Quanto tempo tem um dia: Experiências de maternidade
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Sobre este e-book
Susana Moreira Marques
Susana Moreira Marques é escritora e jornalista freelance. Foi colaboradora do Público, Jornal de Negócios e BBC World Service, e cronista na Antena 1. É autora do livro Agora e na Hora da Nossa Morte, traduzido para inglês, espanhol e francês. Em 2019, ganhou uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura. Vive em Lisboa.
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Quanto tempo tem um dia - Susana Moreira Marques
I
Foi naquela altura que deixei de conhecer a cidade. Não ia aos cafés nem aos restaurantes novos que abriam. Não sabia nada sobre as pessoas que chegavam de Nova Iorque ou Berlim ou Paris, à procura de alguma coisa que talvez pudesse ser encontrada num lugar pequeno ao sol. Dizia-se que as famílias iam acabar todas nos subúrbios mas eu não estava, por enquanto, nos subúrbios, e o meu bairro ficava no centro da cidade, perto de todos os lugares, mesmo aqueles a que nunca ia.
De manhã, fazia o caminho para a escola da minha filha mais velha, conhecendo exactamente os locais onde atravessar a rua, para segurança dela, e para chegar o mais depressa possível, porque apesar de vivermos perto da escola, estávamos sempre ligeiramente atrasadas. A escola ficava no topo de uma rua inclinada, numa praça que estava a ficar decrépita mas que um grupo de moradores andava a tentar salvar e, dali, via-se o bairro até à grande avenida onde se respirava a cidade. Sentia-se a vida a acontecer, o tempo a precipitar-se. Nalguns dias levava a bebé comigo, num sling, e depois descia a rua com ela, frequentemente acompanhada de outra mãe que também tinha ido levar a filha à escola primária e também tinha uma bebé que andava na creche da minha filha mais nova. Descíamos cada uma com a sua bebé pendurada, amparando-as com as mãos apesar de elas estarem seguras nos porta-bebés. Virávamos a esquina para a avenida e aquela mãe cumprimentava sempre um homem de muletas que costumava estar parado à porta de um prédio social. Ele sorria para a bebé dela e via-se que tinha esperado por aquele momento de acenar a uma criança.
A creche era perto tanto da escola da mais velha como de casa. Eu deixava a bebé e depois ia para casa trabalhar.
Ao fim da tarde, repetia o caminho. Cruzava-me com as mesmas pessoas, quase sempre mulheres. Algumas conhecia-as apenas de vista, de as cumprimentar à porta do infantário ou da escola primária, outras faziam parte da associação de pais onde me tinha envolvido, outras ainda eram mães de antigos colegas da minha filha de quem eu ainda sabia os nomes.
Nessa altura, parecia que estavam sempre a aparecer mais mães: a jovem mulher da livraria teve uma bebé, e a do café também, e, por coincidência, deram o mesmo nome às filhas.
Às vezes, parava para falar com alguma dessas mães, brevemente. Tínhamos sempre pressa. Com as mães chinesas ou nepalesas ou outras que mal falavam português trocava apenas um olhar cúmplice.
Nos dias de bom tempo demorava a voltar para casa. Levava a minha filha a comer um gelado à gelataria do bairro, onde ela muitas vezes continuava a brincar com os colegas.
A cidade tinha poucas crianças mas aquele bairro tinha muitas, apesar da falta de árvores e de parques, porque muitos casais jovens tinham comprado casa ali, quando ainda era barato, com planos para começar família.
Nessa altura, a cidade para mim era o bairro e o bairro, a aldeia da minha filha, onde ela conhecia as ruas, identificava as crianças dos prédios próximos, e sabia os nomes dos donos dos cafés.
Nessa altura, acontecia-me encontrar outros escritores, antigos colegas, simples conhecidos, que me cumprimentavam com espanto por me verem e me perguntavam se estava fora, onde é que vivia, e eu dizia que vivia em Lisboa mas bem poderia viver, como tinha acontecido noutra época, numa cidade estrangeira, porque na verdade eu vivia num sítio chamado maternidade e não sabia por quanto tempo.
***
A minha filha mais nova começou a andar num fim-de-semana em que nos ausentámos e, quando regressámos, começou a percorrer a casa sozinha. Quando aprendia uma habilidade nova, batia palmas a ela própria. Deixou de mamar e passou a comer tudo o que o resto da família comia. Começou a pegar no biberão sozinha, depois num copo, depois numa colher. Quando gostava muito de alguma comida, ria-se. Um dia disse claramente: «mamã». Aprendeu a dizer um conjunto de palavras que bastavam para se fazer entender: «papá», «dá», «mais», «já está», «olá», «tchau», «chão», «bebé», «não». Aprendeu rapidamente os nomes dos irmãos e tentava correr atrás deles. Era curiosa e gostava de observar as reacções das pessoas. Mordia ou beliscava e, a seguir, fazia-nos festinhas. Encostava a cabeça no meu ombro quando eu pegava nela e dava-me palmadinhas nas costas como o pai fazia com ela. A dada altura, ainda não tinha aprendido a dizer «gosto de ti», estava longe de o poder dizer, mas já o demonstrava. Uma noite, levei-a para o quarto para a adormecer e tentei embalá-la. Em vez de dormir, ela começou a dançar ao som da minha voz, a balançar-se nos meus braços, e, de repente, pela primeira vez, começou a dar-me beijos: no pescoço, no peito, onde encontrasse pele minha nua; e demos beijos uma à outra até ela se cansar e, finalmente, adormecer.
Nesse mesmo período, a minha filha mais velha fez sete anos. Tinha entrado na escola primária. Tinha começado a ler e a escrever. A primeira palavra que aprendeu a ler e a escrever foi «menina». «Mãe» também foi das primeiras. Começou a tentar ler rótulos à mesa, anúncios na rua, e o início dos livros que eu lhe lia à noite. Eu deixava-a no portão da escola e ela já entrava sozinha, com a sua grande mochila às costas, sem olhar para trás. Assistiu a crianças a ficarem de castigo e outras a serem recompensadas. Ela era das que normalmente são recompensadas. Começou a ter trabalhos de casa e a ser responsável pelo estado dos seus cadernos. No recreio, pela primeira vez, um menino chamou-lhe puta. Aprendeu palavrões. Começou a desafiar-me como não fazia antes. Mas também começou a dar-me conselhos e a consolar-me, se me apanhava triste ou irritada. Nessa altura, deixei de ser a pessoa preferida dela e fiquei em segundo ou terceiro lugar, atrás das figuras masculinas da sua vida.
Passou o início do Outono. Passou o Dia das Bruxas. Passou o Natal e o Ano Novo. Passou o Carnaval. Passou a Páscoa. Fez bom tempo. Choveu e fez frio. Fez bom tempo outra vez. E aproximava-se novamente o Verão.
Naquela altura, parecia que o tempo passava muito mais depressa. Mas talvez fosse exactamente o oposto: parecia que passava depressa porque, para mim, o tempo tinha parado. O tempo só se via nas minhas filhas, que todos os dias tinham crescido um pouco, tinham conhecido algo novo, tinham experimentado pela primeira vez um sabor, uma sensação, um sentimento.
Nos meus caminhos pelo bairro, eu via como a bebé descobria o mundo — tal como tinha assistido, anos antes, com a mais velha. Ela arregalava os olhos nos mais pequenos percursos porque tudo lhe interessava. Um carro. Uma mota. Um anúncio que muda. Outra criança. Um velho. Um cão. Uma nuvem. Quando escurecia, a lua ou as luzes na noite. Mas não era verdade — como dizem que acontece quando se tem filhos — que eu estivesse a redescobrir o mundo com ela. Os meus olhos estavam quase sempre fixados nos olhos dela a fixar as coisas.
Se a irmã estivesse, a bebé seguia-lhe todos os movimentos. Normalmente, a minha filha mais velha corria à nossa frente. Quando desaparecia numa esquina ou debaixo de um vão de um prédio, a bebé gritava, porque ainda estava a aprender que as pessoas — e as coisas — não deixavam de existir por não estarem visíveis. E eu, que já o tinha aprendido há muito, acelerava o passo. Se ela demorava mais a aparecer, assustava-me. Por um momento, abria-se um abismo por onde o tempo