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O refúgio
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E-book428 páginas6 horas

O refúgio

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Sobre este e-book

A noite de 12 de janeiro de 1914 foi lembrada na aldeia de Emília, região camponesa e histórica da Itália setentrional, como uma das mais frias de todos os invernos. E é nela que o escritor Valerio Massimo Manfredi inicia a saga dos Bruni, camponeses que moravam na mesma casa e trabalhavam na mesma lavra fazia cem anos. Em O refúgio, o autor italiano reconhecido pelo romance A grande história de Alexandre, também publicado pela Editora Rocco, mostra a trajetória da Itália do início do século XX até o pós-guerra. O impacto das vicissitudes nesta família italiana é o principal foco de uma narrativa que mescla mito e lendas da região com história contemporânea.
Todos os jovens filhos de Callisto e Clerice foram convocados para o front daquela que será a Primeira Grande Guerra Mundial. O valente e corpulento Gaetano, o mais velho dos sete, foi o primeiro. Mas durante todo o período de luta entre a Itália contra a Áustria e a Alemanha, um a um foram chamados. Destaca-se no romance o ponto de vista do mais intelectual dos irmãos, o engenhoso e idealista Raffaelle, mais conhecido como Floti. As descrições dos combates, das penúrias da guerra, o sofrimento, a dor, a morte nos campos de batalha são narrados com intensidade épica e revelam a diferença de personalidade dos irmãos. Os sete sobrevivem à guerra. Não a tempo para rever o pai, Callisto, já morto quando da chegada de Gaetano, o primeiro a retornar.
Os eventos históricos da Itália, incluindo a guerra civil e a ascensão do facismo de Benito Mussolini e os conflitos dos homens do campo buscando maior justiça social, são narrados pelo autor principalmente através da atuação de Floti, que após a morte de Gaetano lidera a família ao lado da mãe.
Além de um preciso painel histórico, o autor constrói uma narrativa que prima pela sensibilidade e emoção ao resgatar valores como a solidariedade, generosidade e o amor incondicional.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de ago. de 2012
ISBN9788581221366
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    O refúgio - Valerio Massimo Manfredi

    Valerio Massimo Manfredi

    O REFÚGIO

    Tradução de

    Marta Fondelli

    Título original

    OTEL BRUNI

    Copyright © 2011 by Arnoldo Mondadori Editore S.p.A., Milão

    Edição brasileira publicada mediante acordo com Grandi & Associati.

    Direitos desta edição reservados à

    EDITORA ROCCO LTDA.

    Av. Presidente Wilson, 231 – 8º andar

    20030-021 – Rio de Janeiro – RJ

    Tel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) 3525-2001

    rocco@rocco.com.br

    www.rocco.com.br

    Preparação de originais

    CARLOS NOUGUÉ

    Conversão para E-book

    Freitas Bastos

    Imagem de capa: Hulton Archive/GettyImages

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE.

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

    M241r

    Manfredi, Valerio, 1943-

    O refúgio [recurso eletrônico] / Valerio Massimo Manfredi; tradução de Marta Fondelli. – Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2012.

    recurso digital

    Tradução de: Otel Bruni

    Formato: e-Pub

    Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions

    Modo de acesso: World Wide Web

    ISBN 978-85-8122-136-6 (recurso eletrônico)

    1. Ficção italiana. 2. Livros eletrônicos. I. Fondelli, Marta. II. Título.

    12-6490                     CDD-853                     CDU-821.131.1-3

    Em memória do vovô Alfonso e da vovó Maria

    e para o meu filho Fabio Emiliano,

    que muito trabalhou para resgatar

    a honra de Armando Bruni.

    Desolina, já abriu a porteira de ferro?

    Não, madame, não abri.

    Desolina, já abriu a porteira de ferro?

    Não, madame, não abri.

    Desolina, já abriu a porteira de ferro?

    Não, madame, não abri.

    CANTIGA EMILIANA

    1

    A NOITE DE 12 DE JANEIRO DE 1914 FOI LEMBRADA, na nossa aldeia, como uma das mais frias de todo o inverno, e talvez de todos os invernos que o homem podia recordar. A neve começara a cair ao entardecer e, coisa bastante incomum para não dizer impossível, o sol dera um passo para trás – como costumavam dizer – antes de mergulhar no horizonte, aparecendo por uns poucos minutos no estreito espaço que separava a margem ocidental do amontoado de nuvens do perfil da terra. O raio rubro atravessara a densa cortina de cândidos flocos criando uma imagem fantasmagórica, uma atmosfera tão irreal que os camponeses, voltando dos campos para jantar, haviam parado no meio da eira para contemplar aquela visão admirável, quase um sinal divino, e interpretar o seu significado. Haviam-se tornado parte de um cenário assombroso, nunca visto antes, que algum dia procurariam descrever aos seus filhos e netos, contando que estava nevando no sol.

    Não demorou para eles ficarem brancos de neve, na luz dourada que se apagava.

    A morada dos Bruni era um velho edifício campestre, com telhado de três vertentes, goteiras corroídas pela ferrugem e postigos de carvalho que, já sem nenhum resquício de pintura, tinham agora uma cor cinzenta, uniforme. Erguia-se não muito longe da estrada, a uns cinquenta metros do estábulo e do celeiro. Não havia mansão patronal, pois o terreno fazia parte da quinta do tabelião Barzini, que morava num palacete em Bolonha. Um pedaço de terra de pelo menos cem tornature,¹ confinante, a leste, com uma propriedade da Santa Casa Bastarda, um instituto que cuidava, digamos assim, das crianças abandonadas nas rodas dos frades ou das freiras de algum convento da cidade.

    O estábulo era um edifício imponente, dividido em duas partes. Uma delas era usada como celeiro no inverno e depósito de trigo no verão, depois da ceifa. Na outra metade ficavam as vacas com os bezerros, quatro pares de bois para a aradura e um touro para a procriação. Era ali que a gente se reunia no inverno, demorando-se para não ir dormir com as galinhas e ficando até tarde com hóspedes seja casuais, seja habituais, sem ter de queimar lenha na lareira, pois o calor dos animais já bastava.

    Aquela iria ser uma longa noite, pois no dia seguinte ninguém, a não ser o boieiro, teria de levantar cedo, uma noite a ser passada no estábulo, ouvindo histórias. De forma que, depois do jantar, enquanto as mulheres limpavam a mesa e lavavam os pratos, um por um os homens foram ao estábulo levando consigo um garrafão de vinho tinto do ano e que ainda nem acabara de fermentar. Eram sete irmãos: Gaetano, Armando, Raffaele, que todos chamavam de Floti, Checco, Savino, Dante e Fredo. O velho Callisto já não participava das noitadas porque sofria de dor nas costas e não ficava confortável nos banquinhos para ordenhar. Esperava que as mulheres colocassem na sua cama o braseiro coberto de cinzas, que chamavam de freira, pendurado na armação de madeira, o padre, e se metia entre os cobertores bem quentes. E naquela associação de palavras um tanto transgressiva e irreverente até que havia alguma lógica, uma vez que, segundo o pensamento comum, botar juntos na cama um padre e uma freira criaria uma reação térmica extremamente ardente.

    Espreguiçando-se entre os lençóis de cânhamo, Callisto nunca deixava de resmungar: Ah, que grande invenção, a cama!, e logo a seguir começava a roncar como um trombone.

    No estábulo morava um velho que dizia chamar-se Cleto: consertava guarda-chuvas para ganhar o pão de cada dia e dormir num leito de palha. Costumava falar de um jeito sentencioso para conseguir respeito e consideração. Ele também reparara naquele raio flamejante, arremessado contra a espessa cortina de neve que caía do céu, e achou por bem citar logo um provérbio: Quand al soul al’s volta indrì, brota not ai ten adrì. Quando o sol volta para trás, uma noite ruim vem logo atrás.

    Gaetano, o boieiro, salientou que não era preciso ser adivinho para prever uma noite ruim, uma vez que a neve já tinha encoberto por completo as pegadas deixadas pouco antes na eira. Ainda estava falando quando se ouviu alguém bater à porta e Fredo entrou: estava voltando com a velha charrete, após levar a mãe à novena de Santo Antônio. Envolvido na capa até o nariz, usava um velho chapelão que quase lhe cobria os olhos.

    – Está nevando à beça – exclamou como se estivesse dizendo uma grande novidade, batendo os pés no chão.

    – Sente-se – disse Gaetano, empurrando um banquinho. – Tome um trago para esquentar.

    – Para mim – disse Fredo –, amanhã cedo vamos afundar na neve até a bunda.

    – Que nada, só até os joelhos, no máximo – objetou Gaetano. – Quando cai tão abundante, não pode durar muito tempo.

    – É o que você pensa – interveio Cleto, o dos guarda-chuvas. – Lembro que em 1894, em Ostiglia, numa só noite nevou até passar de um metro.

    – Um metro não é uma bunda – rebateu Gaetano.

    – Depende da altura em que cada um a tem, a bunda – disse Fredo, rindo.

    Quando falavam do tempo, cada um tinha a sua própria história para contar, um exemplo para ser lembrado, um acontecimento assombroso por ser descrito. Em suas vidas tudo era sempre igual, um dia depois do outro, uma noite depois da outra: só mesmo as manifestações da natureza ainda podiam deixá-los pasmados.

    – Querem saber de uma coisa? – disse o boieiro. – Quando os flocos são tão grandes que mais parecem lenços e o ar está tão parado, pode ser um sinal de terremoto.

    Floti, que até então se mantivera calado, decidiu entrar na conversa.

    – Quanto a isto, não precisamos nos preocupar – disse. – No caso de um terremoto, os animais dão o aviso com antecedência, podem ter certeza disto.

    Mal acabava de falar quando se ouviu o cão latir furiosamente lá fora, com a argola da corrente que corria para frente e para trás ao longo do arame esticado entre uma nogueira secular e a casa. Todos olharam para o teto do estábulo cheio de rachaduras, esperando ver cair a qualquer momento a poeira de gesso que anunciava o abalo. Mas não aconteceu coisíssima nenhuma. Os bois e as vacas continuaram a ruminar tranquilos, e o gato a dormir enroscado em cima de um fardo de feno.

    – Terremoto coisa nenhuma – disse Cleto –, deve haver alguém lá fora. Acho melhor dar uma olhada.

    Todos se viraram para a porta. Checco se levantou e foi abrir. Uma lâmina de luz projetou-se no escuro, iluminando primeiro os flocos de neve do tamanho de borboletas que desciam ao solo, àquela altura completamente branco, e depois uma figura incerta e cambaleante que se arrastava para o estábulo.

    – É você, Iófa?

    – Eu mesmo – respondeu o outro, ofegante. – Vi a luz e decidi dar uma passada.

    – Fez bem. Vamos entrando. O que houve? Andou bebendo?

    Iófa entrou, sacudiu a neve e jogou a capa na palha:

    – Bebendo? Só um copo, na taberna, mas se me oferecer outro vou tomar com prazer. Estou precisando.

    Nunca o tinham visto daquele jeito: estava desvairado e confuso como se não soubesse por onde começar. Juntaram-se em volta, enquanto ele engolia o vinho de um só trago.

    – E então? – perguntou Checco. – O que houve? Parece que viu o diabo em pessoa.

    – Quase isso – respondeu. – Eu estava na taberna da Bassa com Bastiano, o Caolho e Vito Baracca, apostando no carteado um meio litro de vinho branco. Estávamos praticamente sozinhos...

    – Só podia ser, numa noite como esta – interrompeu-o o boieiro.

    – Deixe-o falar – disse Floti, certo de que o homem não aparecera por acaso, com um tempo daqueles. Viera de propósito porque tinha algo que não conseguiria guardar dentro de si a noite inteira. Iófa retomou o seu relato:

    – Eu jogava briscola² com o Caolho contra Bastiano e Vito Baracca, e já tínhamos empatado duas vezes. Sessenta e sessenta, com Baracca, que tinha tido o ás, o três e o valete de briscola. Em resumo, estávamos a ponto de jogar a negra quando a porta se abriu e um sujeito nunca visto entrou. Tinha uma barba que quase chegava à cintura, um casacão cinzento que lhe lambia os pés, uma sacola de pano a tiracolo e dois olhos vermelhos que nem o diabo. Sentou-se, tirou da sacola um pedaço de pão duro como pedra e deitou-o na mesa.

    De onde o senhor vem, cavalheiro?, quis saber o Caolho.

    Da encruzilhada da Corona, respondeu ele.

    Teria sido melhor dormir por lá mesmo. É um bom pedaço de estrada até aqui, com este tempo. O senhor podia ficar isolado, perdido na nevasca.

    Vim para cá porque sabia que esta noite iria aparecer..., respondeu o homem com um olhar de dar medo.

    Nenhum de nós se atreveu a pronunciar uma palavra sequer. Estávamos de cartas na mão, olhando uns para os outros quase a dizer que esse cara deve estar louco de pedra. O sujeito olhou para o taberneiro e pediu um copo de vinho, pois tinha dinheiro, como fez questão de avisar, molhou o pão nele e enfiou-o na boca, chupando e mastigando de boca aberta, um negócio de dar nojo, justamente como um demônio.

    – Vai ver que era o diabo – comentou Fredo, mas Floti intrometeu-se de novo. – Não diga besteira, deixe-o continuar.

    – No fim, uma vez que ninguém se atrevia, acabei perguntando... Iria aparecer o quê, cavalheiro?

    Ele levantou a cabeça e olhou para mim, alucinado:

    A cabra de ouro.

    Iófa parou de contar para ver no rosto dos presentes, um por um, o efeito das suas palavras.

    – Continue – disse Floti –, não nos force a arrancar as palavras da sua boca.

    A cabra de ouro?, perguntei. – O senhor está se sentindo bem, cavalheiro?

    Ele engoliu o último bocado de pão junto com o último trago de vinho, e respondeu:

    Claro. Ficou diante de mim assim como agora estou vendo os senhores. Estava no mais alto dos quatro pequenos morros, à esquerda da estrada...

    O Pra’ dei Monti!, disse o Caolho. – Sempre ouvi dizer que é ali que se esconde. Mas como é que o senhor sabia, uma vez que não mora por estas bandas?

    Resplandecia entre os remoinhos de neve, cercada por uma auréola palpitante...

    E aí? O que foi que o senhor fez?, perguntei.

    Fiquei estático olhando para ela, encantado. Era toda de ouro, de tamanho natural, e em lugar dos olhos tinha duas pedras preciosas, vermelhas como fogo. Não dá para imaginar o que se experimenta diante de uma visão como aquela. É uma coisa que nunca esquecerei na minha vida.

    Até aquele momento Gaetano escutara sem dizer uma só palavra, e os outros também se calavam, pensando na aparição que o forasteiro tinha descrito aos fregueses da taberna. Disse:

    – Não acredito. O sujeito é um espertinho que vem de longe, um cara sem eira nem beira que soube da história que circula na nossa aldeia e procurou fazer troça com a gente...

    – Ou quer achar alguém que o hospede por alguns dias para que conte de novo a sua história, até os caminhos se tornarem novamente transitáveis a fim de ele poder seguir viagem – acrescentou Checco.

    – Pode ser – respondeu Iófa –, mas só de ouvi-lo falar fiquei todo arrepiado: tinha uma voz rouca, uma voz que... parecia vir do outro mundo.

    Bastiano, que é um pedaço de homem do tamanho de um armário e nunca teve medo de nada, tremia como uma criança. O tal homem não era daqui, mas afirmava ter visto a cabra de ouro...

    – E onde está, agora? – perguntou Armando, que até então se mantivera calado.

    – Sei lá – respondeu Iófa –, desapareceu.

    – Desapareceu? Como assim? – quis saber Gaetano.

    – Pediu mais um copo de vinho, que tomou de um só gole, e depois deixou dez centavos na mesa e saiu. Aproximamo-nos da porta envidraçada para olhar, mas ele já sumira... O que é que vocês acham? Será que isso quer dizer alguma coisa?

    – Não quer dizer absolutamente nada – respondeu Gaetano. – Vocês vão ver, amanhã vai aparecer de novo. Deve ter ido dormir em algum celeiro.

    – Estão dizendo isso para ficarem tranquilos – intrometeu-se o velho dos guarda-chuvas. – Mas na verdade estão todos com medo.

    – Medo? – disse Floti. – Medo de quê?

    – Dela... da cabra de ouro. Todos sabem o que isso quer dizer. Quando aparece assim, de repente, a um viajante solitário, numa noite como esta, só pode significar uma coisa: alguma desraça está para acontecer. A primeira vez que se ouviu falar dela foi mais ou menos trezentos anos atrás, e no ano seguinte houve a grande peste que levou consigo mais de quinhentas pessoas só aqui na aldeia de vocês. Foi avistada de novo uns sessenta anos depois por um frade capuchinho que, para fugir do calor, viajava numa noite de agosto rumo ao mosteiro de Vignola. Uns poucos meses depois os turcos invadiram as regiões orientais e em seguida a Áustria, e só por milagre não invadiram a Itália para tomar Roma. Teria sido o fim da Cristandade! Vinte jovens soldados desta comarca morreram na batalha de Viena.

    A cabra de ouro voltou a ser vista dezoito anos atrás numa noite de tempestade por um mercador de porcos que voltava da feira de Santa Ágata. Viu-a plenamente iluminada pelo clarão de um relâmpago num dilúvio. Seis meses depois os seus três filhos morreram na batalha de Ádua, na Abissínia, junto com milhares e mais milhares de nossos soldados...

    – Pare com isso – disse Floti. – São apenas lorotas sem fundamento, superstições de pessoas ignorantes que, quando acontece uma desgraça, tiram logo a cabra da cartola. Só isto. Não há nenhum significado oculto.

    – É mesmo? – respondeu Cleto. – Então, se as coisas são de fato como você diz, que tal irmos todos dar uma olhada no Pra’ dei Monti? Agora.

    – Ficou louco? – disse Floti. – Nem pensar. Está fazendo um frio de cão, e a nevasca só parece piorar. Se nos acontecer alguma coisa, corremos o risco de cair num barranco e morrer congelados, e só vão nos encontrar na próxima primavera.

    – Você não costuma ir muito à igreja – rebateu Cleto –, mas eu lembro muito bem o que dizia dom Massimino, que Deus o tenha ao seu lado. Dizia que a cabra é um símbolo do demônio cujas origens são extremamente antigas, talvez fosse venerada como ídolo pagão por estas bandas, provavelmente nos arredores do Pra’ dei Monti, onde foram encontrados os restos de um antigo assentamento humano: amuletos, braçadeiras e pulseiras em forma de serpente, máscaras grotescas. Dizia que naquela zona, mais ou menos dois mil anos atrás, houve uma batalha com milhares de mortos não sepultados, que ficaram abandonados nos pântanos destas terras. Não há casualidade, existem razões muito claras pelas quais as coisas acontecem... E o que me dizem do espetáculo que vimos esta tarde? Um raio cor de sangue que trespassava a cortina de neve... Uma coisa nunca vista.

    Armando, que era o mais impressionável, ficou de pé:

    – Este negócio está indo por um caminho que não me agrada. Desejo-lhes uma boa noite, pois eu vou para a cama.

    – À vontade – disse Cleto, e depois de Armando sair voltou à sua proposta. – Então? Uma vez que para vocês são apenas lorotas, que tal irmos até lá para dar uma espiada? Vamos nos agasalhar direito, calçamos as botas de sola de madeira e saímos. Em menos de uma hora estamos lá.

    – Ora, ora – respondeu Floti dando de ombros –, acha que a cabra de ouro vai esperar por você? Pelo que sei, as aparições deveriam ser rápidas e repentinas. Eu também vou para a cama. Boa noite a todos, e você, Iófa, preste atenção ao voltar para casa, para não encontrar a cabra que o espeta com seus chifres.

    Iófa fez o sinal da cruz resmungando:

    – Não tem a menor graça. Deveriam ter visto o sujeito: dava medo.

    Floti saiu e, com ele, os demais irmãos. Só ficaram Iófa e Gaetano, que ainda queria perguntar algumas coisas a Cleto. Sempre desconfiara que aquele homem escondesse alguma coisa, que fosse algo que nada tinha a ver com um artesão andarilho que aparecia todos os anos com as primeiras nevadas e sumia no fim de fevereiro, às vezes sem consertar um único guarda-chuva. Todo sábado lavava a roupa: cuecas, meias e malha de baixo, que deixava secar diante da boca do forno ainda quente depois do cozimento do pão. Os Bruni o hospedavam assim como hospedavam quem quer que batesse à sua porta à cata de um prato de sopa e de um lugar onde passar a noite. Em troca, ele contava histórias de países longínquos, de vicissitudes extraordinárias que os lavradores de uma pequena aldeia nem podiam imaginar.

    – Diga a verdade, agora que só ficamos nós três: você acredita mesmo no que contava dom Massimino?

    – Acredito, sim. E você deveria fazer o mesmo, Gaetano. O seu irmão é um ingênuo, acha que tudo pode ser explicado com raciocínios bem simples. Está errado. Há muitos fatos inexplicáveis, à nossa volta há todo um mundo que não podemos ver nem ouvir mas existe e pode mudar a nossa vida de uma hora para outra. E há forças que é melhor não desafiar.

    – E por que, então, queria que Floti fosse com você até o Pra’ dei Monti?

    – Andar no meio da noite, sob a neve, por uma estrada de terra, a caminho de um lugar esquecido sobre o qual paira uma antiquíssima lenda, o faria entender que estamos cercados de mistério.

    Gaetano não tinha absoluta certeza de ter compreendido o que o velho queria dizer, mas sentiu um arrepio na espinha. Iófa tinha arregalado dois olhos cheios de medo, e Gaetano entendeu:

    – Por que não dorme aqui, esta noite. Amanhã pode dar-me uma mão na ordenha e então a gente come alguma coisa: ovos com presunto, e um bom copo de vinho novo.

    – Vou ser sincero, com um tempo destes não vou recusar. A palha está aí, fofa e sequinha, a capa será um bom cobertor. Dá para querer mais na vida?

    – Boa-noite a todos, então – disse Gaetano, saindo.

    Logo que a porta se fechou, o velho dos guarda-chuvas retomou a palavra:

    – Dom Massimino era um homem bastante incomum, e eu o conheci a primeira vez que passei por aqui, muitos anos atrás. Certa vez, no fim de junho, com os campos cheios de trigo loiro como o ouro e as cerejeiras que se curvavam sob o peso das frutinhas vermelhas e maduras, formou-se acima desta terra uma tempestade nunca vista. Nuvens de margens esbranquiçadas mas negras como piche, e trovões que resmungavam ao longe, não deixavam dúvidas: ia cair um toró com granizo do tamanho de ovos. Uma saraivada de globos de gelo iria destruir o trabalho de um ano, deixando as famílias sem ter nada que comer. – Iófa teve um arrepio, como se as rajadas do vendaval estivessem gelando os seus ossos. – Dom Massimino saiu então pela porta principal da igreja e escancarou-a para que até o Jesus Cristo do altar pudesse sentir o vento gelado da tempestade como quando, nu, estava pregado na cruz. Então levantou os olhos para aquele céu de piche e abriu os braços quase a proteger a aldeia inteira. Murmurava alguma coisa – não sei bem o quê –, orações ou exorcismos, e, apesar do frio, estava molhado de suor. Os seus joelhos tremiam no esforço, como se sustentassem nas frágeis costas o peso daquelas nuvens carregadas de gelo.

    Não o perdi de vista um só minuto, escondido atrás de uma coluna do pórtico. Afinal, depois de quase uma hora de desigual duelo com os elementos, dom Massimino levou a melhor: lentamente o céu clareou mostrando um rasgo de azul. A tempestade amainou, o trovão emudeceu ao longe. Vi-o desmoronar sem sentidos. Quando se recobrou, eu era o único por perto. Conseguiu gaguejar: ‘Se me tivesse dado por vencido, teria sido um desastre, uma catástrofe.’ E eu não tive a menor dúvida de que estava dizendo a verdade. Pode entender, agora, por que acredito naquilo que ele dizia? Até mesmo quando falava daquela imagem do demônio: a cabra de ouro!

    Quando Gaetano chegou à porta de casa e se virou para dar uma olhada no estábulo, viu a fraca luz avermelhada da lanterna que o iluminava apagar-se de estalo.


    ¹ Antiga medida de superfície, de tamanho variável conforme as diferentes regiões, mas por via de regra equivalente ao terreno que uma parelha de bois conseguia arar durante um dia. (N. da T.)

    ² Jogo de cartas simples e popular, tipicamente italiano. (N. da T.)

    2

    NO DIA SEGUINTE, LOGO ANTES DO ALVORECER, a neve tornou-se mais delicada e leve, e depois fina como poeira. Com a luz do dia, deixou definitivamente de cair. Os homens se levantaram bem cedo, pegaram as pás e começaram a trabalhar para desimpedir o caminho até a estrada. Iófa ajudou Gaetano a ordenhar as vacas, sentando então à mesa para o desjejum: ovos com presunto e um pedaço de pão tostado na brasa. O homem que aparecera na noite anterior na taberna da Bassa nunca mais foi visto na aldeia, tanto assim que alguns dos jogadores de briscola começaram a ter suas dúvidas quanto a tê-lo realmente encontrado e a ter ouvido as suas palavras. As crianças só puderam ir à escola depois que o milhafre, o carro quebra-neve puxado por três pares de bois, livrou o caminho. Costumavam chamá-lo assim porque tinha duas grandes tábuas de madeira divaricadas para empurrar a neve para as margens, justamente como as asas da ave de rapina. Os mais pobres não haviam comido coisa alguma de manhã, e iam de casa em casa pedindo um pedaço de pão como esmola. Usavam tamancos de pele ordinária que ficavam logo encharcados e depois encolhiam apertando os pés gelados. Os mais sortudos recebiam alguma coisa, os outros somente umas pragas ou um pontapé no traseiro. As crianças, por sua vez, até que gostavam de ir à escola, pois ali um bonito aquecedor de terracota espalhava calor e perfume de lenha de carvalho.

    Eram anos de miséria: tardias geadas na primavera e chuvas de pedra no verão haviam dizimado as colheitas, e já fazia um bom tempo que dom Massimino já não estava lá para lutar desarmado contra a tempestade. Descansava no velho cemitério, à sombra de um carvalho crescido por acaso de uma bolota. Na aldeia surgiam histórias por qualquer motivo, e este acontecimento também criara uma.

    Dom Massimino tinha levado uma vida pobre durante toda a sua existência, e até na paróquia, apesar de gozar da rica prebenda fornecida por cinco quintas, nunca se concedera mais que o mínimo indispensável, partilhando o resto com a diocese e os pobres. Queria ser sepultado com o corpo envolto numa simples mortalha, sem nem sequer o caixão, porque com aquele dinheiro daria para comprar bastante trigo para alimentar uma família inteira por pelo menos uma semana. Mas o Maligno, que tantas vezes ele derrotara, fizera o possível para atrapalhar. Deixara que urtigas e outras plantas daninhas tomassem conta daquela última morada, enquanto uma grande cobra d’água preta como piche escolhera o local como seu ninho, de forma que ninguém se atrevia a aproximar-se para dar uma boa limpeza ou para deitar no túmulo algumas flores silvestres. Certo dia, no entanto, uma pega branca e preta escondera ali uma bolota que se arraigara. Não demorou para uma abóboda verde encobrir e proteger a sepultura. As plantas daninhas e as urtigas morreram, e em lugar delas aparecera uma grama verde e viçosa, tão macia quanto o pelo de um gato. Um falcão agarrara a cobra que saía da toca e a devorara. A partir daquele dia, com a chegada da primavera, o humilde túmulo de dom Massimino se cobria de margaridas.

    Era uma das muitas histórias que o pessoal inventava para se consolar, na ilusão de que alguém pensava nele nos momentos da dor, da fome e do desespero. As famílias mais pobres enfrentavam o inverno como uma maldição divina, em casebres onde, à noite, até a urina congelava no urinol, e as rezas das mulheres de nada adiantavam para protegê-las do castigo da fome e das doenças. As crianças pequenas enfraqueciam porque as mães não tinham leite, e, magras e diáfanas, definhavam até que uma febre malévola as levava embora. As mulheres já não choravam. Abriam a janela para que a almazinha do miúdo pudesse voar ao céu e murmuravam Santo paraíso, quase a dizer que ele tinha acabado de sofrer, mas não elas. Para elas iriam chegar mais gravidezes, mais tribulações, mais crianças que choravam de fome até ficarem sem voz, pois os homens nunca renunciavam àquilo, e de nada adiantava fechar os olhos e rezar para não ficarem grávidas. Era o que acontecia nas casas dos trabalhadores braçais, dos sem emprego fixo que se endividavam durante o inverno enquanto algumas lojas ainda lhes davam crédito, na esperança de pagar suas contas com a chegada da primavera e da possibilidade de arranjar algum serviço.

    Os Bruni moravam na mesma casa e trabalhavam na mesma lavra fazia cem anos, talvez até mais: ninguém, afinal, fizera as contas, e ninguém se lembrava de onde tinham vindo. Não tinham dinheiro, mas jamais sofreram a fome: leite, queijo, ovos, pão, presunto e salame nunca haviam faltado, pois o dono morava em Bolonha, o capataz só raramente dava as caras, e os Bruni não precisavam abrir mão do que dispunham para se manter em forma.

    Com o piorar da crise, no entanto, o dono também se tornara mais exigente. Um ano antes, quando o velho Callisto fora à cidade na leve carruagem puxada por uma potranca para acertar as contas, fora informado de que deveria contentar-se com metade do trigo e metade do milho, e, pelo jeito, tudo indicava que o mesmo aconteceria neste mesmo ano. Por isso continuava a adiar a ida à cidade. A Clerice continuava a dizer:

    – Callisto, quando é que vai acertar as contas com o patrão?

    E ele:

    – Um dia destes, Clerice, um dia destes.

    Mas àquela altura as farinhas de trigo e de milho tinham acabado, e o chefe da família teve de atrelar a potranca, vestir a roupa de veludo marrom e a camisa branca de cânhamo para visitar o tabelião Barzini. Clerice despediu-se na margem da estrada, agitando um lenço branco como se ele partisse para a guerra.

    Voltou ao entardecer, mal-humorado. Sentou-se à mesa e jantou com a cara enfiada no prato, sem dizer uma única palavra. Até Gaetano decidir quebrar o silêncio:

    – Então, como foi com o patrão?

    – Mal – respondeu o velho –, disse que o ano foi ruim e que teremos de comer mistocca.³

    – O quê? – respondeu Gaetano. – Trabalhamos o ano todo como escravos, nós seis, e ele tem a coragem de nos mandar comer milho como as galinhas? Aposto que ele come pão bem branquinho, ele, que vive coçando a barriga. Que raio de contas lhe mostrou?

    – As contas de entradas e despesas. Afirma que estamos no vermelho.

    – E o senhor não disse nada?

    – O que podia dizer? Ele é um homem instruído, e nós somos uns ignorantes. Como diz o adágio: O papel canta e o lavrador dorme.

    – Se o senhor concordar, posso visitar o patrão amanhã mesmo. Vou com Iófa, na sua carruagem, e pode ter certeza de que voltarei com o trigo, vocês vão ver.

    – Como quiser – respondeu o velho. – Se estiver com vontade, não vou impedir. O que importa é trazer para casa o trigo, mas pode acreditar: não vai ser fácil.

    Voltou a comer a sua sopa em silêncio e, quando acabou, levantou-se e foi para a cama.

    Gaetano era um pedaço de homem de ombros largos como um armário, e estava decidido a levar adiante o seu propósito. Na manhã seguinte, ao alvorecer, pegou a bicicleta e foi à casa de Iófa, o carroceiro. Encontrou-o enquanto escovava o cavalo e preparava a ração.

    – Preciso de um serviço seu – disse.

    – Hoje não dá. Tenho um carregamento de saibro, preciso levá-lo do rio até a estrada para tapar os buracos.

    – Pode fazer isso amanhã. Agora preciso de você e do seu carro.

    – E aonde vamos?

    – À cidade, preciso falar com o tabelião.

    – E para que precisa do carro? Não pode ir de bicicleta, agora que está usando a roupa de domingo?

    – Não, não posso carregar duas toneladas de trigo na bicicleta.

    – E quem acha que vai lhe dar todo esse trigo? O patrão?

    – Ele mesmo. Disse ao meu pai que estamos lhe devendo e que, este ano, teremos de comer somente milho, como as galinhas. Vou esganar o sujeito, se não me der o trigo. Como ele acha que podemos trabalhar doze, catorze horas por dia só comendo bolachas e polenta de milho? Então, vai me levar ou não?

    Iófa pensou no assunto, fez algumas contas, olhou para o volumoso relógio que trazia na algibeira, sacudiu a cabeça e respondeu:

    – Você é cabeçudo como uma mula, mas somos amigos e não posso me recusar. Está pronto? Vai viajar assim mesmo?

    – Por quê? Acha que há alguma coisa errada comigo?

    – Não, não, está tudo bem, até parece um milorde. Só o tempo de atrelar e podemos partir.

    Gaetano ajudou-o a empurrar o cavalo entre as barras do carro, a firmar os arreios, enquanto dizia:

    – Não pense que vai sair no prejuízo, vou lhe dar duas staia⁴ de frumento para que também possa ter o seu pão por algum tempo.

    Quando ficou tudo pronto, sentaram-se na boleia e Iófa incitou o cavalo, que avançou a passo. Pegaram o caminho de Fossa Vecchia e quando o sol surgiu já estavam perto da Via Emília.

    Cruzaram com vários outros carros que iam e vinham, pois além do mais era terça-feira, dia de mercado. Até viram passar um automóvel, um Fiat Tipo 3 preto, todo enlameado devido às poças, que buzinava adoidado para abrir caminho entre os carrinhos de mão e os puxados por animais.

    – E pensar – disse Iófa – que há gente que pode comprar um deles. Sabe-se lá quanto custa...

    – Não seja por isso, eu posso lhe dizer logo – respondeu Gaetano. – Custa doze mil liras, quase o preço da nossa lavra.

    – Não acredito, jura?

    – Juro. A nossa quinta custa mais ou menos quinze mil liras, mas mede mais de cem tornature e dá de comer a um montão de pessoas. Se tivesse o dinheiro, bem que compraria o nosso terreno, nem pensaria num automóvel. Então já não teríamos um patrão que nos diz o que fazer e o que não fazer. O meu pai sempre conta que, quando ainda éramos crianças e chegava o capataz, mandava nos esconder na pocilga porque o sujeito resmungava: "Muitas bocas para alimentar e

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