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O Civilismo na "terrinha do vatapá": representações do "povo" na campanha eleitoral de 1910
O Civilismo na "terrinha do vatapá": representações do "povo" na campanha eleitoral de 1910
O Civilismo na "terrinha do vatapá": representações do "povo" na campanha eleitoral de 1910
E-book275 páginas3 horas

O Civilismo na "terrinha do vatapá": representações do "povo" na campanha eleitoral de 1910

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Sobre este e-book

O ano era 1910 e o Brasil se preparava para a sucessão do presidente Afonso Pena. Dois candidatos disputavam a presidência da República: de um lado o baiano Rui Barbosa e do outro o gaúcho Hermes da Fonseca. Nos estados, as oligarquias corriam contra o tempo construindo acordos para garantir a vitória de seus postulantes ao Palácio do Catete. Nas ruas, um clima poucas vezes visto no período: caravanas, comícios, discursos em praças públicas e "santinhos" conclamavam a participação do "povo" em meio a eleições que eram bem excludentes. A Campanha Civilista, como ficou conhecida, foi capaz de modificar o cenário político de vários locais do país, dentre eles, a Bahia. Nesse sentido, através de uma vasta documentação (charges, jornais, correspondências entre autoridades e fotografias), o livro demonstra como esse pleito reordenou as alianças partidárias até então construídas na "terrinha do vatapá" e, amparado por uma específica historiografia, constata que essa pugna eleitoral é um dos exemplos que nos permitem entrever a Primeira República (1889-1930) para além da "política do café com leite".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de out. de 2022
ISBN9786525256986
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    O Civilismo na "terrinha do vatapá" - Willan Januário

    1. INTRODUÇÃO

    A Bahia, Salvador, 14 de janeiro de 1910:

    O transatlântico inglês Astúrias surgiu, vagarosamente, no horizonte do mar da Baía de Todos os Santos, em um dia de céu aberto e azulado. A bordo, um baiano ilustre, Rui Barbosa, em campanha eleitoral para a defesa de sua plataforma de governo. À sua espera, milhares de pessoas, dentre elas, os correligionários e as autoridades mais destacadas, tais como o governador Araújo Pinho e o senador José Marcelino. Acompanhando os líderes políticos estavam as esposas, que saudavam o paquete sacudindo seus lenços. Além dos cidadãos ilustres, estavam profissionais liberais, estudantes da Faculdade de Medicina, outras senhoras e também uma massa curiosa que se sentia atraída pelos movimentos na Navegação Baiana.¹

    Entre os apitos dos vapores, ouvia-se milhares de vozes que gritavam em um eco vibrante as seguintes palavras: Viva Rui Barbosa!; Viva a República Civil!; Viva São Paulo!; Viva a Bahia! ²

    Aos poucos, o navio chegou ao ancoradouro. Ali, as ovações se multiplicaram. O centro da cidade se esvaziou e cresceu o movimento de pequenas embarcações acopladas. Nas ruas próximas à Cidade Baixa, nas travessas e ladeiras, o povo afluía ao bairro do Comércio e a multidão se acotovelava.³

    Os bondes vinham repletos e retornavam vazios. Retardatários tomaram saveiros do cais, em direção aos vapores. Nas imediações do prédio da Companhia de Navegação Baiana, a multidão aumentava a cada instante. Nos Largos do Teatro, do Conselho e de Santo Antônio, o povo disputava os lugares. A afluência aumentou com tal intensidade que, a certa hora, não se podia mais transitar no local.

    Uma multidão comprimia-se no interior do edifício da Navegação Baiana, acotovelando-se. Em cima do banco ou pelas grades havia gente. Gente que sofria pelo desejo de apoteosar Rui Barbosa. A cada minuto, o candidato civilista era aclamado. E ainda havia gritos de receio: Esta ponte desaba!; ou essas correntes não resistem!. Mas, a onda crescia e o povo coalhava as ruas próximas.

    Todo um cerimonial foi preparado para recepcionar o baiano ilustre. A banda do Terceiro Corpo de Polícia tocava e, nos momentos em que o cortejo passava próximo às janelas das casas, crescia o número de senhoras e senhorinhas que o saudavam. Rui Barbosa recebeu homenagens dos estudantes de Medicina, mulheres jogavam flores em sua direção, oradores proferiam discursos, o povo o aplaudia. Era o começo de sua campanha na Bahia, que teve outros eventos, tais como a recepção do Conselho Municipal, no Palácio das Mercês, e as aclamações próximas ao Elevador Lacerda e no Teatro Politeama, quando foi ovacionado, dentre outras homenagens.

    As descrições que o leitor acaba de ver acima foram adaptadas das matérias publicadas pelo jornal A Bahia que relatou a chegada, em sua terra natal, do candidato à Presidência da República, Rui Barbosa, que se encontrava em campanha pelo país e, dias antes do evento em solo baiano, ainda colhia os frutos de sua notável caravana eleitoral ao estado de São Paulo. Essas cenas permitem entendermos que os textos jornalísticos do início do século XX não eram nem um pouco imparciais, sobretudo se pensarmos que o evento descrito anteriormente, talvez, não tivesse ocorrido de forma tão pomposa ou em tão grande número de pessoas, como os simpatizantes do presidenciável procuraram salientar. Por outro lado, o detalhe que mais chama-me a atenção nesse trecho é o destaque que o noticioso dá ao que chama de povo, massa ou onda. Isto é, quando notabiliza o comparecimento de uma multidão, que tinha o objetivo de prestigiar a presença de um orador, cujos discursos – vale lembrar – eram reconhecidos pela difícil compreensão.

    Foram os questionamentos dos relatos de fontes históricas como o jornal A Bahia que o livro agora apresentado se debruçou. Ou seja, a pesquisa procurou fazer indagações em textos como os expostos nos parágrafos antecedentes, tais como: será que realmente a grande apoteose descrita pelo jornal soteropolitano foi realmente apoteótica? O que esses proprietários dos veículos de imprensa entendiam acerca da expressão massa popular? Resumidamente, a obra se direciona ao estudo das representações dessas categorias em diversos documentos produzidos no período histórico indicado. Sejam nos discursos do próprio Rui Barbosa, nos veículos da imprensa, em caricaturas produzidas pela Revista do Brasil ou nas correspondências entre as autoridades, é possível perceber o esforço de evidenciar a adesão de camadas sociais, as quais, vagamente, eram chamadas de povo durante a chamada Campanha Civilista (1909-1910).

    Assim sendo, fica imprescindível assinalar que essa pugna eleitoral foi fundamental para a Bahia e, consequentemente, ficou gravado nos registros históricos das eleições brasileiras, justamente, por criar um clima político poucas vezes visto, até aquele momento. Pois, foi possível ver as ruas tomadas por comícios, panfletos sendo distribuídos, marchinhas tentando convencer os eleitores e, ao mesmo tempo, chamar a atenção de indivíduos não aptos ao voto. Nesse sentido, o estudo do civilismo é um exemplo da importância das pesquisas que se debruçam sobre o campo da História Política, posto ser um evento que apresenta fontes com significativas informações e vão além das tramas de gabinete. Por outro lado, a disputa presidencial entre o senador Rui Barbosa e o Marechal Hermes da Fonseca também deve ser vista como revelação de que a conhecida aliança São Paulo-Minas Gerais não era totalmente hegemônica. De outro modo, evidencia a participação de outros estados nos embates eleitorais da Primeira República (1889-1930).

    Em partes, o interesse pela temática das campanhas eleitorais nasceu antes mesmo do meu ingresso na universidade. A participação em eventos de cunho político, como comícios, passeatas e debates, na minha adolescência... Embora ainda não fosse uma visão militante, partidária ou teórica, de certo modo, já poderia ser uma preocupação com os problemas do viver urbano. Por sua vez, ao entrar no curso de História, pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), um mundo acadêmico estava pronto para ser descoberto, com professores e colegas que tinham além de uma visão partidária sobre a política, uma atuação em movimentos sociais, como o movimento negro, o movimento dos sem-terra, as lutas das mulheres, dentre outros. O contato com esses grupos, os debates teóricos e as pesquisas realizadas permitiram-me a ampliação da visão sobre o campo.

    Especificamente sobre a disputa eleitoral de 1910, a origem foi ao longo dos estudos sobre a história da região sul da Bahia. O primeiro contato com a Campanha Civilista surgiu no Grupo de Estudos de Lima Barreto, quando os membros do projeto ficaram encarregados pela leitura de determinadas obras do escritor. O livro escolhido foi o romance Numa e a Ninfa, publicado, em 1915, como folhetim para o jornal A Noite, no Rio de Janeiro. Tal obra reproduz, de forma crítica e bem-humorada, a campanha e o clima do governo Hermes da Fonseca. A partir daí o objetivo da pesquisa foi entender as relações entre o civilismo e a emancipação política da cidade de Itabuna, que aconteceram no mesmo ano.

    No decorrer da investigação, algo se sobressaiu dentre as análises das relações entre as autoridades: as constantes citações à categoria povo, principalmente, nos discursos de Rui Barbosa. Nesse sentido, é importante destacar que as investigações acerca do civilismo são inquietações advindas da graduação e se concretizaram na dissertação apresentada ao programa do Mestrado em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus Santo Antônio de Jesus, cujo livro agora apresentado é fruto. Dessa forma, como já foi assinalado, as representações desses grupos que não tinha direito ao voto é o principal objeto de análise dessa publicação. Assim, é relevante salientar que a pesquisa sobre a campanha eleitoral na Bahia tem importância, pois é um dos estudos pioneiros dentre as investigações históricas que se debruçam em entender as consequências do evento na região e, ao que se sabe, o primeiro a aprofundar a temática para um trabalho acadêmico. Enfatiza-se, também, que boa parte das fontes analisadas nesse texto, até o momento, não foram objeto de uma pesquisa mais detalhada.

    Na contemporaneidade, não é possível investigar a Campanha Civilista a partir de uma visão que apenas enalteça figuras de relevância política ou se prender a uma narrativa que não compreende os diversos papéis desempenhados pelos sujeitos históricos em uma dada sociedade. Nesse sentido, o presente trabalho se insere no campo da Nova História Política, que tem em René Rémond e Jacques Julliard expoentes que buscaram problematizar as diversas noções atribuídas ao político. Julliard aponta que, por determinado período, o campo teve má fama entre alguns historiadores, pois foi acusado de ser elitista e se prender a uma narrativa que não se direcionava a outros indivíduos.

    Obviamente o historiador se referia ao contexto do final do século XIX, quando o ramo da Política acabou submetendo-se às ofensivas proferidas por sociólogos como Émile Durkheim e François Simiand. Nesse sentido, inserido nas renovações propostas por movimentos como os Annales e, principalmente, a partir da geração da década de 1960, esse campo se renovou tendo que divisar outros ângulos, adotar novas abordagens e renovar-se metodologicamente, pois, conforme Julliard, aquela situação não podia [e]m primeiro lugar, porque não se ganharia nada em continuar a confundir as insuficiências de um método com os objetos a que se aplica.

    René Rémond, por sua vez, destacou a importância de se refletir sobre as eleições. Para o autor, os historiadores se interessaram pelo estudo das pugnas, principalmente, a partir dos resultados consignados desde a adoção do sufrágio universal na França e acerca do desempenho eleitoral dos partidos políticos da Terceira República. Rémond também analisou a antiguidade e a continuidade das eleições com o intuito de avaliar o que causou o interesse dos estudiosos em relação a esse campo. Nesse sentido, as análises de suas teses evidenciam que o fenômeno eleitoral é de extrema importância para a História Política, particularmente no que diz respeito às campanhas eleitorais

    (...) é parte integrante da eleição, é seu primeiro ato. Não apenas a manifestação das preocupações dos eleitores ou a explicação dos programas dos candidatos e dos temas dos partidos é a entrada em operação de estratégias, a interação entre os cálculos dos políticos e os movimentos de opinião. Sobretudo, ela modifica cada dia as intenções e talvez as relações de forças.

    Para Rémond, uma corrida eleitoral é peça chave para a compreensão da sociedade que vivencia a disputa política, na medida em que não é apenas um ato de apresentação de programas dos candidatos, mas uma operação de cálculos políticos e de interação social. Nesse sentido, meu intuito aqui é de analisar a Campanha Civilista (1909-1910), não como um simples ato de poder, pois quero abordar esse acontecimento como um evento importante para se compreender as primeiras décadas republicanas, sobretudo, na Bahia.

    Partindo desse ponto, uma vez lido com organizações como partidos e imprensa, é possível perceber que o estudo das elites se faz presente no transcorrer do texto. A noção de elites foi amplamente utilizada pelos historiadores nas últimas décadas, evidenciando, contudo, alguns problemas que envolvem essa categoria. Flávio Heinz propõe repensar essa concepção, não como heroica e excepcional, mas entendê-la em uma percepção que evidencie diferentes sujeitos e, ainda, compreender as diversas condições oferecidas aos indivíduos no desempenho de seus papéis sociais e políticos.

    Para o autor, a categoria elite é um termo empregado em um sentido amplo e descritivo, que faz referência a categorias ou grupos que parecem ocupar o topo das estruturas de autoridades ou de distribuições de recursos. Nesse sentido, ele percebe a palavra, muitas vezes, vinculada a sinônimos como dirigentes, pessoas influentes, abastados ou privilegiados, dentre outros, mas que, na maior parte dos casos, não apresenta forma de justificação. Heinz acredita que essa questão carece de maior detalhamento, pois entende-se que o poder da elite se impõe, por si próprio, dispensando maiores explicações.

    Na perspectiva apresentada por Flávio Heinz, as elites são definidas pela detenção de um certo domínio ou então como produto de uma seleção social ou intelectual. O estudo dessa categoria seria uma forma de determinar quais são os espaços e os mecanismos do poder nos diferentes tipos de sociedade ou os princípios utilizados para o acesso às posições de mando.⁷ Nesse âmbito, no que toca à pesquisa sobre as eleições de 1910 na Bahia, é preciso compreender as elites estaduais dentro de seus contextos, seus espaços, suas trajetórias, dentre outros aspectos. Dessa forma, é necessário conhecer a cultura política da época, ou seja, verificar os conjuntos nos quais estavam inseridas e nas relações que mantinham com outros grupos sociais.

    Os meses que sucederam as escolhas dos contendores da disputa presidencial - Marechal Hermes da Fonseca e Rui Barbosa - até o dia da eleição (maio de 1909 a março de 1910) foi um período de certa agitação. Apesar de não modificar a estrutura fraudulenta das pugnas republicanas e de não alterar os privilégios das oligarquias, a disputa eleitoral em análise apresentou algumas peculiaridades. O inédito clima de campanha provocou comícios concorridos, aumentou as contendas entre os jornais existentes, reorganizou alianças entre as autoridades, mas, principalmente, um termo foi constantemente veiculado pelos candidatos, pelos correligionários e pela imprensa: povo.

    As fontes investigadas, ao longo dessa pesquisa, fizeram alusão a essa categoria. No caso dos noticiosos, mostraram uma categoria curiosa, movida instintivamente e observando os políticos, acompanhando os comícios e cortejos da campanha. As charges representavam um indivíduo sem consciência política, facilmente manipulado pelas autoridades, denominado Zé Povinho. As fotografias destacavam a presença de autoridades, mas não deixavam escapar multidões em volta dos candidatos e correligionários. As correspondências trocadas entre as lideranças políticas, mesmo não destacando a presença dos populares, citavam-nos, além de frisarem as confusões causadas por jagunços e indivíduos que provocavam tiroteios, ferimentos e mortes.⁸ Como se pode perceber, a categoria foi empregada em sentido amplo, o que pode indicar um típico caso em que a linguagem nos leva a diferentes interpretações.

    Atentando-se à etimologia, é possível verificar uma gama de significados para o vocábulo povo. Na língua grega antiga, por exemplo, tem-se a expressão demos, que se refere aos habitantes das cidades. Mas, também a palavra laós alude à gente do povo. No mesmo idioma, existem outros termos que se assemelham e definem esse corpo social, tais como genos, éthos e óklos, que expressam um sentido mais próximo ao de massa. Por sua vez, o latim, língua que oferece maior amplitude de explicações, menciona o populus como categoria mais privilegiada que a plebs, que seria o populacho, a "gente miúda. Nesse âmbito, é notório que, nas línguas latinas, o termo teve variantes que realçaram várias conotações diferentes do mesmo termo populus.

    A partir das questões assinaladas, percebe-se que a categoria povo carrega um caráter polissêmico que permite um amplo debate em torno dos seus usos. Como então é possível entendê-los, principalmente, quando o objetivo é analisá-los em fontes produzidas pelas elites? O diálogo com os estudiosos da História Cultural é um dos melhores caminhos, pois utilizam um conceito importante, o de representação. O debate apresentado por nomes como Carlo Ginzburg e Roger Chartier permitem problematizar os questionamentos surgidos na leitura das fontes que mencionavam a presença do povo nas eleições de 1910. As contribuições desses historiadores, mesmo que tenham outros objetos de análise, contribuem de forma significativa para a pesquisa, principalmente, em questões teóricas e metodológicas.

    Ginzburg, por exemplo, destaca como, em diversos tempos e espaços, os governantes se fizeram representar através da construção de imagens e objetos, desde o Império Romano, quando se construíam manequins de líderes mortos. Da mesma forma, entre os reis ingleses e franceses dos séculos XIV e XV, até mesmo no Novo Mundo, entre os incas, que mantinham relações de reciprocidade com suas múmias, que se exprimiam em um típico banquete ritual. Nesse aspecto, o autor vê semelhanças: a necessidade de representação da imago, semelhante à presença do próprio governante morto. ¹⁰ Dessa forma, vemos que o conceito de representação é muito importante para analisar diversos hábitos que envolvem as relações sociais entre governantes e súditos, como também na religião e liturgia política de determinada época.

    Para Roger Chartier, as representações dizem respeito como em diferentes lugares e tempos a realidade é produzida por meio de ordenações, divisões e demarcações. Percebe-se que o autor vê uma história cultural do social que toma por objeto de estudo as representações desse mundo. Chartier também acredita que esses códigos, padrões e sentidos são compartilhados, ou seja, apesar de serem naturalizados, seus sentidos podem mudar, pois são historicamente construídos e determinados pelas relações de poder, pelos conflitos de interesses dos grupos sociais. Com isso, fica perceptível que as representações, para o autor, são expressas pelos discursos. O estudioso acredita nesse conceito como ferramenta teórico-metodológica capaz de captar a internalização simbólica das lutas pelo poder e dominação entre os variados grupos – ou até entre os indivíduos representantes desses grupos –, estruturadas a partir de relações externas objetivas entre os mesmos e que existem independentemente das consciências e vontades individuais que as produziram dentro de determinado campo social. ¹¹

    Chartier ainda se debruça na compreensão das origens do termo. Nesse aspecto, atesta que, nas definições antigas (como no Dicionário universal de Furetière), as concepções correspondentes à palavra apontam duas vertentes aparentemente contraditórias: por um lado, remete a uma ideia de ausência, o que supõe uma distinção entre o que representa e o que é representado; por outro lado, se refere a uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa. Na primeira análise, por exemplo, a representação se refere ao instrumento de um conhecimento mediato, que faz ver um objeto ausente, substituindo-lhe uma imagem capaz de repô-lo em memória e de representá-lo, tal como ele é. Outro sentido trabalhado por Chartier diz respeito ao campo simbólico, ou seja, quando uma relação decifrável é postulada entre o signo visível e o referente significado. E, nesse sentido, percebe-se que o estudioso acredita que esses mecanismos demonstram uma potencialidade explicativa em referência à teatralização da vida no Antigo Regime – sociedade observada pelo estudioso –, quando a representação de um líder se transformava em máquina de fabrico de respeito e submissão entre seus súditos.¹²

    Entretanto, como dialogar com as teses da História Cultural e os estudos sobre o povo? Nesse sentido, as fontes analisadas

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