Ecofenomenologia decolonial: variações fenomenológicas sobre a alteridade
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Ecofenomenologia decolonial - Alexandre Marques Cabral
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Cabral, Alexandre Marques
Ecofenomenologia decolonial: variações fenomenológicas sobre a alteridade / Alexandre
Marques Cabral. – Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: NAU Editora, 2022.
(Coleção Fenomenologia e cultura; v. 3)
E-Book: 2 Mb; EPUB
Inclui bibliografia
ISBN (NAU): 978-65-87079-81-3
1. Fenomenologia. 2. Filosofia. 3. Descolonização. 4. Alteridade. I. Título. II. Série.
CDD: 142.7
Elaborado por Sabrina Dias do Couto – CRB-7/6138
Divisão de Bibliotecas e Documentação – PUC-Rio
Toda a gratidão ao amigo e professor Marcelo Norberto, que sugeriu a publicação deste livro. Gratidão também à Aninha, a Tomás e à Rosana, minha dileta família, por sempre apoiarem minhas curiosidades e investigações. Por fim, gratidão ao mestre e amigo Marco Casanova, que até hoje me ensina a caminhar nas veredas fenomenológicas.
Farei um altar pra comunhão
Nele, eu serei um com o mundo até ver
O ponto da emancipação
Porque eu descobri o segredo que me faz humano
Já não está mais perdido o elo
O amor é o segredo de tudo
E eu pinto tudo em amarelo.
(Emicida)
Abreviaturas
Foucault
DS – Em defesa da sociedade
MP – Microfísica do poder
VS – História da sexualidade I: a vontade de saber
UP – História da sexualidade II: o uso dos prazeres
VP – Vigiar e punir
Hannah Arendt
CH – A condição humana
DP – A dignidade da política
EPF – Entre o passado e o futuro
PP – A promessa da política
QP – O que é política?
TOA – Trabalho, obra, ação
VE – A vida do espírito
Heidegger
CFM – Conceitos fundamentais da metafísica (Mundo-Finitude-Solidão)
ID – Identidade e diferença
IF – Introdução à filosofia
OOA – A origem da obra de arte
QF – O que é isto – a filosofia?
QT – A questão da técnica
ST – Ser e tempo
Husserl
Ideias – Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica
Inv. Log. – Investigações Lógicas
Kant
CRP – Crítica da razão pura
Lévinas
AE – Autrement qu’être ou au-delà de l’essence
EI – Ética e infinito
EN – Entre nós: Ensaios sobre a alteridade
TI – Totalidade e infinito
Marion
DSE – Dieu sans l’être
ED – Etant donné. Essai d’une phénomenologie de la donation
PC – Prolegómenos a la caridad
Merleau-Ponty
FP – Fenomenologia da percepção
Nietzsche
CI – Crepúsculo dos Ídolos
GC – A gaia ciência
GM – Para a genealogia da moral
ZA – Assim falou Zaratustra
Tomás de Aquino
Sum. Teol. – Suma teológica
Simone de Beauvoir
SS – Segundo sexo
Sumário
Apresentação
Introdução* – Iniquidade e desterro: da condição mortal à naturalização do assassinato
1. Fenomenologia como arte de fazer visível: considerações gerais
2. Visibilidade, mundo e alteridade
2.1. O caráter político-existencial do mundo
2.2. Mundo, alteridades e ipseidade: correlação de transparências
3. Colonialidade e desalterização
3.1. Desalterização e invisibilidade histórica
3.2. Metafísica como dispositivo político-existencial
3.3. Niilismo e colonialidade: o subterrâneo das luzes da Europa
4. Necroecopolíticas coloniais: da deformação do éthos e da pólis à desfenomenologização do oikós
4.1. Necropolítica: amplitude e limites conceituais
4.2. Éthos, pólis e oikós: a Terra como sentido do mundo
4.3. Necroecopolítica: sobre a quase universalidade das vidas mortas
5. Fenomenologia decolonial, alterogêneses e reexistências ecopolíticas
5.1. Alterogênese e reexistência: sobre a fenomenologização decolonial das alteridades
Referências
Apresentação
Permita que eu fale e não as minhas cicatrizes.
Emicida
É imprescindível romper a aliança entre classe, elites políticas, educacionais, culturais e econômicas e uma parte da classe trabalhadora reunida pela supremacia branca, que vem possibilitando a reprodução do sistema do capitalismo racial. Rompendo essas alianças, a identificação de parcela da classe trabalhadora com líderes supremacistas violentos será dificultada.
Cida Bento
O brasileiro é um povo alegre e cordial!
Por aqui tudo acaba em samba!
Não sou racista. Tenho até amigos/as negros/as. Minha tataravó era negra.
Há democracia racial no Brasil, vide a miscigenação.
Cota é mimimi, vitimismo.
A empregada aqui em casa é como se fosse da família.
Não tenho nada contra os gays. Só não precisam se beijar na minha frente, aí já é demais!
Prefiro ter um/a filho/a morta/a ter um/a filho/a trans.
O mundo está muito chato: já não se pode mais fazer piada sobre negros/as, gays, deficientes, travestis, mulheres, índios. Parece que tudo agora é racismo, misoginia, capacitismo, homofobia, transfobia, assédio.
Seu cabelo é tão bonito, tão cheio. Como se faz para lavar?
Isso é programa de índio.
Tem que matar mais
. "Acho que não se devem eliminar e esquecer autores e teorias europeias somente porque agora há estudos decoloniais, com essa história de valorização dos saberes ancestral e dos povos originários. Como ficam a erudição e o acúmulo cultural dos últimos séculos? Não se pode jogar fora a água do banho com o bebê.
O problema é apenas de classe, como afirma a sócio-história. Não tem nada a ver com gênero, raça, deficiência ou orientação sexual.
Você me entendeu mal, não foi o que eu quis dizer.
Desculpe, eu não sabia que isso era racismo, assédio, estupro, genocídio. As pessoas estão muito reativas hoje em dia.
Não posso resolver o problema do Brasil."
Quantas vezes já presenciamos essas falas? O coronelismo colonial brasileiro se faz ouvir em toda a parte. Defende com garras e armas o heteropatriarcado da casa grande. Uma teia urdida por expressões preconceituosas e violentas – sempre acompanhadas por justificativas que se pretende serem muito plausíveis – é tecida cotidianamente por aqui. Nas casas, salas de aula, instituições, nos jornais, revistas, programas de TV, nas redes sociais, conversas de bar, nos artigos acadêmicos, salões de beleza, shopping centers etc., vão sendo costurados os olhares e discursos que sustentam a chibata contemporânea: o extermínio de vidas indígenas, de vidas negras, de vidas transexuais, de homossexuais, travestis, das pessoas que vivem nas ruas e/ou empobrecidas economicamente; das matas e florestas, dos rios e bichos, terras e mares. Essas frases preparam o extermínio pelo assassinato, stricto sensu, do corpo espancado, vilipendiado, estuprado, torturado; do mato queimado, da madeira cortada, do peixe entalado com plástico. O extermínio também ocorre pela recusa e pelo impedimento da possibilidade de ser quem ou o que se é. Que encarcera em massa em masmorras sub-humanas, novas-velhas senzalas, enterrados/as vivos/as. O genocídio-epistemicídio, que é o traço do colonizador, embora sua pena conte outra história, segue ativo em nosso país, em nós. A tentativa de apagamento de múltiplas narrativas, a truculência contra as resistências de quem não precisa da nossa permissão para falar, nunca precisou, mas de quem só vemos, quando vemos, as cicatrizes, responsabilizando individualmente e acusando quem as porta. Antes fosse para participarmos das lutas para evitar novas feridas e não para reduzirmos essas vozes ao lamento e à lágrima, à impotência e à incapacidade, à preguiça e à má vontade, ao crime e à anormalidade, à subalternidade ou ao exótico. Assim, não reconhecemos nem os sofrimentos evitáveis e naturalizados, nem a resistência e o poder de continuar sendo em um mundo que invalida e se recusa a admitir que/quem/como/onde essas vidas são. Ou que, ao contrário, admite demais, cimentando-as nos não lugares onde se encontram e dos quais não há possibilidade de saída ou de terra à vista. Condenados e expulsos da terra em sua própria terra, que não devem nunca se esquecer de qual é o seu
lugar.
O livro de Alexandre Cabral nos convoca a nadar com essas vidas em luta, contra a corrente do silenciamento, da invisibilidade, da iniquidade e das desalterizações. Não só. Alexandre também caminha pelas ruas do Rio de Janeiro, aquelas que não aparecem na propaganda de turismo na Cidade Maravilhosa
(a não ser na do turismo sexual). Esse outro circuito passa pelo centro da cidade à noite, quando os edifícios comerciais se fecham, o movimento do dia desaparece e outro cresce sob as marquises; por ruas e casas onde (sub)vivem profissionais do sexo que contam somente com a proteção da Pombagira; por terreiros e comunidades periféricas. Caminha, abraça, conversa, ri junto, chora, interessado nas vidas e escrevivências de pessoas que, em nossa bolha, insistimos em ignorar ou condenar, cujas dores afirmamos que não nos dizem respeito: mas, acontece que dizem. Sobretudo a nós, que firmamos o pacto da branquitude; a nós, acadêmicas/os brancas/os, moradores/as da Zona Sul, estudados/as, que hoje nos letramos, descobrindo
a radicalidade que sempre fundamentou o chão da terra continental em que pisamos e que recebeu o nome da madeira roubada e extinta. Radicalidade sempre presente e bem visível nas vidas e nos saberes dos movimentos negros, na luta pelos direitos da população indígena e da preservação ambiental, na militância LGBTQIA+ e anticapacitista, enquanto nos encantávamos com sonhos dourados de epistemologias europeias e nos sentíamos tão pequenas/os diante da magnitude intelectual inatingível de pensadores estrangeiros, com suas bibliotecas, seus museus, suas catedrais e universidades erguidas e abastecidas pelo combustível extraído das colônias. Modernidade, superioridade, cultura, riqueza e progresso que se tornaram possíveis porque tiveram como alicerce a brutalização, a exploração, a aculturação, a violência e a barbárie. Tiveram? Há muito, o modelo colonizador foi assumido pelos coronéis-milicianos da cidade e do campo e pelas sinhazinhas de todo o Brasil, elites do atraso, como apontou Jessé Souza, e da iniquidade, como afirma Alexandre Cabral.
É urgente aceitar o convite deste livro para ecofenomenologizarmos a nós mesmos/as, ao/à Outro/a a partir dele/a mesmo/a, a essas realidades e a esses modos de existência, ou seja, pararmos de desviar o olhar do explícito encoberto amenizado, naturalizado, justificado, do que sempre pareceu ser como as coisas são. Importante alertar que este é um livro de desassossego: inquieta, desacomoda, tira o sono, impossibilita continuar vivendo como se vive. Desconforto indispensável para nos desanestesiar, deslocar, desabituar o nosso olhar acostumado e indiferente aos horrores das vidas dos/as Outros/as, mas também às vozes, ecoepistemologias, singularidades, espiritualidades. Leitura que nos obriga a olhar para os lados, para o que não vemos em nós, a fim de nos darmos conta de que o mundo não gira em torno do umbigo da branquitude heteronormativa, racista, capacitista, misógina, xenófoba, transfóbica, homofóbica, armamentista, autorreferente, eurocêntrica com seus devaneios de consumo, ascensão, acumulação e sucesso.
Ecofenomenologia é desobediência aos processos de domesticação e subalternização necropolítica. É desnaturalização de sentidos previamente dados que cristalizam relações que beneficiam alguns/mas em detrimento de tantas/os outras/os. É interseccionalidade na apreensão do sofrimento. Como afirma Carla Akotirene (2020):¹
Contrária ao padrão de apagamento linguístico, inferiorização espiritual e arquitetônica, dos quais partem os genocídios europeus alargados pela exportação de corpos feminizados, pelo saqueamento, pela catequização e pela falsa descoberta da América, convalido a desobediência epistêmica
, argumentada por Walter Mignolo, em defesa da identidade política e não da política de identidade. Do meu ponto de vista decolonial, é contraproducente empregar interseccionalidade para localizar apenas discriminações e violências institucionais contra indígenas, imigrantes, mulheres, negros, religiosos do candomblé, gordos e grupos identitários diversificados. O padrão global moderno impôs essas alegorias humanas de Outros, diferenciadas na aparência, em que preconceitos de cor, geração e capacidade física aperfeiçoam opressões antinegros e antimulheres – mercadorias humanas da matriz colonial moderna heteropatriarcal do sistema mundo. (p. 35)
Ou, como nos diz Cabral em sua proposição de alterogêneses amorosas:
Ora, as alteridades não são quem são senão na teia da interfenomenalidade que constitui a tessitura do mundo e da Terra. Dessa forma, amar eto-ecopoliticamente é afirmar as alteridades como alteridades e a rede da interfenomenalidade na qual toda alteridade manifesta sua significatividade.
Interfenomenalidades, interseccionalidades, ecointencionalidades, ecofenomenologizações, desobediências: não são todas encruzilhadas, férteis cruzamentos? E não é Exu orixá da comunicação e da linguagem, senhor da encruzilhada, do entre, mensageiro intermediário entre as divindades e as/os humanas/os? E não é Oxum rainha das águas, da fertilidade e do amor, como a Pombagira o é da encruzilhada, da transgressão e do empoderamento?
Saudando Alexandre Cabral pela entrega de mais esta oferenda, não podemos finalizar esta abertura senão pedindo licença aos orixás masculinos e femininos: Laroiê! Ora iê iê ô!
Cristine Monteiro Mattar
Departamento de Psicologia/UFF
¹ Akotirene, C. (2020) Interseccionalidade. Coleção Feminismos Plurais. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra.
Introdução* – Iniquidade e desterro:
da condição mortal à naturalização do assassinato
As páginas deste livro nasceram do espanto diante da morte. O espanto, contudo, não diz respeito ao fato
, aparentemente constatável por todo ser humano, de que um dia morreremos, deixaremos de ser, desapareceremos em absoluto. Aliás, preciso me corrigir. O substantivo morte
nem sempre me espanta. É que a morte é quase sempre uma abstração. A morte, pensada como substantivo, em si mesma, não há. Há o verbo morrer, e o morrer no plural: morreres. Por isso, é a condição mortal e a ação contínua da mortalidade parecem me espantar. Morrer vem de dentro; é atuação da finitude nos átrios, mesmo da vida. Nesse sentido, o substantivo morte
deve ser pronunciado como um nome comum a uma dinâmica plural, que atravessa, de ponta a ponta, a existência. Lembrando Camões: Fraqueza da humana sorte: que quanto da vida passa, está recitando a morte!
.² A vida recita a morte como seu poema – talvez o mais belo. Aqui, o substantivo acusa a força viva do verbo morrer
. Por isso, a morte não é o que chega ao fim de um processo, mas os versos escritos pela poesia do existir. A vida recita a morte como seu poema mais íntimo e, por esse motivo, nada do que fazemos e somos deixa de receber as marcas da mortalidade. Morremos, logo, somos.
Na matriz do que chamamos de cultura ocidental, está a experiência ímpar da Grécia Antiga (homérica,