Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

A Casa de Poeira
A Casa de Poeira
A Casa de Poeira
E-book593 páginas7 horas

A Casa de Poeira

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Imagine que você está isolado no deserto, no lugar menos habitado do planeta Terra, correndo contra a sombra do seu passado, a culpa. Agora, imagine acordar desse pesadelo sem fim, sentindo-se seguro por um instante, dizendo para si mesmo que foi apenas um sonho... não foi sonho algum ¬– Você ainda está preso no pesadelo! Aquele deserto vazio está vivo, pronto para te engolir. Bom, quase vivo...
O último desejo de sua mãe força Marcos Rodrigues, um homem que luta contra seus vícios e culpa, a se reunir com seu irmão egocêntrico, João, em uma longa viagem pelo deserto. Quando presos na cidade fantasma de Esperança, os irmãos Rodrigues reviverão seus piores traumas, sempre questionando o quanto suas memórias influenciam a realidade.
A Casa de Poeira é um suspense sobrenatural que desafia a realidade com ecos do passado, confinando o leitor numa eterna prisão de luto.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de fev. de 2023
ISBN9783982499932
A Casa de Poeira
Autor

Leo Marcorin

After years of stories consuming, Leo Marcorin decided to stop complaining and start writing the way a good story should be: exciting, humane, and, most important recently, unique. With his debut, House of Dust, Leo Marcorin presented the best a supernatural thriller could be, rich and full of real characters navigating their worst nightmares.Son of a psychologist and a computer programmer, brother of doctors and academic researchers, and the weirdest of them all, Leo Marcorin was raised in Santa Barbara D’Oeste, a country town in the heart of Brazil. After graduating in Engineering, he established himself in the automotive industry as a Program Manager. Years later, Leo moved to Germany, where he still exercises his professional carrier and maintains his two big passions: Music and Writing.Leo Marcorin lives in Krefeld, Germany, with his beautiful wife, two cats, and far too many musical instruments.

Autores relacionados

Relacionado a A Casa de Poeira

Ebooks relacionados

Oculto e Sobrenatural para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de A Casa de Poeira

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

1 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A Casa de Poeira - Leo Marcorin

    PT_Front_small.jpg

    Copyright © 2020 Da Dusty Door - Leonardo Marcorin de Oliveira

    Todos os direitos reservados.

    Os personagens e eventos descritos nesse livro são ficticios, qualquer semelhança com fatos e pessoas, vivas, mortas, mortas-vivas, ou presas na Casa de Poeira, é mera coincidencia.

    Este livro ou ebook não pode ser reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa, por escrito, do autor ou editor, exceto pelo uso de citações breves em uma resenha.

    Para solicitar a permissão, contate o autor: leo.marcorin@gmail.com

    A Casa de Poeira - 1ª Edição, Fevereiro 2023

    Paperback: ISBN 978-3-9824999-4-9

    eBook: ISBN 978-3-9824999-3-2

    Editado por Rafaela Schendroski

    Arte e Capa por Alejandr

    Para Ela

    O Primeiro Ciclo

    A Viagem

    Marcos

    Algo estava atrás de Marcos, e ele sabia o quê. Seu fim!

    Por isso, pisou no acelerador, fazendo rugir o motor, ligeiramente curvando a caminhonete a ponto de a estrada roubar-lhe o preto dos pneus.

    A rodovia estava desolada durante a noite, mas Marcos sabia que a Sombra estava em seu encalço. Ele podia sentir em seus ossos!

    Havia pinheiros por toda parte. Marcos nunca pensou que eles pudessem curvar-se um ao outro, como um túnel, mas sua claustrofobia não lhe enganava. O farol da caminhonete de seu pai brilhava como um holofote, apontando para o centro do túnel. O fim.

    Outra freada. Uma derrapagem. Desta vez, Marcos teve problemas para retomar o controle, mas ele o fez, já que sua vida dependia disso.

    De repente, ele a viu!

    A Sombra estava logo após a curva.

    Vruum;

    Marcos freou.

    Squeeak, squeeak.

    A picape patinou…

    Marcos perdeu o controle.

    Plum!

    … E capotou.

    Ele capotou uma vez.

    Duas vezes.

    Eternamente.

    Bash!

    Silêncio.

    Mais silêncio.

    O som do fogo estalando e dobrando o metal da caminhonete trouxe Marcos de volta à realidade.

    Ele não sabia onde estava, uma vez que o teto era o chão, e o assento, uma parede.

    Tudo lhe doía; seu sangue estava por todo o vidro quebrado.

    O cheiro de borracha e o diesel queimando eram nauseantes.

    Mas que…  Marcos pensou, tentando mover-se sem pressionar as palmas das mãos contra o vidro.

    "Só uma última vez!" - A Sombra sussurrou, soando como se agulhas adentrassem a pele de Marcos.

    O rapaz tentou sentar-se, mas sua perna estava presa. Ele olhou através do para-brisa batido, esperando ver a estrada ou a Sombra observando-o. Em vez disso, ele viu a si mesmo deitado em seu quarto, segurando o saco plástico em que guardava sua heroína. A caminhonete não estava mais na estrada, mas no meio de seu antigo apartamento.

    Mas que…

    Marcos assistiu-se através do vidro quebrado, prestes a cozinhar sua droga, com a colher sobre o fogo do isqueiro. Era uma memória. Uma cena recorrente.

    Pare com isso, idiota!- Marcos gritou para si mesmo, seu antigo eu, pronto para ficar chapado.

    De repente, mais alguém gritou:

    "Marcos, onde você está?"

    Pai? - Marcos sussurrou tentando mover-se, inutilmente. Seu pé estava esmagado debaixo da fuselagem. Então, ele gritou com uma voz rachada e flácida: "Pai, saia daqui! A Sombra vai…"

    "Marcos, onde você está?" - gritou outra voz. Era Samanta, sua irmã mais nova.

    "Não de novo! Saiam daqui vocês dois!

    Marcos não podia vê-los. Via apenas a si mesmo através do para-brisa quebrado, pronto para ficar chapado, como em tantas outras noites. Assim como de costume, seu antigo eu rolava a agulha entre o indicador e o polegar, buscando uma razão para parar.

    Por que você está esfregando esta agulha agora, quando eu preciso de você? - Marcos gritou para seu antigo eu, mas sua memória não podia ouvi-lo.

    "Te encontrei!"- Paulo, o pai de Marcos, saudou-o, mostrando seu rosto de cabeça para baixo na janela.

    "Relaxa, vou te tirar daí."

    Marcos estava de volta à rodovia.

    Não, pai. Não de novo! - Marcos sussurrou ao notar outro farol vindo da estrada. Era um caminhão, um enorme caminhão de combustível. O motorista não podia enxergar a picape capotada após a curva.

    Paulo tentava alcançar Marcos, porém estava muito longe, seus dedos mal se tocavam.

    Paulo estava preso na janela, tentando livrar-se do metal dobrado da porta, quando percebeu a luz do caminhão vindo da estrada. Naquele momento, ele soube que não havia nada que pudesse fazer para salvar a si mesmo ou ao seu filho. Samanta, a irmã mais nova de Marcos, assistia à cena, paralisada, no meio da estrada, sem notar o veículo que se aproximava.

    Pai, sai daqui, por favor!

    "Se segure, campeão! As coisas vão balançar um pouco agora."

    Essas foram suas últimas palavras antes do impacto.

    A black and white logo Description automatically generated with medium confidence

    Não! - Marcos gritou e acordou no Jaguar de seu irmão.

    Finalmente, mendigo! Espero que eu, abrindo o capô, não tenha acordado a Bela Adormecida. - João grunhiu, vendo seu irmão mais novo, todo suado, acordando de seu sono pesado.

    Marcos estava ofegante, não conseguia respirar, apesar do vento de 150 km batendo contra seu rosto e cabelos.

    Fora um sonho. Apenas outro pesadelo. No entanto, como nos dias anteriores, Marcos acordou de um pesadelo para outro. Desta vez, porém, ele não conseguia se beliscar para sair dele.

    Os irmãos Rodrigues viajavam juntos há dois dias, contudo, em nenhum momento haviam tido uma conversa de verdade. Era muito claro o porquê de os dois estarem juntos naquele momento: a missão sagrada de realizar o último desejo de sua mãe. De fato, eles não tinham nenhuma relação um com o outro, apenas indiferença. Em suma, apesar de carregarem o mesmo sobrenome e terem nascido do mesmo útero, eram completos estranhos um ao outro.

    Foi o verão mais quente que Marcos vivera; os dias eram estupidamente quentes, e as noites, molhadas de suor. No entanto, o pior daquela viagem não era o calor, mas seu irmão mais velho, João.

    Para piorar, os Rodrigues atravessavam um deserto de sol tão intenso que era impossível fixar o olhar na areia ao redor, brilhante e infinita, por muito tempo. Marcos brincou que o contador de quilômetros só poderia ser o termostato, pois quanto mais eles rodavam, mais calor fazia.

    João adorava dirigir, principalmente, em alta velocidade.

    Acordar assustado de seu pior pesadelo devido ao incansável vento havia deixado Marcos com o humor abalado. Portanto, decidiu ignorar o irmão até o final do trecho. Infelizmente, não conseguiria fazer o mesmo quanto ao vento que soprava areia em seu rosto, cabelos, barba, olhos, nariz e orelhas, fazendo sua pele secar e coçar insuportavelmente.

    Além de ser forçado a viajar com João, o mais novo dos irmãos Rodrigues sentia-se ansioso e enjoado, pois estava passando por uma desintoxicação. Seu corpo queimava, seu estômago doía, e sua pele estava muito sensível ao toque. Marcos queria se coçar até que sua pele rasgasse. Sua mente não conseguia apagar da memória aquela seringa descansando no chão do apartamento.

    Desde a adolescência, ele lutava contra o vício devido ao trauma da morte de seu pai e irmã. Tinha sonhos recorrentes com a morte deles. Algo que se tornara ainda mais frequente desde a última semana, com o falecimento de sua mãe, Hera.

    Doía-lhe na carne, todas as vezes que pensava na morte dos seus; no olhar de seu pai no momento imediatamente anterior ao choque com o caminhão. Marcos sentia-se responsável pela morte de Paulo e Samanta já que havia ele causado a situação que os matou. Fora o pior erro de sua vida. Um erro com um custo incalculável. A memória daquela noite, o frio, a escuridão… tudo desmoronara.

    Naturalmente, tudo mudou depois do acidente.

    Marcos isolou-se, em depressão. No começo, não conseguia comer ou dormir, e os medicamentos tarja preta, prescritos pelo psiquiatra, mal o permitiam sobreviver ao dia. Ironicamente, as drogas, em contrapartida, produziam a sensação de que tudo poderia ser consertado com uma pílula.

    No entanto, elas eram apenas um placebo, enquanto a terapia e a reabilitação, apenas piadas de mau gosto. Quinze anos haviam se passado desde o acidente, e nada conseguiu curar sua dor. Marcos matara o pai e a irmã, e não havia quaisquer drogas ou palavras de consolo capazes de desfazer ou consertar aquilo.

    Hera, sua mãe, havia morrido de câncer uma semana antes; o que desencadeou aquela viagem desconfortável. Os médicos deram a Hera apenas alguns meses de vida; ela, porém, sobreviveu por três anos, durante os quais Marcos não bebeu um único gole de cerveja. Na verdade, ele mal fumava durante os anos em que foi seu cuidador.

    Mas no final, ela estava morta, e Marcos não pode resistir aos seus impulsos. Usar, ainda que uma vez mais apenas, trouxera de volta todas as suas manias e o vício, a necessidade química. Os anos ‘limpos’ se foram, junto àquela seringa no chão, ao lado da cama.

    A voz me disse que eu me sentiria voando, mas ela mentiu. A Sombra sempre mente., Marcos pensou. 

    Ele queria um cigarro, um simples cigarro, para curar a dor daquele momento; mas João deixou claro que fumar no carro era proibido. Vá se foder essa bosta de Jaguar!  João preferia gabar-se de seu ‘carrinho’ conversível a falar sobre a morte da mãe.

    João era tão irritante e impaciente... exceto quando dirigia. O bonitão era afiado como uma faca japonesa, sempre em ternos e sapatos importados e usando acessórios extravagantes como relógios, anéis de ouro e óculos de sol.

    João poderia ter sido um modelo de revista, mas ele escolheu ser um advogado, em vez disso. Ainda assim, Marcos via-o mais como um pastor, barulhento, gritando clichês para soar inteligente. Se João ouvisse tanto quanto falava, provavelmente não estaria se divorciando.

    Marcos era um contraponto óbvio: barba e cabelos pretos longos, tudo encaracolado e bagunçado, enfeitando um corpo magro como o de um faminto miserável. Marcos nunca se importara com roupas extravagantes, pois nada combinava com sua pele pálida; então ele sempre se vestia de preto, jeans ou flanela. Devido à aparência desleixada, João chamava-o de mendigo. A única coisa que Marcos admirava em si mesmo era sua voz baixa e rouca, algo que ele mal exibia.

    Carinha irritada, irmãozinho. - gritou João, sorrindo sarcasticamente.

    Marcos queria fechar o capô, interromper o vento em sua cara, ter um pouco de paz. No entanto, ele permaneceu em silêncio.

    João voltou sua atenção para a estrada, rindo.

    Nada a se fazer… É melhor eu tentar aproveitar essa situação. Marcos olhou ao seu redor, procurando algo com que ocupar a mente, mas o vento e o reflexo do sol na areia machucavam seus olhos. Tentava proteger-se da luz com a mão, mas era difícil olhar diretamente para o que quer que fosse.

    O cenário era incrível, como de um filme: um céu azul-claro com nuvens brancas desordenadas e finas, transparentes, passeando preguiçosamente no horizonte, movendo-se lentamente com o vento, como um artista pintando, delicadamente, uma tela. A areia vermelha estava por toda parte, no vento, nas pedras e no chão. Como mãos gigantes, as enormes montanhas rochosas socavam o ar, tentando tocar as nuvens lá em cima. O vento soprava os arbustos raros, como as crianças costumam fazer com os dentes-de-leão.

    Mal se via a estrada, era um fino fio de prata sobre uma grande roupa ocre, desgastada, judiada pela areia e pelo vento, ligeiramente elíptica. A areia cobria as bordas, impossibilitando distinguir a estrada, do deserto. Felizmente, não havia trânsito, então João manteve o Jaguar no meio, para não cair numa armadilha de areia.

    O ar estava seco e sem gosto, fazendo a língua de Marcos sentir-se como um animal peludo.

    Inevitavelmente, João reduziu a velocidade e fechou o capô, provavelmente cansado da turbulência. Ainda assim, o vento atingiu o para-brisa com a violência de uma cachoeira.

    Mais tarde, o sol pairou no horizonte, refletindo como água na estrada. Logo seria noite, e encontrar civilização não era algo certo.

    Está ficando tarde. - disse João.

    Tenho água, se você quiser. - respondeu Marcos, mecanicamente.

    João balançou a cabeça.

    Você tem certeza? Tenho o suficiente para nós dois, talvez mais... - Marcos disse.

    João perdera o foco. Marcos bebeu um pouco da água e se perguntou por que seu irmão mais velho nunca aceitava nada do que ele oferecia, como se suas coisas fossem impuras.

    Eles estavam dirigindo havia mais de três horas desde a última parada, e tudo o que encontraram até o momento eram areia e pedras. Não havia dúvida de que haviam se perdido no último cruzamento, duas horas antes.

    Você pode verificar o seu celular? O GPS não está funcionando. - João pediu.

    Eu não tenho celular. - Marcos disse.

    O quê? Como você não tem um celular? Você é um eremita ou algo assim? Porra de mendigo. Aqui, tente fazer essa merda funcionar. - João jogou seu Blackberry no colo de Marcos, repetindo, jocosamente:

    "Eu não tenho celular! Mas é um idiota mesmo!"

    O celular não funcionava.

    Bem, então vamos continuar até encontrarmos algo.

    Depois de um longo silêncio, João ligou o rádio, buscando alguma distração, mas só havia estática. Após apertar alguns botões aqui e ali, João colocou um CD de música duvidosa.

    Maroon 5? Sério? - Marcos disse.

    "Você não gosta de This love? Todo mundo está cantando essa música. Ah! eu esqueci. Você é ‘roqueirinho’. Se quiser, tenho Audioslave ou Creed."

    Creed é uma bosta!

    De fato, Marcos não queria ouvir nada, então qualquer coisa funcionava. Ele não conseguia parar de pensar em seus sonhos, em sua necessidade química, ou na marca do tanque de combustível atingindo um quarto.

    João murmurava algo inteligível.

    Posso ajudar com algo? Posso dirigir se você quiser descansar. - Marcos ofereceu.

    Você nunca vai dirigir meu bebê. Só queria saber por que concordei… quer saber? Foda-se! - João praguejou.

    Marcos sabia o que se passava na cabeça de João, pois ele próprio pensava: por que aceitei essa viagem?

    A resposta era simples: culpa. 

    João era culpado por não dar a mínima para a morte da mãe.

    Marcos era culpado por ter matado o marido dela, Paulo.

    Estava escuro quando João parou, saltando do carro para o deserto, olhando ao redor. Não havia sinal de civilização. Seria um longo caminho de volta para a última parada, São Cafasso. Pelo menos quatro horas. Até aquele ponto, eles estavam apostando com o tanque de combustível.

    Você não tem um mapa? - Marcos perguntou.

    Um mapa! Por que eu teria um mapa quando tenho um GPS?

    Para quando o GPS não funcionar? - sugeriu Marcos, e, pela falta de reação de João, o irmão mais velho entendera o dilema.

    Marcos continuou depois de uma longa pausa: Estamos perdidos desde a bifurcação…

    "Sério? Gênio!

    Li uma placa…

    "Sim, Esperança. Provavelmente é uma piada." - João disse.

    Verifiquei o mapa do hotel, mas não vi nenhuma cidade chamada Esperança próxima à costa. Que tal voltarmos para São Cafasso e tentarmos novamente pela manhã? O combustível pode não ser suficiente, mas pelo menos chegamos em algum lugar onde o seu celular pode funcionar.

    Covarde. Vamos meter bronca! Enfia essa bunda magrela de volta no carro. - João cuspiu no chão e entrou.

    Olha ao seu redor! Já parou para pensar que estamos muito longe da costa? Se voltarmos agora, pelo menos o prejuízo não é tão grande.

    "O prejuízo não é tão grande. Quem fala desse jeito? Volte para o carro ou fique aí no deserto." - João bateu a porta e ligou o motor.

    A black and white logo Description automatically generated with medium confidence

    Os irmãos passaram do ponto sem retorno. O medidor estava prestes a entrar na reserva, assim, voltar não era mais uma escolha. Marcos havia passado a última hora olhando para o marcador, tentando usar o poder de sua mente para empurrar a agulha de volta para cima. Não funcionou.

    O crepúsculo brilhava vermelho e laranja no horizonte, um belo pôr do sol.

    Finalmente, havia escuridão. E nada mais.

    "Vamos lá, deserto de merda! Mamãe estava certa, estou à deriva em um mar de perdição. Um mar de areia sem sentido!" - João gritou, socando o volante.

    Quando você falou com a mãe?- Marcos perguntou.

    "Eu não falei. Ela escreveu na carta." - João disse.

    O que ela escreveu?

    Não interessa.

    Um dos interesses de Marcos era saber o que a última carta de sua mãe dizia, mas João nunca recitou mais que uma sentença completa de cada vez.

    Por outro lado, o único interesse do próprio João era terminar aquela viagem ASAP, como ele costumava dizer. Marcos ouviu-o falando ao telefone sobre um julgamento que aconteceria em alguns dias. Tentando conversar, e talvez aprender mais sobre a vida do irmão, Marcos perguntou:

    "Você está com pressa por causa desse julgamento?"

    Como você sabe disso? - João perguntou, na defensiva

    Eu ouvi você falando no celular com seu sócio.

    João ficou um tempo sem esboçar resposta, possivelmente, pensando em uma. No final, ele suspirou, sorrateiramente:

    "Não é um julgamento, mas minha primeira aparição; Amanda está me processando."

    Sua ex-mulher? Se faz parte do divórcio, você não pode remarcar?

    João parecia tentar engolir uma bola gigante de terra, dizendo:

    Não é apenas o divórcio, e eu fiz m… Esquece.

    João aumentou o som do rádio, encerrando ali a conversa.

    O cair da noite rapidamente deu espaço para a noite escura, assim como o pesadelo de Marcos. Os irmãos estavam cansados e com fome, e a estrada não parecia querer terminar tão cedo.

    Tente meu celular de novo.- disse João, quebrando o silêncio.

    Sem sinal., Marcos disse.

    Talvez devêssemos voltar até termos um sinal e chamar alguém para nos pegar.

    João, você não está fazendo nenhum sentido. Não podemos dirigir muito mais do que 50 quilômetros de volta. Você deveria comer.

    Marcos tirou da mochila uma garrafa d’água e duas barras de cereal e, pela primeira vez, João aceitou, parando o carro para pensar e comer. O vento frio do deserto parecia cortar a pele de Marcos como uma faca afiada.

    Você está certo, precisamos continuar. Vamos encontrar essa tal de Esperança. Tenho certeza. - João parecia determinado.

    Se você quiser, eu posso dirigir enquanto você descansa. - ofereceu Marcos.

    Nem fodendo. Vou ligar o automático. Sim, isso mesmo! Meu bebê tem piloto automático. Legal, né? Ela é incrível. - gabou-se João.

    "Ela?" - Marcos repetiu.

    "Marcos, meu carro é uma dama. Meu bebê."

    Eles voltaram para o carro e depois de alguns ‘bips’, ele começou a dirigir-se sozinho. O rádio ficou desligado pelo resto do caminho, numa tentativa tímida de economizar combustível.

    A luz de neon do Jaguar cortava o breu da noite.

    A black and white logo Description automatically generated with medium confidence

    Marcos tentava relaxar, mas sua mente continuou embaralhando suas memórias agonizantes. Sua neurose parecia querer lembrar-se do tempo em que ele havia cuidado da mãe.

    Após o diagnóstico de Hera, Marcos deixou sua vida em stand by. Era um sacrifício que ele devia a ela; uma dívida pela morte de seu pai e irmã. O filho renegado era quem estava ao seu lado quando Hera recebeu a má notícia; enquanto João nunca atendeu o telefone, sabendo sobre sua leucemia uma semana mais tarde.

    João nunca demonstrou muita preocupação, portanto, Marcos era tudo o que ela tinha.

    Ele havia se formado em Ciências da Computação na faculdade comunitária e trabalhado em tempo integral em uma pequena empresa de software. Terminou os estudos sem muito esforço, passando a maior parte do tempo com sua banda de rock, tocando em shows underground. O trabalho de Marcos também veio fácil, já que, por alguma razão, sua chefe, Suzana, ia com a sua cara. Durante o tratamento de Hera, Suzana deu a Marcos todo o apoio, permitindo-lhe trabalhar de casa, fazendo-o prometer estar de volta ao escritório o mais rápido possível.

    No início, Marcos levava sua mãe algumas vezes por semana, durante seis semanas, à quimioterapia. Depois que o tratamento terminou, ele ainda precisava estar o tempo todo na casa da mãe, que ficava do outro lado da cidade. Finalmente, quando se cansou de desperdiçar tempo e dinheiro no trânsito, mudou-se para lá, prometendo estar ao seu lado até o fim.

    Por fim, ele viveu com Hera por três anos, deixando seu próprio apartamento às traças. Quando Marcos não estava cuidando da mãe, estava atrás de uma tela de computador, digitando códigos e mais códigos, por horas, durante longas noites.

    Os longos três anos foram um desafio. Não havia tempo para drogas, culpa, dor, festas, banda ou amigos. Havia apenas sua mãe e linhas de código branco sobre uma tela preta, aos quais Marcos dedicou-se inteiramente.

    Ainda assim, ela era terrível.

    Quando de bom humor, Hera fora quem planejara a viagem ao farol, que Marcos e João faziam naquele momento.

    Você deve dirigir, não voar. Lembre-se disso! - Hera costumava dizer. - "E levar minhas cinzas para o farol, para descansar com meu Paulo."

    Hera constantemente falava sobre tempos mais felizes antes da morte de Paulo, distorcendo alguns fatos aqui, outros ali. Marcos lembrava-se constantemente de sua infância, como quando ele e João brincavam de Lego, criando histórias, monstros, heróis e donzelas em perigo. Eles costumavam brincar no balanço, de esconde-esconde, e João até o havia ensinado a ler.

    Foram bons tempos.

    Então Samanta nasceu, e João tornou-se frio e distante.

    A verdade é que Hera fora uma mãe terrível, exceto para João, seu filho favorito.

    Marcos satisfazia Hera para poder continuar a ouvir sobre a viagem ao farol ou sua infância, pois a outra opção era uma merda. Quando não estava de bom humor, ela era terrivelmente má. Por algum motivo, odiava Marcos irracionalmente. Talvez fosse pela culpa de Marcos na morte de seu pai e irmã, mas sempre pareceu haver algo mais. Hera maltratava-o constantemente, jogando coisas nele; às vezes, chamando-o por nomes como "abominação ou fantoche da escuridão". 

    Ainda assim, Marcos a amava incondicionalmente. O que mais ele poderia fazer? Ela era sua mãe.

    João nunca dera as caras durante o tratamento, permanecendo completamente indiferente. No início, Marcos ligava para ele diariamente para informar sobre o estado da mãe; depois, uma vez por semana e, finalmente, uma vez ao mês. João estava sempre ocupado, desatento, correndo para reuniões com clientes, mesmo depois do horário de trabalho. Ela entende, certo? -  João costumava dizer, fingindo inocência. 

    O filho pródigo sempre tinha algo mais importante do que sua mãe com que se preocupar, fugindo daquela obrigação como o diabo da cruz. Mas o pior para Marcos era ficar sem desculpas para explicar a Hera porque seu filho preferido nunca a visitava.

    Foi egoísmo admitir, mas quando ela ficou delirante, Marcos teve paz. Hera tornou-se dócil e cansada, sempre sorrindo e murmurando coisas sobre Paulo - o pai de Marcos - e João, agindo como se eles estivessem ali, na sala, com ela.

    Foi uma longa e terrível sentença de morte, e Marcos permaneceu limpo enquanto teve de cumpri-la.

    Ele estava cansado de pensar sobre a morte, o passado, e o que ele havia feito de errado. A espera acabara; sua dívida estava paga. A partir dali, Marcos estava determinado a pensar apenas no futuro. Aquela viagem ao farol seria a última parada.

    Chega de viver no passado! - Marcos murmurou para si mesmo.

    A black and white logo Description automatically generated with medium confidence

    A lua cheia, solitária, brilhava pálida na superfície do deserto, em diferentes tons de cinza. Bilhões de estrelas, constelações após constelações, piscando infinitamente naquele claro céu aberto. Não havia as luzes da cidade, e era possível, facilmente, observar a Via Láctea se estendendo acima, como em um arco-íris. Os pontos brilhantes se conectavam formando criaturas sagradas — Cassiopéia, Órion, a Águia, o Cão, o Leão e o Urso. Marcos sentia-se humildemente pequeno: ele era apenas uma formiga presa a um ponto azul pálido no universo, esperando sua própria mortalidade morder suas bolas.

    Era lindo. E trágico.

    O Jaguar, por outro lado, era indiferente a tudo aquilo. Apenas uma máquina. Ele só sabia como dirigir adiante, a uma velocidade fixa, cantarolando seu motor e arranhando sua grande roda no pavimento.

    A noite trouxe o frio, cortando o corpo de metal e plástico do veículo como uma lâmina afiada. Ainda assim, os irmãos suportaram-no, pois não havia combustível suficiente para o aquecedor. No carro, apenas silêncio. Além daquele cheiro nauseante de pinheiro fresco do purificador de ar. No início, era um cheiro agradável, mas após respirá-lo por horas, tinha gosto de banheiro público.

    João estava claramente cansado, mas manteve sua compostura, como um bom homem de negócios. Era sua marca registrada, para sempre parecer confiável, mesmo quando criança. Hera moldara João com seus despojos, tornando-o consciente de que ele era excepcional. O centro do universo. As outras crianças eram apenas comuns.

    Mas a pior parte é que João era realmente único: boas notas, nadador excepcional - com medalhas e tudo -, beijando todas as meninas bonitas, e um bom cristão, como mamãe costumava dizer. 

    Ao menos, Marcos não estava sozinho. Ele tinha Samanta sempre presente. João ignorava aos dois, principalmente ela, como se a culpasse por ter nascido.

    Isso fez de Marcos e Samanta melhores amigos. Eles faziam tudo juntos: comiam cereais, assistiam a desenhos animados, e brincavam com as outras crianças. Até dividiram o mesmo quarto por muitos anos.

    Comparado a Hera, Paulo era justo. Ele era o herói de Marcos, o pai perfeito. Paulo costumava ler para Marcos e Samanta antes de dormir, levando-os para o acampamento no lago, falando sobre as ansiedades de Marcos e a constante aceitação que ele desejava de sua mãe. Acampar era o que Marcos mais sentia falta, dormir em tendas e assar marshmallows. João nunca se importara em acampar com eles, pois era um escoteiro, afinal, e ele sabia de tudo.

    Mas isso estava no passado!

    Quem sabe João e eu não voltamos a ser amigos nessa viagem?

    Ou talvez ele fique enojado com meus vícios e se afaste. Como sempre.

    A black and white logo Description automatically generated with medium confidence

    Porra de deserto! Estamos quase na reserva. Se não encontrarmos uma cidade nos próximos 20 minutos…. João parecia agitado, então Marcos tentou novamente o Blackberry, mas não havia sinal.

    A escuridão e a quietude do deserto fizeram as engrenagens mentais de Marcos girarem novamente, embaralhando mais memórias — Memórias sobre a Voz, a Sombra.

    As drogas não eram a única coisa errada com Marcos desde o acidente de seu pai. Ele sempre sentiu algo ou alguém com ele, como um espírito. Então, para sua surpresa, o tal espírito falou com ele um dia. 

    Aconteceu dois anos após o acidente de Paulo. Marcos vivia grogue devido ao Prozac, tão grogue, que mal podia ouvir os psiquiatras durante a terapia. Um dia, Hera quebrou o tornozelo na cozinha e tomou metadona para a dor. Essa foi a primeira vez que a Voz falou:

    Tome uma pílula. Fará você voar.

    E assim foi que o vício de Marcos começou: ocasionalmente, roubando algumas pílulas aqui e ali.

    Já viciado, o rapaz surtou quando sua mãe parou de tomar metadona. Começou a roubar pequenos itens da casa para comprar mais metadona, morfina ou qualquer opióide acessível.

    Aos dezoito anos, a Voz encorajou-o a provar cocaína, e a partir de então, tudo foi por água abaixo.

    Marcos não podia evitar. A mistura de antidepressivos e outras drogas fazia com que ele alucinasse. Essa era a única forma de ele conseguir ver seu pai e irmã. Ainda assim, a depressão tomou conta, e cada vez que Marcos ficava chapado, ele queria morrer, acabar com tudo.

    A única droga que parecia tirar-lhe a dor, ainda que momentaneamente, era a heroína. Ele queria voar todas as vezes, sem pensar, sem arrependimentos. Mas essa sensação nunca durava, e na vez seguinte, ele sempre queria mais. A Voz estava sempre tão presente, conversando com ele o tempo todo — um som agudo e sádico.

    No início, Marcos pensou estar perdendo a cabeça; o que estava tudo bem. Afinal, as drogas deviam ter feito algo ao seu sistema nervoso.

    Voz costumava dizer:

    "Só mais uma vez, e todos os seus problemas desaparecerão! Você voará… tão leve."

    Mas aquilo era uma mentira, pois a Sombra SEMPRE mentia. Depois que Marcos acordava, ele nunca se sentia mais leve, apenas ansioso ou zangado. Era um ciclo sem fim: mais heroína para controlar a raiva da sobriedade.

    Aos vinte anos, Marcos teve uma overdose. Ele acordou em uma cama de hospital, em uma sala fria, desorientado. João fora o único a ir ao hospital, dizendo:

    Morra se quiser, só não brinque com nossas vidas de novo. Termine o serviço da próxima vez!

    Hera ficou em casa e mal falou com Marcos por um mês depois da overdose. Aconteceu na mesma época em que João se formou em Direito. Marcos estava desempregado, fazendo bicos aqui e ali, equilibrando sua vida medíocre com seu vício e seus problemas financeiros. Foi um momento em sua vida em que apenas duas coisas faziam sentido: as drogas e a sua banda de rock. 

    Então, alguns anos antes do diagnóstico de Hera, Marcos conheceu uma garota que mudou sua vida. Ele não usou drogas pesadas por alguns anos, controlando seus impulsos quanto a fumar e beber. A Voz falou menos naqueles anos. Ele se formou em Ciências da computação e conseguiu um emprego fixo. Um dia, Marcos descobriu que a garota o estava traindo e, depois de um término feio, começou a usar novamente, só parando quando Hera adoeceu.

    A mãe dele morreu em um quarto de hospital em uma noite tempestuosa de janeiro, cercada por máquinas, a poucos metros da cama em que Marcos tivera sua overdose oito anos antes. O céu estava preto lá fora, com uma tempestade de verão a caminho. Raios e trovões soavam como uma besta descontrolada, um leão furioso.

    Hera transformou-se em um esqueleto. A outrora linda e forte mulher de cabelos ruivos havia sido consumida por uma doença faminta, tornando-se apenas um ser raquítico, pálido, com a pele rachada e tomada por cabelos brancos. Um tubo de respiração substituiu seu colar de ouro e esmeralda, a joia que combinava perfeitamente com seus lindos olhos verdes.

    Sua lucidez oscilava naquele dia em particular. Ela normalmente chamava por João, mas dormia no momento seguinte. Marcos ligou para o irmão várias vezes, mas ele nunca atendia o telefone.

    O quarto do hospital era branco e frio: não havia guarda-roupas nem cômoda, apenas uma cama hospitalar, e um monte de equipamentos médicos ocupando a maior parte do lugar, deixando espaço apenas para uma única cadeira desconfortável. Não havia TV ou rádio, então o som dos trovões e do vento jogando água contra a janela era toda a distração que Marcos tinha. Permaneceu sentado por horas segurando a mão frágil da mãe, em silêncio, enquanto as enfermeiras entravam e saíam algumas vezes para verificar os sinais vitais de Hera e ajustar a dose de morfina.

    Antes de morrer, ela falou uma última vez:

    Paulo, meu amor, me leve de volta para a fazenda.

    Antes de as máquinas subirem o volume do som do bipe, cantando a canção da morte, Marcos enxergou a Sombra pela primeira vez.

    O que acontecera primeiro, a morte de Hera ou a Sombra? Marcos já não tinha certeza.

    A criatura estava no canto mais escuro, não possuía qualquer forma distinta, mas um tom negro, como um buraco, uma fenda na parede. Movia-se como uma névoa empoeirada, negra - uma total ausência de luz e vida

    Marcos correu, em choque, horrorizado, e quando soltou a mão da mãe, ela começou a convulsionar. As máquinas, em sincronia com seu corpo frágil, batiam como tambores contra a cama do hospital.

    Os médicos entraram correndo, mas Marcos não conseguiu desviar o olhar da Sombra.

    Os trovões rugiram.

    E a morte fechou os olhos de Hera. Finalmente.

    O vento batia molhada e violentamente contra a janela, como um visitante indesejado, tentando forçar a entrada.

    Marcos finalmente foi capaz de falar. Na verdade, ele gritou horrorizado.

    Os médicos o levaram para outra sala. Não adiantou, pois a Sombra estava lá também. Lá e em todo lugar: nas salas, nos corredores, em todo canto escuro.

    Estou delirando. Só pode ser uma alucinação!

    Os médicos falavam, mas Marcos não os ouvia. Ele só ouvia a Sombra murmurando:

    "Só mais uma vez."

    Uma enfermeira gorda continuou arrastando Marcos de um lado para o outro, dando-lhe água e um comprimido, levando-o para falar com o psiquiatra do hospital. A Sombra estava em toda parte, sempre repetindo:

    "Só mais uma vez."

    As enfermeiras e o psicólogo não acreditaram nele, pois não havia nenhuma Sombra falante à espreita. Marcos estava obviamente em choque, então tentaram acalmá-lo o melhor que puderam. 

    Quando pode falar novamente, um agente funerário se aproximou para tratar do funeral, conforme o testamento de sua mãe e os trâmites da cobertura do seguro.

    Sombra estava sempre lá. Sempre no canto mais escuro.

    Marcos ligou para João uma última vez e, para sua surpresa, o irmão atendeu o telefone:

    "O que você quer? Não tem como você me ligar mais tarde? Estou ocupado pra caralho."

    Marcos estava aterrorizado, enlutado e com raiva, então respondeu:

    "A mãe acabou de morrer. O funeral é na próxima semana". Clique. O telefone foi desligado.

    "Só mais uma vez." - a Sombra repetiu.

    Depois que terminou de assinar os documentos, Marcos saiu do hospital, sentindo-se como num pesadelo. Ele não suportava ficar sozinho naquele momento, então dirigiu direto para um bar, ansioso por injetar a doce heroína mais uma vez.

    Após beber demais, a consciência de Marcos desapareceu. No dia seguinte, teve apenas alguns vislumbres daquela noite. Lembrou-se de estar em uma briga; de alguém o levando para casa e, em seguida, de estar dormindo em frente ao seu antigo apartamento, porque não conseguia encontrar as chaves.

    O síndico acordou-o e deixou-o entrar em seu apartamento com a chave principal.

    Ele tinha uma vaga lembrança de si mesmo entrando em seu apartamento, um lugar empoeirado e desconhecido, como retroceder cem anos, um passado distante. Ele se lembrava da poeira subindo do tapete a cada passo que dava e de como sua sala de estar e mobília barata de supermercado estavam cobertas de camadas de poeira.

    Sombra estava em todo canto, dizendo:

    "Só mais uma vez."

    Marcos lembrou-se de ter ido direto para o quarto e caído em sua cama, pulverizando poeira no ar.

    Sombra estava lá também, repetindo:

    "Só mais uma…"

    Lembrou-se, ainda, de fechar os olhos, mas não conseguir dormir. Rolando na poeira, da esquerda para a direita, da esquerda para a direita, da esquerda para a direita. Novamente.

    A tempestade desenhava fortes clareiras no céu, iluminando o quarto de Marcos a cada dois minutos.

    Os cães da vizinhança não paravam de latir mesmo depois de seus gritos grogues. A cabeça de Marcos doía tanto que ele pensou que ela explodiria.

    Mais trovões acendiam o vento empoeirado de seu quarto, tornando os momentos sombrios e pacíficos de silêncio ainda mais escuros.

    "Só mais uma vez".

    Não! - Marcos lembrou-se de ter gritado, afundando a cabeça em sua cama empoeirada e fechando os olhos:

    Vai se foder!

    Mas o sono não vinha.

    Foi inútil. Marcos sentia todo o seu corpo sendo empurrado contra a cama por uma força descomunal. Seu peito pulsava em batimentos cardíacos cada vez mais acelerados.

    "Só mais uma vez."

    Silêncio.

    Trovão.

    "… mais uma…"

    Foda-se! - Marcos pensou, ou disse. Ele não tinha certeza. Alcançando a cabeceira com o braço direito, agarrou o recipiente metálico todo enferrujado por dentro. Dali, ele tirou um saquinho.

    Seus dedos funcionavam mecanicamente. Marcos tirou uma seringa, um isqueiro e uma colher de metal de um Ziplock. Rápida e eficientemente. E antes que pudesse notar, ele terminou de queimar a heroína na colher e o líquido marrom preencheu a velha seringa.

    Era o momento de que Marcos mais se lembrava. De alguma forma, ele estava consciente. Sentou-se em sua cama, ainda segurando a seringa em seus dedos magros.

    A Sombra continuou sussurrando:

    "Só mais uma vez."

    Ele deve ter esperado vários minutos, rolando a agulha entre o polegar e o indicador. Esse era o seu ritual, toda vez, tentando achar um motivo para não injetar.

    Algo dentro de seu peito parecia gritar:

    "Pare com isso, idiota! Por que você está esfregando esta agulha quando eu preciso de você?"

    No final, após pensar em mil razões para mantê-la longe, Marcos sentiu a pressão da agulha contra seu braço, o líquido fluindo como uma brisa.

    No momento antes de Marcos espremer o êmbolo, a Sombra, no canto da sala, sussurrou:

    "Só mais uma vez."

    "Ah, vai tomar no cu!" - Marcos latiu e afundou em sua cama, como em um abismo. Ele olhou para cima, constatando o trovão ainda piscando nas paredes e caindo no vazio que era sua mente. Tudo escureceu, e Marcos sentiu como se submergisse em uma piscina de água escura, com a gravidade sempre o puxando para baixo, cada vez mais fundo. 

    Lutar contra a gravidade era inútil. Então ele desistiu.

    No dia seguinte, Marcos viu a agulha descansando no chão perto de sua cama e soube, imediatamente, o que havia acontecido. Levou alguns dias para se lembrar de tudo, para juntar as peças. À parte o peito dolorido, Marcos sentia-se bem.

    Naquela manhã, ele permaneceu na cama por horas, pesando sua alma na balança do destino, imaginando se, finalmente, merecia ser feliz.

    Os próximos dias passaram rápido como memórias.

    Primeiro, ele encontrou João no funeral de Hera. Três dias depois, os irmãos pegavam a estrada em direção à realização do último desejo da mãe: o farol.

    O farol era o limiar, o último capítulo de um livro longo demais. Depois daquilo, Marcos estaria livre de culpa, finalmente pronto para viver sua vida.

     O que é isso? - João sacudiu os pensamentos de Marcos de volta ao deserto.

    É um túnel.

    Havia uma montanha enorme no topo de uma colina. A estrada cruzava as rochas por um vale estreito. Era difícil ver o quanto a montanha se estendia no escuro, mas Marcos apostaria em quilômetros.

    João entrou no túnel, e a escuridão tomou conta. 

    Logo após cruzá-la, Marcos enxergou algumas luzes pálidas nas profundezas da cratera, como estrelas fracas. Havia algo estranho naquelas luzes, ele podia sentir em seus ossos.

    O carro se inclinou e o ar ficou mais frio quando a estrada desceu rumo ao vale. Aquele lugar, aquela estranha cratera com um vilarejo ao fundo, parecia Esperança. Ainda assim, Marcos tremeu quando percebeu que não podia mais ver a lua solitária.

    Esperança

    João

    João sentia-se miserável. Ele havia dirigido o dia todo para chegar a lugar nenhum. O tempo todo ouvindo a voz de sua mãe ecoando em sua cabeça: "Tome a vida do seu irmão como sua...". Carta idiota! Por que eu iria querer ser como esse encostado? Que piada!, João pensava.

    João, um homem sofisticado, jamais seria como Marcos, alguém tão… Blé!

    Viagem inútil, perda de tempo! Pedido inútil de uma mente senil. Por que aceitei dirigir até onde Judas perdeu as botas, por uma causa inútil, com esse mendigo do meu lado?

    João sabia o porquê, mesmo que ele nunca fosse admitir. Se ao menos ela soubesse o que estou passando nesse momento, tenho certeza de que minha mãe nunca me pediria isso.

    Eles poderiam ter voado para a costa, mas não!

    A Mãe disse que devemos dirigir, não voar. - Marcos havia dito.  

    Mão de vaca, não tem dinheiro pra comprar as passagens? Espero que esse vento na sua cara seja caro o suficiente!  - João pensou enquanto abria o capô do seu conversível.

    Cada dia longe de casa era um dia perdido para o julgamento. E para quê? Limpar vidro de para-brisa e lamentar a morte de sua mãe, o casamento acabado, e a carreira fodida, em silêncio? Em vez disso, João poderia estar trabalhando, planejando a defesa perfeita, como fez com tantos outros acusados clientes seus.

    Horas se passaram e, rapidamente, a noite chegou. João estava perdido, tentando entender a escuridão da estrada a sua frente, quase sem luz, sob a pressão da agulha de combustível. Seu coração era pura tristeza.

    Então ele viu o túnel, aquela estreita lacuna nas montanhas. Enquanto o Jaguar se inclinava colina abaixo, João se perguntou:

    Será Esperança?

    Eles entraram no túnel dirigindo lentamente e, por um momento, a escuridão tornou-se ainda mais densa. João não podia mais esquivar-se dos seus pensamentos aflitos:

    A black and white logo Description automatically generated with medium confidence

    A vida de João tinha ido para o brejo há três anos.

    Tudo desmoronara devido a um fantasma do passado, uma sanguessuga alimentando-se dele.

    Após pegar seu diploma em Direito, João, um jovem ambicioso, foi atrás dos clientes e casos mais importantes que podia. Alguém lhe disse que a justiça criminal poderia ser muito lucrativa caso você aprendesse a fechar os olhos para certas coisas; principalmente para crimes de colarinho branco. João era um estrategista brilhante, tão bom com palavras quanto com sua mente, e rapidamente fez fama.

    Um dia, alguém o abordou com uma oferta: um deputado estadual havia sido acusado de peculato, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. João estava preparado, portanto, representar aquele deputado veio no melhor momento

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1