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Cantilenas
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E-book105 páginas1 hora

Cantilenas

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Sobre este e-book

Existem mais fatos surreais em nosso cotidiano do que possamos imaginar. Do sertão ao mar, das histórias de um mundo fantástico aos problemas de uma família conturbada, é possível identificar aquilo que nos faz humanos e excêntricos, portanto, especiais. A coletânea de contos 'Cantilenas' conta as histórias surpreendentes de personagens icônicos, mundos, situações e cenas improváveis, em um culto aos fatos surreais, dentro da realidade instável que é o nosso cotidiano.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de out. de 2022
ISBN9786500541311
Cantilenas

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    Cantilenas - Mailson Ramos

    — 1 —

    Cantilenas

    Maria adormeceu sob a luz do candeeiro, ouvindo o canto dos grilos. Antes que o sono a capturasse, pensou no teatro, no sonho de ser atriz. Revirou-se na cama, acordou e voltou a dormir. Resmungou algumas dezenas de vezes e amanheceu com uma ideia fixa na cabeça: iria embora da Tapera do Acari. Deixaria a cansada mãe, os desalentados irmãos e o teimoso pai. Abandonaria o sertão fervente para se banhar nas águas refrescantes do litoral, em busca de sucesso nas companhias de teatro. Aprendeu com o tempo a ouvir a palavra não e estava disposta a repetir duas frases até que alguém lhe desse uma oportunidade. Sou atriz desde que nasci e quero apresentar o meu trabalho, dizia em frente ao espelho. Acreditava ser o bastante para convencer alguma alma piedosa pelo meio do caminho. Então mostraria o seu talento de atriz, o resultado de anos e anos de treinamento diante do velho barbudo, o mandacaru que vigiava o quintal da casa velha. Somente ele era testemunha fiel da sua dedicação. E embora não pudesse dizer palavra alguma, o cacto de longeva idade fazia brotar flores viçosas, anunciando a temporada das chuvas. Mas era mais que isso: o mandacaru concordava ser a hora de despedida.

    Após tomar café, Maria pegou os bilros e calculou quantas horas precisaria para finalizar aquela renda. D. Terezinha já estava tecendo desde as primeiras horas da manhã. O pai Antônio tomara o caminho da roça ao lado de Joaquim e Luiz. Ouvia-se apenas o barulho da casaca-de-couro, pousada nos galhos mais altos do velho flamboaiã. De meia em meia hora, a velha se levantava para olhar a carne de carneiro que secava ao sol, com medo de que as aves de rapina a levassem. E voltava resmungando das dores na coluna. Maria soltou os bilros lentamente e disse:

    — Vou embora para a capital.

    D. Terezinha continuou tecendo. Os olhos vidrados nós bilros e as mãos rápidas trançando as linhas como somente ela sabia fazer. Depois de alguns instantes, levantou-se, olhou a carne no varal e voltou ao seu lugar, resmungando novamente sobre as costas doloridas e a noite insone. Os cabelos brancos e lisos escorriam pela testa. A sua pele era enrugada e maltratada. Os olhos cansados olhavam com atenção para as linhas, enquanto toda ela se contorcia naquele movimento de criação.

    — Mainha! Vou embora para a capital.

    A repetição da frase fez com que D. Terezinha abandonasse os bilros no chão. Olhou para a filha rapidamente e voltou a encarar a renda perfeita, resultado do seu trabalho. Levantou-se lentamente para olhar a carne e ficou encostada no fogão de lenha, arrumando as panelas sobre a chapa, como se não quisesse voltar para a sala. Maria abandonou o trabalho e foi para a cozinha, onde mais uma vez repetiu que iria embora. A mãe desabou em pranto.

    — Antônio não vai deixar!

    — Ele não tem que deixar. Sou maior de idade e vou em busca do meu sucesso.

    — E onde tu pensa que vai ficar? Na rua?

    — Mandei uma carta para Ana. Ela disse que eu posso ficar lá até conseguir um emprego. Depois vou me virar sozinha.

    — Antônio não vai deixar!

    — Ele não pode me impedir. Por muito pouco não acompanhei o circo. Mas agora vou para a capital fazer teatro.

    — Com que dinheiro?

    — Com os caraminguás que guardei esse tempo todo.

    — Antônio vai colocar mil defeitos. E teus irmãos também.

    — Joaquim podia se casar com Lúcia. E Luiz comprar o carro velho dos seus sonhos. Senão eles vão viver assim para sempre, apegados à senhora e sob o cajado do pai.

    — Tu fala isso porque estudou um pouco. Mas os teus irmãos não...

    — No fundo, o velho nunca proibiu os dois de estudar. Joaquim só pensa em trabalhar e guardar dinheiro e Luiz em guardar dinheiro e trabalhar. Estudar um pouquinho não faria mal.

    — Se fizerem uma votação, ninguém vai concordar em deixar tu ir embora. Tu sabe como o teu pai é teimoso.

    A velha saiu no quintal, sob o sol abrasador que brilhava no meio do firmamento, e desatou a andar até o roçado. Parou diante do marido, estendeu os braços para o alto e disse que Maria iria embora para a capital. O homem soltou a enxada no chão e andou com passos decididos até a casa. Os dois filhos também deixaram as suas enxadas abandonadas no meio da terra e seguiram o pai. Não havia nada que pudesse demover Maria daquela ideia, nem mesmo os passos apressados do pai ou as palavras duras dos irmãos.

    — Não vai para canto nenhum! Diz para ela painho! — gritou Joaquim antes de cruzar o colchete.

    — Ideia de mulher sem juízo! — concordou Luiz.

    Maria permaneceu em pé. O vento quente que soprava desde as margens do Rio Acari desarrumaram os seus cabelos. Os olhos corajosos encaravam o pai. Estava pronta para responder aos questionamentos. Aquela poderia ser a última vez que ela teria que responder algo aos familiares. Conhecia o homem sincero e justo que se escondia por baixo daquela carapaça de turrão e rude.

    — Que conversa é essa de ir embora para capital, minha filha?

    — Vou ser atriz! Já decidi, painho!

    — Atriz? Que diabo é isso?

    — É ficar falando com o mandacaru, painho! — disse Luiz.

    — E falar com mandacaru é profissão?

    — A dela é — emendou Joaquim — Só quero saber o que ela vai fazer na capital, se lá não tem mandacaru.

    — Calem a boca! — gritou o velho — Vamos entrar. Eu quero que você me diga por que vai embora e como vai viver na capital. Se eu considerar que está certo, você vai. Senão, você fica!

    Entraram. Na mesa da cozinha, diante da família, Maria explicou como faria para sobreviver na capital. Revelou ter o apoio da prima Ana e que, se no intervalo de três meses não conseguisse nada, voltaria para o sertão. Entre uma e outra interferência dos irmãos, a moça contou que jamais abandonaria o sonho de se tornar atriz. Ela cresceu vendo as revistas e já havia até assistido telenovela na cidade. Queria pertencer aos palcos, como as grandes atrizes, e um dia poder ajudar a família.

    — Tu garante que vai preservar a tua honra? A honra de tua família?

    — Sim, pai! Isso é trabalho digno. Um dia o senhor vai ter muito orgulho da sua filha!

    — E tu diz o quê, Terezinha?

    — Eu digo que concordo com o que tu disser!

    — Mas quero ouvir a tua palavra, mulher! Tua filha está indo embora. Tu não diz nada?

    — Eu digo que ela pode ir, se tem vontade. Mas será que um dia a gente vai se ver de novo? — a velha indagou e as lágrimas rolaram desde os olhos cansados pela pele enrugada.

    — Que besteira, mulher! Deixa de mau agouro! Vai estar todo mundo aqui quando Maria voltar. Vou agora mesmo falar com comadre Judite para escrever uma carta. Dizer para Ana cuidar bem de você lá na capital.

    — O senhor vai afrouxar? — questionou Joaquim levantando-se bruscamente da cadeira.

    Antônio olhou para o filho com uma expressão de desagrado e bateu na mesa.

    — Eu não vou fazer como muitos pais por aí que mandam na vida dos filhos. Maria sabe o que fazer da vida dela. Vocês também. Deixe Maria seguir o seu sonho. Se amanhã não der certo, ela volta.

    — O povo vai falar! —

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