e filha. Ao longo de quatro décadas – entre 1979 e 2019 – acompanhamos os acertos, erros, acasos e contradições de quatros personagens de uma típica família de classe média carioca.

O pai, Joaquim, um professor universitário de meia-idade, vê seus objetivos acadêmicos embarreirados ao ter que deixar de lado sua vida profissional para ajudar um diretor e uma aluna.

A mãe, Adriana, farmacêutica de uma multinacional, não se esquiva de oportunidades que possam trazer estabilidade financeira para si e para sua família. Mas o trajeto para atingir essa meta pode se provar custoso demais.

O filho, Diogo, desponta como um promissor analista num banco de investimentos. Com todo seu carisma e inteligência, seu sucesso parece estar selado – mas quanto mais alto o lugar a que se chega, maior o risco da queda.

A filha, Luísa, prefere manter uma vida reclusa, trancafiada em seu quarto na casa dos pais enquanto escreve em seu blog sobre os riscos existenciais enfrentados pela humanidade. Os seus textos chamam a atenção de uma revista de circulação nacional, que a convida para escrever uma coluna. Ao mesmo tempo dócil e teimosa, Luísa é levada, pela sua filosofia de vida, a entrar em rota de colisão justamente com as forças contra as quais decidiu lutar.

Painel realista e investigação psicológica a um só tempo, Os Vilelas acompanha as escolhas feitas por Joaquim, Adriana, Diogo e Luísa, e a maneira como reagem ao destino construído pelas suas decisões. No percurso, examina os limites das aspirações humanas num mundo de acasos, erros e contradições.
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento28 de set. de 2022
ISBN9786559054534
Os Vilelas

Relacionado a Os Vilelas

Ebooks relacionados

Vida em Família para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Os Vilelas

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Os Vilelas - Ricardo Bernhard

    Os_Vilelas_capa_ebook.jpg

    Sumário

    1979

    1989

    1999

    2009

    Epílogo: 2019

    Sobre o autor

    Texto de orelha

    This was everything that I wanted

    to be done with, the relaxed

    banality of life without goals.

    Iris Murdoch, The Black Prince

    1979

    Os seus vastos sonhos, proporcionais à escala do Universo, precisavam ser postos de lado por algumas horas. Sobre a mesa, à sua frente, repousava uma pilha de testes feitos pelos seus alunos de Mecânica Clássica I, quatro semanas antes. Os alunos vinham cobrando os resultados, uma vez que o segundo exame seria aplicado já na aula seguinte, e não havia mais como adiar a correção. Em outros tempos, ele estaria angustiado com a interferência das obrigações docentes sobre as suas atividades de pesquisa e, remoendo essa angústia, não conseguiria nem corrigir as provas, nem se concentrar nos seus projetos. Mas a ansiedade da juventude ficara para trás, esgotada junto com a própria juventude. Com uma caneta vermelha, ele avaliava sem dramaticidade, e até com certo orgulho, as soluções dadas pelos estudantes a um problema não muito complicado envolvendo a terceira lei de Newton.

    Aos 38 anos, Joaquim Vilela sentia-se um velho. E não exatamente porque a calvície estava bastante avançada, ou porque já se vira obrigado a ajustar algumas vezes a cintura das calças cáqui para acomodar a barriga em expansão — embora esses sinais físicos definitivamente não ajudassem, dando origem, inclusive, ao apelido de ­Churchill, que começava a pegar entre os seus colegas no Departamento de Física. Sentia-se um velho devido ao modo paciente e equilibrado de encarar a vida, que se cristalizara dentro dele no passado recente e que lhe permitia, agora, tomar as coisas em sua verdadeira dimensão e dentro do contexto apropriado, sem as distorcer, para o bem ou para o mal, pelos seus traços e circunstâncias pessoais. Ele nem sequer conhecera a fase do cinismo, que em tantos casos sucede à aflição e ao egoísmo da juventude e faz de tudo terra arrasada. Saltara diretamente da ansiedade juvenil para os suaves planos da maturidade, de onde via o desenrolar da vida longe das paixões exageradas da planície, e com o senso de proporção realista (outros diriam melancólico) que lhe era dado pelas escalas majestosas do universo, o seu querido objeto de estudos. Era essa, ao menos, a imagem que ele vinha formando a respeito de si mesmo.

    Não decorria da sua temperança, entretanto, que fosse um homem apático ou conformado. Ao contrário, nutria ambições grandiosas. Ele admitia para si mesmo que talvez elas não passassem de uma reverberação megalomaníaca da juventude, mas, apesar da dúvida, ele continuava sentindo que estava destinado a produzir alguma teoria cosmológica original e memorável, que mudasse o curso da física. Até agora, no entanto, as tentativas haviam sido todas frustradas, e ele tinha consciência de que os seus anos dourados de criatividade aproximavam-se do fim. Era raríssimo, na história da física, que um cientista despontasse na meia-idade. Max Planck, que formulou a hipótese quântica quando já passara dos 40 anos de idade, e Erwin Schrödinger, que postulou a sua famosa equação capaz de descrever a função de onda quando contava 38 anos, e só. Fora os dois, apenas figuras de segundo escalão. Em cosmologia, ninguém digno de nota. O que levava Joaquim a crer que ou as suas ambições frutificavam logo, ou melhor seria abandoná-las de uma vez por todas, riscando-as como ilusões desde o princípio infundadas.

    Sob a temperança da maturidade, ele atravessava, portanto, um momento crítico — e poderia estar desesperado. Mas não estava. Ele desenvolvera a capacidade de estruturar a sua rotina de uma maneira que o vedava à destrutiva influência do desespero. Os seus dias eram divididos em pequenos blocos, dedicados cada um a tarefas ou a preocupações distintas. O que o aguardava num bloco futuro e o que o absorvera num bloco pretérito eram mantidos zelosamente apartados do que o envolvia nas circunstâncias presentes, as quais, a propósito, ele mesmo procurara estabelecer ou, quando menos, aceitara. Nem ele sabia ao certo como alcançara esse rigor do autocontrole e pensava, consigo mesmo, que talvez fosse melhor assim. Pra você, só existe o que tá diante desse teu nariz, como lhe dizia a sua mulher, Adriana, em tom de deboche, e ele concordava a sério, sem embaraço. No mais, ele vinha tendo algumas ideias promissoras para artigos acadêmicos nas últimas semanas. Não era nada ainda com contornos muito nítidos, mas ele pressentia que estava indo na direção certa. Sóbrio, sem pressa, embora obstinado, ele ia explorando esses caminhos. Não existia, no momento, nenhum outro jeito de ser.

    Enquanto corrigia as provas dos seus alunos, notando com agrado que a grande maioria aprendera a resolver problemas que incluíam roldanas com coeficiente de atrito, o telefone tocou. Imprevistos não eram bem-vindos, pois perturbavam o planejamento do dia. Como de costume, ele pretendeu não atender, mas, depois do terceiro toque, o senso de responsabilidade falou mais alto, e ele pegou o telefone. Era a sua secretária. O diretor do Departamento, Orlando Faissol, queria vê-lo. Joaquim bufou.

    Ele evitava encontrar-se com o diretor tanto quanto podia, desde que ingressara no Departamento de Física da UFRJ como professor substituto, em 1965. Não que os dois jamais houvessem tido alguma discussão ou qualquer desentendimento ao longo dos anos. Pelo contrário, davam-se bem, na medida em que o diretor era capaz de dar-se bem com algum ser humano. Joaquim tampouco guardava reservas acerca da trajetória de vida do diretor Faissol, que, como todos sabiam, estava ligado ao regime militar por vínculos familiares (o seu irmão era general e supostamente operava dentro do aparato repressivo — mas isso podia ser pura maledicência) e devia a eles a promoção meteórica que o catapultara à direção do Departamento, mesmo sem ter uma obra acadêmica ou uma ascendência moral que o justificassem. Joaquim definia-se, no fim das contas, como apolítico. O que o repelia era algo ao mesmo tempo mais básico e mais obscuro, que Joaquim, à falta de palavra melhor, chamava pedestremente de aura — o termo que ele considerava mais preciso, no fundo, era radiação, mas chamar assim seria pedante demais, cretino demais. Na presença de Faissol, Joaquim sentia uma oscilação fria, soturna, que se propagava através do denso silêncio que se formava em torno do diretor. Visitando-o na sua sala de paredes revestidas de madeira, que, encolhendo a percepção do espaço, pareciam magnificar a influência da aura sombria, Joaquim experimentava um desconforto intenso, quase primitivo, animal. Dali ele queria debandar o quanto antes, para não voltar mais por tanto tempo quanto fosse possível. Mas fatalmente a secretária do diretor lhe telefonaria, como acabara de lhe telefonar, e uma nova convocação viria. Seria hora de ouvir as poucas palavras que o chefe tinha a dizer, embrulhadas no mais severo dos silêncios.

    Na antessala de Joaquim, que servia não apenas ao seu gabinete, mas também aos dos outros quatro professores titulares do Departamento, a secretária assistia à televisão. Como de hábito, o aparelho estava no mudo. Joaquim sabia que a funcionária — uma mulher de meia-idade, franja dourada e vestidos justos, que era em geral pouco querida embora não fizesse nada de errado — mantinha o volume no mínimo por respeito a alguns dos professores, que se queixavam de qualquer barulho. Joaquim via essas queixas como um exagero e uma desumanidade dos colegas. Ao passar pela secretária, parou diante da tevê e girou levemente o botão do som, como se ele próprio estivesse interessado em entender do que as imagens tratavam. Um homem barbudo, de túnica e turbante, desembarcava de um avião da Air France na capital do Irã. Aiatolá Khomeini, nomeou-o a âncora do jornal. Joaquim piscou para a secretária: Até logo, Dona Bubu, e ela sorriu, mostrando os dentes amarelecidos de nicotina.

    Joaquim entrou na sala do diretor Faissol sem bater à porta, tal como mandava a sua instrução expressa. Encontrou-o de costas para a entrada, inspecionando com atenção um retrato a óleo de Duque de Caxias que enfeitava a parede. Insensatamente, os olhos do diretor estavam cobertos por um par de enormes óculos escuros. Fazia alguns meses que Orlando não o tirava do rosto, mesmo sob o permanente breu do seu gabinete, mesmo quando saía da universidade debaixo do luar. No departamento, havia quem dissesse que era uma homenagem derradeira ao presidente Ernesto Geisel, que estava na iminência de transmitir o cargo ao seu sucessor; outros ventilavam motivos mais prosaicos, como esconder as cataratas ou pôr fim de uma vez por todas à necessidade de fazer contato visual. Teorias à parte, certo era que os óculos davam ao diretor um ar meio lunático, meio criminoso. Como se não bastasse o profundo silêncio.

    Joaquim sentou-se, conformado em aguardar até que o diretor se dignasse a reconhecer a sua presença na sala, o que podia demorar. Nessa tarde, não demorou. Orlando virou-se, ajeitou os suspensórios sob o paletó azul-marinho de linho e, dizendo um muito bem baixinho e isolado, apanhou um pente na gaveta da escrivaninha, antes de também se sentar. Sem papo furado, ele disse: era a infalível expressão com que ele abria qualquer conversa. Mas então se calou, como se houvesse se dado conta de estar mais acelerado do que o normal e desejasse restabelecer uma medida de comedimento. Ficou penteando os cabelos brancos, que nunca saíam do lugar porque estavam sempre besuntados de gel, e nesse intervalo Joaquim notou que havia algo de diferente na mesa do diretor. Mais para matar o tempo do que por estar propriamente intrigado, tentou descobrir o que era. Os livros continuavam os mesmos: um álbum fotográfico das obras arquitetônicas mais importantes de Belo Horizonte, cidade natal de Orlando; o tomo de capa dura da Formação Histórica do Brasil, de Pandiá Calógeras, o primeiro civil a comandar o Ministério da Guerra; e uma biografia recém-publicada do almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva, que fora dirigente do programa nuclear brasileiro e morrera alguns anos antes. Tampouco haviam sido trocadas as fotos dos dois porta-retratos, que mostravam, de um lado, o diretor e a sua mulher de roupa de banho em alguma praia ensolarada, e, de outro, as duas filhas do casal, ainda na infância, andando de bicicleta. A muda de espada-de-são-jorge, que Joaquim jurava ser artificial até um dia ver o diretor regá-la, seguia no mesmo vaso no canto da escrivaninha, ressequida e imóvel como uma triste lembrança da vida lá fora. Talvez a novidade, se é que de fato havia alguma, estivesse em outra parte do escritório, mas ele não conseguia precisar.

    Sem papo furado, Orlando repetiu o seu chavão, enquanto conferia com as mãos se todos os fios dos seus cabelos brancos estavam penteados para trás do jeito como ele queria. Preciso que, daqui pra frente, você exerça uma nova função no Departamento, Joaquim. Uma função administrativa. Mesmo sabendo que o diretor não desperdiçava nenhuma palavra com amabilidades, que ele desconhecia sentimentos de consideração, Joaquim não pôde deixar de supor que Orlando, antes de explicitar a função, faria algum tipo de ponderação obsequiosa, reconhecendo que o encargo atrapalharia as atividades de ensino e pesquisa mas pedindo boa-vontade e espírito de equipe. Ou que ao menos ofereceria um motivo para a designação. Nada.

    Coisa simples, Orlando continuou. Importante, mas simples. Quero que você seja o responsável pela análise técnica, acadêmica, dos pedidos de recursos que os seus colegas vivem fazendo. Seus colegas, o diretor dissera, e não nossos colegas, como seria o natural — no mais, o tom de desprezo era inequívoco. Joaquim pensou que esse era o tipo de descortesia mesquinha que minava sem necessidade o nome do diretor no Departamento. A mudança vale a partir de hoje. A portaria de nomeação sai na edição do dia do boletim da reitoria. O diretor levantou por alguns instantes o óculos de sol, e os seus olhos miúdos fixaram-se em Joaquim pela primeira vez naquela tarde. O contato visual servia tanto para colher o assentimento do visitante (recusas ou meros questionamentos estavam, por princípio, fora de questão: incomodados que se mudem era outro dos lugares-comuns prediletos no escasso repertório verbal do diretor), quanto para sinalizar que a reunião acabara.

    Com satisfação e muito honrado pela confiança, diretor, Joaquim aquiesceu, fez uma mesura e levantou-se. Num primeiro momento, saindo do gabinete, Joaquim não pensou nos efeitos que a nova função teria sobre o rigoroso planejamento do seu dia a dia, sobre o delicado equilíbrio entre obrigações docentes, atividades de pesquisa e vida familiar. Nesse primeiro momento de choque, ele ­admirou-se com o próprio fato da sua nomeação. Que ele soubesse, o colega que até então se ocupava das avaliações acadêmicas dos pedidos de verba, um pernambucano vaidoso mas sensível que gostava de andar assobiando, não pretendia deixar a universidade nem se licenciar; ele vira o colega naquela própria manhã, sibilando a melodia de Palco, do Gilberto Gil, no corredor, com o bom astral de costume, antes de entrar numa sala de aula para lecionar sistemas dinâmicos não lineares para uma turma de doutorado. O costume do diretor era manter designações inalteradas a perder de vista. Ele não gostava de mudanças. Algum conflito entre o diretor e o colega pernambucano havia de estar por trás daquela substituição.

    Entretanto, Joaquim pensou que não faria nenhum esforço para inteirar-se do ocorrido. Primeiro, fofocas não lhe interessavam. Segundo, ele não regularia o seu desempenho na nova função de acordo com a experiência do colega destituído: como era da sua natureza, ele agiria seguindo os seus próprios princípios, que aliás punham em altíssima conta os deveres de obediência, por mais que ele não desejasse reconhecer isso. Terceiro, saber o que acontecera alimentaria a sua sensação, ora bem controlada mas nunca de todo eliminada, de paranoia. Apesar da sua indiferença em conhecer a verdade, Joaquim tinha, sim, um palpite inicial: o de que o motivo do afastamento do Crooner, como os colegas chamavam, com afeto, o colega pernambucano, teria sido a sua prodigalidade nas avaliações acadêmicas; Joaquim sabia que também o seria. Criar obstáculos aos planos dos colegas de departamento parecia uma noção impraticável.

    Ao abrir a porta do gabinete, Joaquim deu de cara com outro professor do Departamento. Maurício Reilavech era um ex-aluno de graduação e mestrado que tinha sido aprovado havia alguns meses num concurso para professor substituto. Garoto de vinte e poucos anos, usava rabo de cavalo, tinha barba tão rala que quase se podiam contar os fios ruivos espetados, e caminhava com a leve corcunda indolente dos adolescentes. No entanto, a sua voz era grave, algo cavernosa, e contrastava de uma maneira exótica com a sua figura infante. Por algum motivo, ou por motivos distintos, ou por nenhum motivo, os colegas pareciam não confiar nele. Assim que a porta abriu, Maurício saltou como se tivesse adormecido na sua longa espera (não podia ser: a visita de Joaquim fora ligeira); o seu rosto, entretanto, transparecia placidez. Joaquim trocou com ele não exatamente um olhar, antes um levantar de sobrancelhas, enquanto lhe dava passagem. Ignorante das regras, quem sabe desafiando as regras, Maurício bateu três vezes à porta, e Joaquim suspirou com pena do erro de principiante. Antes de sair, espiando uma última vez o gabinete, Joaquim constatou que o diretor estava mais uma vez de pé, numa fresca inspeção do retrato a óleo de Duque de Caxias. Foi embora sem conseguir precisar o que havia de diferente na sala.

    No corredor, ruminou, aflito, sobre as atividades concretas que o exercício da nova função implicaria. Joaquim desconhecia quantos pedidos de recursos eram protocolados mês a mês pelos colegas de Departamento, mas supôs que teria de dedicar-se no mínimo toda semana às apreciações. Isso significava que precisaria criar, dentro da sua rotina sistematizada e já muito gravosa, um novo bloco de atenção individual; e isso significava que os blocos programados para as suas pesquisas acadêmicas, comprimidos como estavam pelas aulas, pelos relacionamentos no escritório e pela vida familiar, seriam imprensados um pouco mais. Caminhando pelo Departamento de Física com seus passos desde sempre pesados, como se desde pequeno o seu corpo soubesse que o seu destino era ser gordo, Joaquim desesperou-se — suavemente, desesperou-se suavemente. Nos planaltos da maturidade, onde ele presumia ter fixado residência e estar seguro, só se admitiam os desesperos suaves. Cogitou que a solução possível envolvia dedicar à função não mais do que trinta minutos semanais, se necessário; por outro lado, precisaria consagrar a ela o melhor da sua atenção, a sua atenção plena, integral e individida. Era a sua economia da responsabilidade: maximizando o fator concentração, reduzia-se o consumo do tempo. Sim, a questão podia ser resolvida assim, o desespero — suave desespero — podia ser superado assim. A leveza das soluções esquematizadas na teoria mas ainda não postas à prova sossegou-lhe o peito.

    A secretária, Dona Bubu, continuava a assistir à tevê, cujo volume ela reajustara para o mudo. Num caderno velho, de folhas desidratadas que crepitavam ao toque e tinham as pontas levantadas, a secretária fazia anotações com pressa. Estava muito debruçada sobre a mesa — o seu rosto colado ao caderno, os cabelos louros tingidos embolando-se com a caneta —, como se quisesse impedir Joaquim de distinguir o que ela escrevia. Chegando perto, entretanto, ele compreendeu que aquilo que o retraimento da secretária buscava esconder eram, na verdade, as lágrimas que escorriam pela sua face, deixando um rastro de maquiagem borrada. Não seja uma palhacinha triste, Dona Bubu, Joaquim disse com afeto, aumentando o som. Na tela, uma apresentadora preparava algum tipo de assado, enquanto a lista de ingredientes rolava na margem inferior. Meu marido adorava pato assado na panela, Seu Joaquim, a secretária explicou, e um par de lágrimas correu pelas suas bochechas e pingou sobre a folha do caderno, produzindo duas manchas turvas. O marido dela falecera havia menos de um ano, vitimado por um câncer pancreático que não respondera à quimioterapia. Mas não havia mais o que dizer sobre a perda, e Joaquim simplesmente apoiou a mão por alguns instantes sobre a ombreira da Dona Bubu, para reconfortá-la, e voltou para a sua sala.

    Reencontrou sobre a mesa a pilha de provas realizadas pelos seus alunos de Mecânica Clássica I. O banal também podia ser urgente, e era preferível tratá-lo assim, para que saísse logo do caminho. Sem tempo para sentimentalidades, sem tempo para cismar sobre o que não tinha saída, pegou a caneta e retomou a correção. Distribuindo X’s e V’s ao lado das respostas (muito mais V’s do que X’s, ele ia percebendo com distante contentamento), Joaquim sentia a sua mente límpida, intensa, como se a indesejada novidade trazida pelo diretor do Departamento obrigasse-o a afiar o seu jogo, ou fracassar. Sentia-se forte como quem recebe uma ameaça e não recua. Lá no fundo, porém, estragava-lhe um pouco esse bom ânimo o receio, ou antes a certeza aborrecida, de que o telefone não tardaria a tocar. Era sexta-feira, e assim que a sua mulher chegasse em casa no fim da tarde, começaria a disparar telefonemas para o escritório.

    *

    Sexta-feira era o único dia da semana em que Joaquim trabalhava à noite. Lecionava, para o nível de graduação, uma disciplina eletiva de História das Teorias Cosmológicas, que ele mesmo propusera incluir na grade curricular. A sua mulher não podia nem desconfiar de que a ideia de criar a disciplina partira dele; fazia meses que ela estava empenhada numa campanha para conseguir uma promoção no laboratório farmacêutico onde trabalhava, e isso envolvia, ultimamente, longas jornadas que se estendiam até tarde da noite — à exceção, desde o início daquele semestre, das sextas-feiras, quando ela a contragosto chegava mais cedo em casa para render a empregada, olhar o casal de filhos e telefonar múltiplas vezes para o marido. A verdade era que Joaquim não apenas pleiteara ele mesmo a criação da cadeira de história da cosmologia, como precisara escrever mais de um memorando de solicitação para o diretor Orlando, até que este por fim se dignasse a conceder a sua autorização.

    Encerrada a correção das provas dos alunos de Mecânica Clássica I, enquanto vestia o paletó marrom de linho xadrez para dirigir-se à sala de aula, Joaquim ponderou se o diretor não havia dado a autorização para o semestre corrente, afinal, depois de tanta delonga e sem oferecer nenhuma explicação, como uma contrapartida antecipada, pois já pretendia nomear Joaquim como avaliador acadêmico de pedidos de recursos. Orlando tinha conhecimento de que a criação da disciplina era algo importante para Joaquim: este chegara a argumentar, de uma maneira humildemente lateral, num dos seus memorandos sobre o assunto, que lecionar a nova disciplina poderia vir a ajudá-lo até nas suas pesquisas sérias, ao forçá-lo a revisitar com frequência a evolução teórica da cosmologia. Fosse como fosse, Joaquim deixou essa suposição de lado: era ou impossível de verificar, ou irrelevante, o que talvez consistisse na mesma coisa.

    Na sala de aula, encontrou os poucos mas bons alunos de sempre. Eram oito os frequentadores assíduos (ele sabia de cor), de uma lista de presença que compreendia, no total, mais de quarenta nomes. Joaquim nunca fizera chamada em toda a sua vida de magistério, a despeito das instruções expressas e das reclamações constantes do diretor Orlando, e o resultado inevitável era aquele: longas relações de inscritos, as mais longas do Departamento, mas salas desertas. Joaquim era o queridinho dos alunos oportunistas. Isso não o incomodava; aparecesse quem tivesse interesse ou responsabilidade, pois ele se recusava a constranger marmanjos a fazer o que não queriam. Se os revéis demonstrassem dominar o conteúdo nas avaliações, maravilha e vão com Deus; senão, repetência garantida, sem maus sentimentos. A cada um o que era seu, conforme rezava o princípio de justiça formulado por Ulpiano. Quase nada lhe restara na memória dos ensinamentos do seu falecido pai, um homem de todo calado e circunspecto que por várias décadas exerceu, sem alarido, a titularidade de uma vara criminal da comarca do Rio de Janeiro, mas as lições sobre a justiça segundo os romanos perduraram. Elas viriam a constituir, para Joaquim, o seu manual de instruções, sucinto, privativo e dogmático, para lidar com o alunado.

    Os oito únicos alunos assíduos entre os que cursavam o semestre inaugural de História das Teorias Cosmológicas aguardavam a chegada de Joaquim cumprindo o seu rito habitual. Quatro conversavam num tom esmorecido, com cara de quem se perguntava se não seria melhor estar em outro lugar; ao longo da aula, um a um eles baixariam a cabeça sobre a mesa e cochilariam sem se pejar. Três liam algum livro (um deles folheava uma história em quadrinhos, na verdade) e assim continuariam até o fim da aula, desinteressadamente absortos. Apenas uma estudante de fato prestava atenção ao que Joaquim dizia durante aquela hora e meia, recostado em pé no quadro-negro ou meio sentado, de lado, sobre a mesa. Assim que ele batia duas vezes à porta — algo que ele reconhecia ser desnecessário e mesmo esquisito, para quem exercia a autoridade na classe, mas não conseguia deixar de fazer — e entrava na sala, ela fechava de pronto o manual Gravitation de Misner, Thorne e Wheeler que vinha estudando e não desprendia mais os olhos do professor. Chamava-se Diana, parecia, por um respeito descabido aos colegas, refrear a vontade de interromper a aula para fazer perguntas, e queria seguir carreira acadêmica na Física. Joaquim desconfiava que ela o tinha como um mentor.

    ‘Um idiota que foi contra a Sagrada Escritura’: assim o reformista protestante Martinho Lutero definiu um astrônomo obscuro, contemporâneo seu, que tinha circulado em 1514 um manuscrito de vinte páginas contendo ideias radicais sobre o universo. Girando um pedaço de giz entre os dedos, Joaquim falava numa toada algo robótica, como se enunciasse um texto previamente escrito e decorado. "Nas horas remuneradas, esse astrônomo era um cônego inexpressivo em Frauenberg, na Prússia Oriental — hoje, Frombork, na Polônia. Nas horas vagas, ele se dedicava a conceber, refinar e formalizar um novo modelo da posição do planeta no cosmos. Esse trabalho intelectual de toda uma vida viria a caber em uma publicação e meia. A meia publicação era aquele manuscrito de 1514, chamado Commentariolus (que significa, modestamente, Pequeno Comentário), um manuscrito que nem sequer levava o seu nome. A outra publicação, De revolutionibus orbium celestium (ou Sobre a Revolução das Esferas Celestiais), seria editada postumamente quase trinta anos depois, na primavera de 1543: quatrocentas páginas de um texto pesado, intricado, introduzidas por um prefácio sabotador que o astrônomo não escreveu nem aprovou, até porque estava, no fim dos seus dias, privado da memória e da vitalidade mental — acometido por uma hemorragia cerebral, ele morreria em 1542 logo depois de conferir, mal e mal, as provas do livro, e antes de conseguir ver o bicho enfim publicado. Há quem diga, aliás, que foi justamente a leitura do prefácio apócrifo que despachou o moribundo pro túmulo. Suas ideias, por mais de meio século relegadas à obscuridade ou aos ataques das elites religiosas, como o do Martinho Lutero, só seriam vindicadas no início do século XVII, por obra de dois outros gigantes da astronomia. O nome desse visionário, Joaquim interrompeu-se para escrever no quadro-negro, era Mikolaj Kopernik, ou, na sua forma aportuguesada, Nicolau Copérnico."

    O pó de giz fez Joaquim espirrar. Dois dos alunos dorminhocos ergueram a cabeça de leve, olharam em volta para certificar-se se já não era hora de ir embora e, com suspiros preguiçosos, tornaram a cochilar. Apenas Diana ouviu a exposição do revolucionário modelo heliocêntrico de Copérnico, a descrição das suas falhas de concepção, aparentes sobretudo no que dizia respeito ao formato das órbitas — algo que prejudicava a capacidade preditiva do novo modelo na comparação com a equivocada, remendada mas até então consagrada alternativa ptolomaica —, e a comprida digressão sobre os méritos da simplicidade na ciência — durante a qual Joaquim foi ainda mais longe, ao século XIV, para buscar as ideias articuladas pelo teólogo eclesiástico Guilherme de Occam e, assim, poder contrapor os círculos elementares de Copérnico aos labirínticos epiciclos, deferentes, equantes e excêntricos da tradição ptolomaica. "Pluralitas non est ponenda sine necessitate: Joaquim permitiu-se escrever no quadro-negro a formulação original, em latim, da navalha de Occam, não por nenhum exibicionismo, mas simplesmente porque a considerava clara e elegante. O corte da navalha favorecia desde a primeira hora a visão copernicana. O que faltava era polir, lapidar as ideias ainda um tanto brutas que o cônego polonês tinha proposto na sua obra e meia. Na história da Física, isso ficou para o século XVII; no nosso caso, fica para a próxima aula. Obrigado a vocês pela presença."

    Os alunos foram se arrumando e deixando a sala, com a incoerente vagarosidade dos jovens quando estão se retirando de um compromisso indesejado. Joaquim apagava o que escrevera no quadro-negro; quando se virou, encontrou Diana, de pé, abraçando os livros e o fichário contra o peito, esperando a chance de conversar com o professor. Era uma rotina que vinha sendo mantida desde a primeira aula de História das Teorias Cosmológicas. No começo, Diana falava estritamente sobre o tópico que Joaquim acabara de abordar com a classe ou comentava algum estudo que ela estava fazendo por conta própria. Com o tempo, Diana passou a compartilhar — de uma maneira natural, cândida — um ou outro detalhe sobre a sua vida pessoal, sobre os seus planos para o futuro. Foi assim que Joaquim veio a saber que ela pretendia seguir carreira acadêmica na Física, se possível engrenando um mestrado numa universidade americana depois da graduação, que ela morava sozinha com a avó desde os seis anos de idade, quando o seu pai morrera e a sua mãe mudara-se para Portugal (diziam) e desaparecera, que ela tinha um namorado que fazia mestrado também em Física, na própria universidade, e era professor de primeiro grau numa escola pública na Penha.

    Professor, hoje eu fiquei esperando porque eu queria falar... Diana ensaiou uma conversa e estacou. Suas bochechas ficaram discretamente rosadas, o que acontecia com frequência, muitas vezes sem nenhum motivo discernível. Não parecia ser uma moça tímida; ao contrário, a impressão que passava era a de uma personalidade forte, impositiva. Ao mesmo tempo, propendia, sim, a retraimentos súbitos, a certo aborrecimento pelas dificuldades de interagir com outra pessoa, a uma desesperança prévia de conseguir fazer-se entender. ...falar, bem... Diana tentou, deu voltas, tentou de novo, recuou e, afinal, franzindo as pálpebras cerradas, desistiu. ...sobre um livro que estou lendo a respeito do problema do horizonte, ela continuou, com uma voz mais apropriada para contar uma história humana e triste do que para introduzir um questionamento sobre um enigma cosmológico. Joaquim não pôde conter um sorriso; fosse ou não fosse o que Diana tinha se proposto a conversar com ele, era sempre tão inusitado ouvir reflexões sobre problemas intratáveis da Física de parte de uma estudante tão jovem de graduação. Parecia que era exatamente nessas horas, em que ela procurava conversar como um profissional da disciplina, como um adulto, que o seu rosto e os seus trejeitos ganhavam ares mais acentuados de meninice. E como uma meninona ela apresentava-se. Nessa noite, ela vestia um suéter cinza claro, bastante largo, onde se notavam respingos de molho de tomate; os seus cabelos, que descendiam em suaves ondas castanhas escuras, estavam ressequidos e desalinhados; sob a calça jeans de boca de sino, seus pés calçavam sandálias de dedo com o couro já puído. Não era uma moça vaidosa, e no entanto o conjunto tinha o charme da juventude despreocupada.

    Eu fiquei me perguntando se não existe uma explicação simples pra uniformidade da radiação cósmica de fundo, a tal da CMB, disse Diana. Ora, se o universo era muito, muito menor 380 mil atrás, quando as micro-ondas..., a palavra certa escapava-lhe, ...hã, deram a largada, digamos assim, então todas as regiões do espaço estavam perto umas das outras. Se a cozinha da minha casa estiver quente, porque acabamos de assar um bolo, e a sala de jantar estiver fresca, porque o ar-condicionado estava ligado, eu posso levar as temperaturas dos dois ambientes a um equilíbrio se eu deixar a porta aberta por um tempo. O mesmo princípio não poderia valer quando a CMB se formou? A radiação cósmica de fundo é uniforme hoje porque, no passado, as regiões do espaço estavam próximas e as portas do universo estavam todas abertas. Em outras palavras, o ar circulou. Eu acho que a navalha de Occam aprovaria essa ideia, ela concluiu, piscando.

    Joaquim riu, arrumando na careca os cabelos que já não existiam. Ele adoraria poder explicar com calma por que aquele raciocínio, apesar da sua atraente simplicidade, estava equivocado. Entretanto, ele estava apreensivo com a hora — em casa, a sua mulher já havia de estar irritada com a demora, como ficava em todas as noites de sexta-feira. Além disso, ele temia que professores ou alunos, ao por ventura passarem diante da sala, pudessem estranhar o seu contato reservado com uma aluna, àquela hora, naquele dia da semana. Respondeu com brevidade, sabendo que estava sacrificando a clareza do argumento. O que você também precisa levar em consideração, Diana, é que não só o espaço era menor no início do universo, como havia passado menos tempo pra que as regiões se comunicassem. E tem outra: considerando que a gravidade desacelera a expansão do espaço, o tempo anda mais rápido do que o crescimento do universo. Ou seja, apesar de as regiões estarem mais próximas no passado, a evolução exata do espaço-tempo torna mais difícil que uma região influencie a outra e, portanto, ainda mais misterioso que a temperatura delas seja homogênea, como medimos na CMB. Joaquim leu no rosto da Diana que pouco ou nada havia sido compreendido. Ele havia aberto a porta, e os dois já estavam no corredor. Conversamos mais na próxima aula?

    Um rapaz estava aguardando a meia distância da saída para o saguão do prédio. Vestia uma blusa social desabotoada e largada por cima de uma camiseta preta lisa, mas mantinha as costas muito retas, numa postura marcial. Ele olhava fixamente para a parede oposta do corredor, onde estava pregado um mural de cortiça contendo avisos acadêmicos e sociais de todo tipo, porém era visível que não examinava para valer nenhum deles. Havia uma tensão no modo como se portava, um desconforto agoniado. Diana não disse nada, mas Joaquim deduziu que aquele rapaz era o namorado dela. Diana foi ao encontro dele, que imediatamente tomou-lhe a mão. Os dois seguiram juntos, corredor abaixo, e Joaquim acreditou que o andar deles carregava o peso de uma desavença, uma zanga emocional. Ele de pronto penitenciou-se por pensar isso: ele não poderia saber nada e, de resto, o que houvesse, se houvesse, não era da conta dele. Antes de o casal dobrar para o saguão, os olhos de Diana encontraram por um instante os olhos de Joaquim; não disseram nada, ou Joaquim não foi capaz de entender a sua mensagem.

    *

    Os Vilelas moravam num apartamento modesto, no bairro do Leme. Apartamento de professor universitário, não de um pai de família que se preze, como a dona da casa gostava de espezinhar, quando topava com algum móvel nos espaços apertados, quando sentia o cheiro de comida vindo da cozinha impregnar o quarto do casal ou quando estava para receber visitas que desejaria impressionar. Joaquim vivera ali desde que nascera e não achava mau, pelo contrário, que os dois filhos estivessem tendo a mesma experiência. Ele inclinava-se a acreditar que o vínculo continuado com um pedaço de terra era a única coisa que podia inculcar em alguém um senso de permanência, de constância e, portanto, de valor; eliminando-se essa identidade pessoal com um cantinho do mundo, por mais acanhado ou precário que fosse, o indivíduo ficaria a descoberto e tenderia a recair no deserto moral, e no sofrimento sem fundo, dos desenraizados. Pedaço de terra três andares acima da terra, num edifício de apartamentos?, sua mulher questionava, para provocar, sempre que ouvia aquele discurso. Joaquim achava que isso não fazia diferença, mas preferia não responder.

    Ao chegar em casa, Joaquim viu, do estreito corredor de entrada, que a sua filha estava brincando sozinha na sala de estar. Ela colocava um pião sem barbante no topo da espalda de uma poltrona e deixava-o rolar estofado abaixo até quicar no tapete. Então, repetia o processo. Luísa tinha quatro anos e gostava dos seus momentos de paz, longe do irmão mais velho. Joaquim foi até a filha e beijou a sua testa, que ainda estava com grãozinhos de areia grudados, do passeio à praia pela manhã. Luísa sorriu um sorriso de saudade, entre os cabelos castanhos com reflexos dourados que emolduravam o seu rosto, mas não interrompeu a brincadeira. O pai prometeu que logo voltaria, e a menina disse do seu jeito delicado, como se resvalasse o último dó da última oitava de um piano.

    Da sala, Joaquim conseguia ouvir a voz aguda da Adriana, sua mulher, conversando com alguém ao telefone — pelo tom ofendido e intransigente com que falava, do outro lado da linha havia de estar o seu ex-colega de turma na faculdade de Farmácia e atual companheiro de laboratório, Bernardo. Toda sexta-feira, ao chegar em casa, Joaquim encontrava a mulher na cozinha, falando ao telefone. Ela dizia a ele que sempre existiam assuntos pendentes numa multinacional e que, se ela não tratasse deles, fosse a hora que fosse, alguém se encarregaria disso (mais exatamente, os sacanas, que, como ela adorava observar, nunca dormem). Com o tempo, se descuidos dela se repetissem com frequência, ela poderia dar adeus à promoção. E conseguir essa promoção, Joaquim bem sabia, era a ideia fixa da Adriana, a sua meta de vida, havia alguns anos. Ou melhor: era a sua meta intermediária de vida. A sua verdadeira meta de vida, a sua meta de vida última e final, da qual ela falava o tempo todo com o marido, meta que lhe dava esperança e motivo para continuar em meio a tanta mesquinharia e a tanto dissabor, era poder largar o emprego, aposentar-se em definitivo, desligar-se sem volta. Para isso, entretanto, ela paradoxalmente precisava conseguir a sua promoção, apenas mais uma, se fosse uma promoção fulminante, que a fizesse atropelar a fila e aterrissar num bem-remunerado posto de chefia. Alguns anos nesse posto, capital devidamente construído, e ela poderia enfim entregar a sua carta de demissão. Daí a sua inconformidade com a volta mais cedo para casa nas sextas-feiras: isso a tirava do jogo; daí os telefonemas constantes na noite de sexta: era o modo de manter-se em atuação e no controle. Apesar de toda essa argumentação, à qual ele era ou imaginava-se sensível, quando Joaquim ouvia de passagem fiapos das conversas que a mulher tinha às sextas, tudo lhe soava como uma ladainha banal de política de escritório, não muito diferente daquela que os seus colegas desfiavam na universidade, sem terem nada tão formidável em disputa. Ainda assim, Joaquim sentia-se culpado por atrapalhar os planos da mulher.

    Ao notar a chegada do marido, Adriana encerrou a ligação e perguntou, simulando com deboche o olhar meigo de uma dona de casa submissa: "Como foi a sua aula noturna? As alunas ficaram de joelhos com a qualidade das explicações do teacher?" Foi o suficiente para que a culpa de Joaquim se esvaísse. Ele tinha consciência de que, nos últimos tempos, estava mais ausente do que de costume, no que dizia respeito à disponibilidade emocional e de atenção; as pesquisas cosmológicas e o planejamento dos artigos vinham tomando a sua energia, e infiltrando pouco a pouco os bloquinhos que deveriam ser dedicados a outras atividades, o que ele enxergava como algo natural e, acima de tudo, passageiro. Que a sua mulher não tivesse sensibilidade para compreender esse momento, e encarasse-o da perspectiva estrita das inconveniências trazidas para a vida dela, OK, era esperado, ainda que de se lamentar. Que ela além do mais levantasse suspeitas sobre a fidelidade dele, aí já parecia ridículo, indigno.

    Joaquim, exausto, não fez mais do que baixar a cabeça. Adriana tomou a reação como mais um sinal de que ele estava, sim, aprontando algo, fosse com colega, com secretária ou com aluna. Os olhos azuis da esposa, de natureza apertados, tinham uma expressividade profunda e movediça; de uma hora para a outra, mediante ajustes impossíveis de precisar, assumiam um ar felino, ou terno, ou enojado, ou debochado, segundo infinitas gradações de sentimentos — naquela sexta, naquele instante, Joaquim sentiu que transmitiam despeito e menosprezo.

    Enquanto falava ao telefone, Adriana estava preparando com o filho um bolo formigueiro, o preferido do menino. Ainda fitando o marido, retomou a preparação. A bancada estava uma bagunça: farinha espalhada, caixa de leite quase caindo, tablete de manteiga amassado, cascas de ovo quebradas. O menino, Diogo, segurava um saquinho de chocolate granulado nas mãos como se procurasse salvá-lo do caos. Joaquim foi até o filho e fez-lhe um cafuné. Diogo tinha os olhos da mãe, mas, aos sete anos de idade, eles só exprimiam doçura e, com uma frequência cada vez maior, traquinagem. Joaquim cheirou os cabelos do filho, que estavam perfumados de xampu Johnson & Johnson. Adriana pediu que o menino tornasse a mexer a massa com a espátula de madeira, o que ele se pôs a fazer com enorme intensidade, espirrando gotículas sobre a bancada e sobre o paletó do pai.

    Depois de ir ao quarto trocar-se, Joaquim foi à sala fazer companhia à filha. Luísa havia largado o pião sem barbante num canto do tapete e brincava agora de escorregar ela própria, de cabeça para baixo, no espaldar da poltrona. Ela fazia uuuôôô a cada descida, e o pai pediu cuidado. Joaquim sentou-se na poltrona contígua, ligou o abajur e pegou na mesa de canto a biografia de Edwin Hubble, escrita pelo aluno do astrônomo americano Allan Sandage, que ele começara a ler naquela semana. Luísa logo veio deitar no seu colo e ficou falando algaravias, fingindo que conseguia decodificar as letrinhas à sua frente. O suavíssimo aroma de maresia que evolava da menina dava uma nova e estranha materialidade às descrições do Observatório Mount Wilson, em Pasadena, onde Hubble trabalhou a maior parte de sua vida. Enquanto Luísa tagarelava, Joaquim sentiu-se diante dos telescópios, sob o céu infinito.

    A sua mente, depois de deslizar por alguns minutos pelos trabalhos experimentais de Hubble, adejou, sem muito rumo nem muita ordem, em tentativas próprias de exploração teórica. Por intuição, não lhe parecia que, dos três cenários propostos pelo físico russo Alexander Friedmann, na década de 1920, quanto ao futuro do universo, fossem todos igualmente razoáveis. A expansão eterna, a um ritmo cada vez mais lento que jamais chegaria a zero, soava instável. Uma progressiva desaceleração do universo que culminasse numa parada definitiva (como um burro empacando, ele pensou) dependia de um ajuste tão fino dos coeficientes, de uma precisão tão delicada da dinâmica — que precisaria manter-se por um tempo tão longo quanto a eternidade —, que seria melhor tratar a hipótese como ficção científica. Sobrava, então, o terceiro cenário: desaceleração pós-bang, seguida de um breve e impalpável instante em que o universo ficaria suspenso, estático, como que equilibrado no topo de uma rampa; nesse ponto, o espaço-tempo rolaria para trás (como Joaquim caracterizou, desleixadamente, para si mesmo), entregando-se a uma dinâmica invertida, de contração. Era aí, dentro dessa hipótese de Big Crunch, que Joaquim acreditava poder desenvolver alguma teoria inovadora — ele tinha pudores de usar a palavra revolucionária, embora ela definisse melhor a sua ambição e a sua esperança. O que faltava era conseguir explicar a homogeneidade cósmica e a ausência de curvatura espacial com base em algum elemento dessa sanfona universal, fosse ele ligado à fase de expansão ou à de colapso.

    Com o livro nas mãos, e a filha cantarolando no colo, Joaquim tentou concentrar-se de novo na biografia de Hubble, pois aquele enigma intratável intimidava-o. Mas de repente veio-lhe um estalo: talvez, se o movimento de sanfona não fosse um movimento único e isolado, se ele se repetisse ao longo das escalas eternas do tempo, pudesse haver uma explicação. Nesse caso, o período de retração talvez pudesse, sim, levar a uma uniformidade universal, tendo em vista que a matéria e a energia seriam espremidas num espaço cada vez mais apertado, até ser alcançada a singularidade. A contração implicaria necessariamente a homogeneidade. E essa uniformidade seria então levada para a frente numa próxima reiteração elástica, num próximo quique, uma vez que a uniformidade representaria a condição inicial do sistema. De quebra, isso garantiria também o valor justo do coeficiente de achatamento espacial. Restava saber se a matemática admitiria, em abstrato, essa especulação teórica.

    Equações começavam a desenhar-se na sua mente, quando a sua mulher pigarreou teatralmente da porta da sala. Joaquim abriu os olhos e viu Adriana encostada no batente; o rosto dela portava um semblante de tensa prontidão, como se ela fosse um bicho na fração de segundo antes de decidir se a presa justifica um ataque ou se seria desperdício de energia.

    Cochilando de novo com um livro nas mãos na hora do jantar, Joca?, ela perguntou, com notas de pena na voz.

    Joaquim passou a mão na careca, restabelecendo-se. Ainda no colo do pai, Luísa brincava de dobrar as pontas das folhas da biografia de Hubble; Joaquim colocou-a no chão, sem a recriminar. Foram juntos até a cozinha, onde Diogo, encarapitado numa banqueta, admirava o bolo formigueiro recém-tirado do forno, enfeitiçado pelas evanescentes e dançantes fitas de fumaça que subiam da cobertura de chocolate.

    *

    Na segunda-feira seguinte, ao chegar à universidade, Joaquim esbarrou no estacionamento com o seu amigo mais próximo. Vinicius, professor titular do Departamento de Matemática, era uns dez anos mais velho do que Joaquim, mas, obcecado por musculação e corrida, aparentava ser mais novo. O seu rosto lembrava o de um roedor ou o de um coelho — não por nenhum traço fisionômico em especial (Vinicius tinha, se se observasse com atenção, o queixo um pouco retraído e os dentes frontais superiores algo projetados, mas eram defeitos quase imperceptíveis), mas, sim, pela sua mania de levantar o nariz a toda hora. Joaquim desconfiava de que o amigo sofria da síndrome da Tourette, mas os dois nunca haviam tocado no assunto.

    Eles tinham-se conhecido na primeira festa de fim de ano do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza de que Joaquim participou, ainda como professor assistente. Naquela época, Vinicius não tomava bebida alcoólica por opção, Joaquim, por inibição, e os dois acabaram segregados num canto do galpão em Botafogo, como duas moléculas que não reagiam com a mistura efervescente da pista de dança. Os copos d’água que ambos seguravam os uniam, e eles os ergueram num esquisito brinde abstêmio, antes de trocar cumprimentos. Joaquim viu que o outro carregava um objeto debaixo do braço, e Vinicius, constrangido, produziu um ábaco. Vinicius chamou Joaquim para sentar-se a uma mesa largada naquele canto afastado do agito, sobre a qual uma moça (professora de Química Inorgânica, segundo Vinicius) estava apagada. Vinicius explicou que alguém precisava continuar a tradição iniciada por Richard Feynman e que, à falta de interesse dos demais, ele tomara a missão para si. Não faria mais sentido se fosse alguém da Física? Joaquim questionou. Vinicius franziu o nariz, mas não respondeu (Joaquim perguntou-se se a franzida nasal era a indecifrável resposta); depois de afastar os cabelos oleosos da professora de Química de cima da mesa, ele deslizou o ábaco até Joaquim, tirou um lápis e um bloco de anotações do bolso e propôs uma operação aritmética. Coube a Joaquim propor a seguinte, e assim continuaram através da noite, enquanto, na pista de dança, os colegas juntavam-se, chocavam-se, aglomeravam-se e separavam-se, num caos de interações. Joaquim não poderia saber, mas estavam ali os ingredientes de uma amizade em construção.

    Naquela manhã de segunda-feira, no estacionamento, Vinicius convidou Joaquim para tomar um café. Joaquim planejava dedicar-se às suas pesquisas no horário livre da manhã, mas não quis contrariar o amigo e deixou-se levar até o escritório dele. A sala parecia um quarto de adolescente, com pôsteres de filmes de ficção científica colados nas paredes, latas amassadas de refrigerante espalhadas sobre a mesa e mudas de roupa emboladas pelos cantos. Sempre que recebia Joaquim, Vinicius destrancava a gaveta inferior de um alto gabinete de ferro, puxava-a por inteiro até revelar a sua longuíssima extensão, e, fazendo uma cara de bibliotecário escrupuloso, apanhava a edição mais recente da Playboy.

    A entrevista com o Chico tá muito interessante, disse Vinicius, colocando delicadamente o exemplar sobre as torres de papéis que se levantavam sobre a escrivaninha, diante de Joaquim. O nariz do matemático mexia-se com rapidez, como se fosse o nariz que risse, em vez da boca. Na capa da revista, Joaquim viu uma moça de cabelos louros encaracolados, com duas estrelas cobrindo os mamilos; ele não sabia de quem se tratava.

    Em que pesassem os interesses juvenis e os gracejos escrachados (cujo repertório, aliás, era mínimo e repetia-se à exaustão), Vinicius tinha um estilo sisudo de conversação e era respeitado academicamente, pelo que fizera no passado — estritamente pelo que fizera no passado, já que havia anos que parecia encurralado por um bloqueio criativo. Nos departamentos de ciências da natureza, havia quem o tomasse como gênio, ainda que dispersivo, ainda que esgotado, e um ou outro matemático não descartava que fosse um dia contemplado com uma medalha Fields, pela sua original combinação de geometria, topologia e cálculo analítico no estudo de variedades tridimensionais. Joaquim admirava-o, e doía um tanto saber que a admiração não era mútua.

    Na última sexta, o diretor Orlando me convocou, Joaquim disse, folheando a revista. Tentou contar sobre o seu novo encargo administrativo como se descrevesse um fato impessoal, distante, mas Vinicius balançava a cabeça, parecendo não botar fé no que devia estar vendo como uma afetação de autocontrole, uma falsa exibição de magnanimidade. Joaquim sabia que o amigo o conhecia o suficiente para supor que estaria inseguro com o desempenho da função e apreensivo com as prováveis perturbações sobre as suas atividades de pesquisa. Não era o caso.

    Eu já exerci a mesmíssima função aqui no Departamento de Matemática. Ouvindo isso, Joaquim parou de folhear a Playboy, numa página em que Marisa Andreas, a modelo de capa, aparecia deitada num leito de serpentina, os seus pelos pubianos vastamente à mostra. Talvez você ainda não estivesse trabalhando como professor. Faz tempo, Vinicius explicou, levantando o nariz e mantendo-o levantado de um jeito que sugeria dúvida. Na visão dele, construída com base numa terrível experiência de uns seis meses, era preciso tomar uma decisão: ou se atendiam aos interesses dos colegas ou se seguiam as regras estipuladas pela direção do Departamento. Agradar aos dois lados seria insustentável ao longo do tempo, pois bastava um parecer num sentido ou noutro para começarem os desapontamentos, os rancores, as sabotagens. Cerrar fileiras com um dos lados era, portanto, inevitável, e isso poderia ser feito ou conscientemente, ou como uma decorrência natural dos pareceres que fossem assinados pelo caminho. De um jeito ou de outro, a decisão viria. E

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1