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Manual de direito na era digital - Civil
Manual de direito na era digital - Civil
Manual de direito na era digital - Civil
E-book793 páginas11 horas

Manual de direito na era digital - Civil

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Sobre este e-book

É com muito apreço que apresentamos essa Coletânea de Manuais de Direito
Digital, elaborada com muito carinho para que todos os Universitários possam
ter acesso a uma das mais dinâmicas áreas do Direito e vislumbrar um mundo
novo; quando o Direito e as tecnologias se combinam, exigindo dos estudiosos
do direito, uma compreensão além das leis.
A compreensão do mundo digital tornou-se imprescindível para qualquer
jurista que almeje sucesso em sua carreira uma vez que as novas tecnologias vieram
mudar a forma como vivemos nosso cotidiano e transformando nossos horizontes.
É com orgulho, que dedico essa Coletânea de Manuais de Direito Digital e
todos os estudiosos e curiosos sobre os avanços e transformações subjacentes ao
Direito Digital.
Agradeço enormemente a todos que colaboraram com o enriquecimento
dessa Coletânea de Manuais de Direito Digital!
Anna Carolina Pinho
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de out. de 2022
ISBN9786555156423
Manual de direito na era digital - Civil

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    Manual de direito na era digital - Civil - Ana Carolina Brochado Teixeira

    Manual de Direito na Era Digital Civil. Autor Ana Carolina Brochado Teixeira. Editora Foco.

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

    M294

    Manual de Direito na Era Digital [recurso eletrônico]: Civil / Ana Carolina Brochado Teixeira... [et al.] ; coordenado por Anna Pinho. - Indaiatuba, SP : Editora Foco, 2023.

    406 p. ; ePUB. – (Coletânea de Manuais de Direito Digital

    Inclui bibliografia e índice.

    ISBN: 978-65-5515-642-3 (Ebook)

    1. Direito. 2. Direito digital. 3. Tecnologia. I. Teixeira, Ana Carolina Brochado. II. Ramos, Ana Luisa Bastos. III. Machado, Bruna Vilanova. IV. Burille, Cintia. V. Casas, Fernanda Las. VI. Medon, Filipe. VII. Inácio, Gabriel Felipe Nami. IX. Costa, Guilherme Spillari. X. Rapozo, Ian Borba. XI. Melo Júnior, José Eustáquio de. XII. Faleiros Júnior, José Luiz de Moura. XIII. Morelli, Lucas. XIV. Bandeira, Paula Greco. XV. Barreto, Paula Mena. XVI. Silva, Rodrigo Gugliara da. XVII. Negri, Sergio Marcos Carvalho de Avila. XVIII. Venosa, Sílvio de Salvo. XIX. Neves, Thiago Ferreira Cardoso. XX. Paganella, Victoria. XXI. Barros, Vinicius Reis de. XXII. Almeida, Vitor. XXIII. Pinho, Anna. XXIV. Título. XXV. Série.

    2022-3140

    CDD 340.0285

    CDU 34:004

    Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949

    Índices para Catálogo Sistemático:

    1. Direito digital 340.0285

    2. Direito digital 34:004

    Manual de Direito na Era Digital Civil. Autor Ana Carolina Brochado Teixeira. Editora Foco.

    2023 © Editora Foco

    Coordenadores: Anna Carolina Pinho

    Autores: Ana Carolina Brochado Teixeira, Ana Luisa Bastos Ramos, Bruna Vilanova Machado, Cintia Burille, Fernanda Las Casas, Filipe Medon, Gabriel Felipe Nami Inácio, Guilherme Spillari Costa, Ian Borba Rapozo, José Eustáquio de Melo Júnior, José Luiz de Moura Faleiros Júnior, Lucas Morelli, Paula Greco Bandeira, Paula Mena Barreto, Rodrigo Gugliara da Silva, Sergio Marcos Carvalho de Avila Negri, Sílvio de Salvo Venosa, Thiago Ferreira Cardoso Neves, Victoria Paganella, Vinicius Reis de Barros e Vitor Almeida

    Diretor Acadêmico: Leonardo Pereira

    Editor: Roberta Densa

    Revisora Sênior: Georgia Renata Dias

    Revisora: Simone Dias

    Capa Criação: Leonardo Hermano

    Diagramação: Ladislau Lima e Aparecida Lima

    Produção ePub: Booknando

    DIREITOS AUTORAIS: É proibida a reprodução parcial ou total desta publicação, por qualquer forma ou meio, sem a prévia autorização da Editora FOCO, com exceção do teor das questões de concursos públicos que, por serem atos oficiais, não são protegidas como Direitos Autorais, na forma do Artigo 8º, IV, da Lei 9.610/1998. Referida vedação se estende às características gráficas da obra e sua editoração. A punição para a violação dos Direitos Autorais é crime previsto no Artigo 184 do Código Penal e as sanções civis às violações dos Direitos Autorais estão previstas nos Artigos 101 a 110 da Lei 9.610/1998. Os comentários das questões são de responsabilidade dos autores.

    NOTAS DA EDITORA:

    Atualizações e erratas: A presente obra é vendida como está, atualizada até a data do seu fechamento, informação que consta na página II do livro. Havendo a publicação de legislação de suma relevância, a editora, de forma discricionária, se empenhará em disponibilizar atualização futura.

    Erratas: A Editora se compromete a disponibilizar no site www.editorafoco.com.br, na seção Atualizações, eventuais erratas por razões de erros técnicos ou de conteúdo. Solicitamos, outrossim, que o leitor faça a gentileza de colaborar com a perfeição da obra, comunicando eventual erro encontrado por meio de mensagem para contato@editorafoco.com.br. O acesso será disponibilizado durante a vigência da edição da obra.

    Data de Fechamento (10.2022)

    2023

    Todos os direitos reservados à

    Editora Foco Jurídico Ltda.

    Avenida Itororó, 348 – Sala 05 – Cidade Nova

    CEP 13334-050 – Indaiatuba – SP

    E-mail: contato@editorafoco.com.br

    www.editorafoco.com.br

    Sumário

    CAPA

    FICHA CATALOGRÁFICA

    FOLHA DE ROSTO

    CRÉDITOS

    APRESENTAÇÃO

    SUCESSÕES E HERANÇA DIGITAL. REFLEXÕES

    Sílvio de Salvo Venosa

    HERANÇA DIGITAL: REFLEXÕES SOBRE O PRESENTE E PROSPECTOS PARA O FUTURO

    Ana Carolina Brochado Teixeira e Cintia Burille

    O DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E O DIREITO DIGITAL – CONTRATOS ELETRÔNICOS E A RESPONSABILIDADE CIVIL NO AMBIENTE DIGITAL

    Guilherme Spillari Costa e Victoria Paganella

    ROBÔS COMO PESSOAS: A PERSONALIDADE ELETRÔNICA NA ROBÓTICA E NA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

    Sergio Marcos Carvalho de Avila Negri

    RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PROVEDORES DE INTERNET

    Thiago Ferreira Cardoso Neves

    A PARTILHA DE BENS DIGITAIS

    Fernanda Las Casas e José Luiz de Moura Faleiros Júnior

    DIREITOS DA PERSONALIDADE NO METAVERSO SOB A ÓTICA DO DIREITO CIVIL BRASILEIRO

    José Eustáquio de Melo Júnior

    SOB DOMÍNIO: O ABUSO DE DIREITO DE REGISTRO DE DOMÍNIOS NA INTERNET

    Rodrigo Gugliara da Silva e Vinicius Reis de Barros

    TECNOLOGIA, IMAGEM E PRIVACIDADE: CONVERGÊNCIAS À LUZ DA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS NA SOCIEDADE TECNOLÓGICA

    Vitor Almeida e Ian Borba Rapozo

    INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITO CIVIL: DESAFIOS AO DIREITO À IMAGEM E À RESPONSABILIDADE CIVIL

    Filipe Medon

    DIREITOS AUTORAIS E O STREAMING

    Paula Mena Barreto e Ana Luisa Bastos Ramos

    NOTAS SOBRE A EXECUÇÃO DOS SMART CONTRACTS

    Paula Greco Bandeira e Bruna Vilanova Machado

    TUTELA DAS MARCAS EM PLATAFORMAS DIGITAIS: BRASIL E UNIÃO EUROPEIA

    Gabriel Felipe Nami Inácio

    RESPONSABILIDADE CIVIL POR SHARENTING

    Fernanda Las Casas e Lucas Morelli

    Pontos de referência

    Capa

    Sumário

    APRESENTAÇÃO

    É com muito apreço que apresentamos essa Coletânea de Manuais de Direito Digital, elaborada com muito carinho para que todos os Universitários possam ter acesso a uma das mais dinâmicas áreas do Direito e vislumbrar um mundo novo; quando o Direito e as tecnologias se combinam, exigindo dos estudiosos do direito, uma compreensão além das leis.

    A compreensão do mundo digital tornou-se imprescindível para qualquer jurista que almeje sucesso em sua carreira uma vez que as novas tecnologias vieram mudar a forma como vivemos nosso cotidiano e transformando nossos horizontes.

    É com orgulho, que dedico essa Coletânea de Manuais de Direito Digital e todos os estudiosos e curiosos sobre os avanços e transformações subjacentes ao Direito Digital.

    Agradeço enormemente a todos que colaboraram com o enriquecimento dessa Coletânea de Manuais de Direito Digital!

    Anna Carolina Pinho

    SUCESSÕES E HERANÇA DIGITAL.

    REFLEXÕES

    Sílvio de Salvo Venosa

    ¹

    Sumário: 1. Direito das sucessões. Noção; 1.1 A compreensão do direito das sucessões; 1.2 Noção de herança. Herança digital; 1.3 Direitos da personalidade; 1.4 Direitos da personalidade. Características e enumeração; 1.5 Do testamento analógico ao testamento digital – Referências

    1. DIREITO DAS SUCESSÕES. NOÇÃO

    Suceder é substituir, tomar o lugar de outrem ou de algo. No campo do Direito ocorre a substituição de uma pessoa por outra. Esse é o seu conceito amplo no campo jurídico. Assim, quando o conteúdo e o objeto de relação jurídica permanecem os mesmos, mas mudam seus titulares, há uma transmissão do direito ou uma sucessão. Dessa forma o comprador sucede o vendedor com relação ao objeto do negócio jurídico, o donatário sucede o doador e assim por diante.

    Desse modo, sempre que uma pessoa, que pode ser natural ou jurídica, tomar o lugar de outra em uma relação jurídica, se está perante uma sucessão. A etimologia do vocábulo, sub cedere, possui exatamente esse sentido, qual seja, alguém toma o lugar de outrem.

    Em direito a doutrina costuma fazer a sensível diferença entre a sucessão inter vivos, como por exemplo nos contratos, e a causa mortis, quando os direitos e obrigações de uma pessoa que falece transferem-se a seus herdeiros e legatários.

    Contudo, convencionou-se na doutrina jurídica que a referência a direito das sucessões consiste no tratamento legal das substituições de titulares por causa de morte.

    Assim como mais raramente ocorre na sucessão entre vivos, a sucessão por causa de morte transfere, em princípio, uma universalidade, que consiste na herança, acervo de bens, como um todo. A sucessão a título singular, mais ordinária nos negócios jurídicos, também pode ocorrer na sucessão hereditária por via dos legados, que é um bem certo e determinado que é transferido, por testamento ou codicilo. No direito das sucessões, portanto, distingue-se claramente o herdeiro, sucessor a título universal, ainda que de uma porcentagem da herança, do legatário, sucessor singular. Nada impede que possa ocorrer que um herdeiro tenha também a condição de legatário. Todavia, é importante acentuar que só haverá legatário quando houver testamento. Ou, em outras palavras, somente o testamento pode nomear um legatário. Os herdeiros podem decorrer da ordem legal ou do testamento.

    Destarte, do direito das sucessões é tratado no Código Civil, a partir dos arts. 1784. Cuida-se, nesse diploma, de seu último compartimento. Desse modo, o direito das sucessões possui esse entendimento restrito e sobejamente conhecido da doutrina, não se confundindo com as operações sucessórias ocorridas sob o direito das obrigações.

    1.1 A compreensão do direito das sucessões

    O ser humano, desde os primórdios de sua existência, sempre se questionou sobre o seu papel neste planeta e sempre acreditou ou esperou que houvesse meios de transcender sua vida de curto lapso, perante o curso da história.

    É tradicional afirmar-se que a personalidade surge no nascimento com vida e a morte faz tudo terminar (mors omnia solvit). Não só no direito sucessório, mas em vários aspectos sociológicos e filosóficos, sabemos que essa afirmação não é verdadeira.

    Se partirmos para divagações fora dos paradigmas do direito, não se pode dizer que com sua morte, pessoas como Bach, Beethoven, Mozart; Shakespeare, Camões, Cervantes, Goethe, Dante, apenas para exemplificar, não continuam vivas permanentemente por suas obras imorredouras. Hoje, no mundo digital, a perenidade dos grandes autores e cientistas, e até mesmo do ser humano comum restará para sempre de uma forma viva na sociedade. Esse aspecto tem muito a ver com o desiderato deste trabalho ao mencionar a herança digital.

    A ideia central do direito das sucessões, contudo, continuará aplicável, no que for possível e viável segundo o ordenamento, embora um universo novo se descortine com o mundo digital. Caberá, como sempre, aos juristas e ao legislador, traçar parâmetros para as novas formas de sucessões, pois, sem dúvida, o provecto direito das sucessões de nossos códigos não abarcam inúmeras situações, como veremos. A ciência do Direito está sempre a nos apresentar desafios, eis o cerne de sua magnitude e beleza.

    Tradicionalmente, há uma ideia central no corpo social, que é a figura do sucessor, comumente confundida com o herdeiro no campo das sucessões. Essa noção parte de uma das ficções mais arraigadas no corpo social, que é a da figura do sucessor, como continuador da pessoa falecida.

    Se atualmente, o direito moderno só vê a sucessão causa mortis sob o ponto de vista material, sua origem histórica é essencialmente extrapatrimonial, relacionada com os préstimos religiosos. No entanto, nos últimos séculos, a ideia de sucessor da pessoa falecida, mormente no cunho material, continua arraigada.

    A ideia de sucessão, nesse diapasão, não aflora somente no interesse privado, pois o Estado também tem amplo interesse de que o patrimônio não reste sem um titular, o que lhe traria mais um ônus. Ao resguardar o direito à sucessão, como um princípio constitucional (art. 5º. XXX, da Constituição), o ordenamento está também protegendo a família e regulando sua economia. Se não houvesse direito das sucessões, como na experiência malfadada da falecida União Soviética, no início do século XX, a própria capacidade do indivíduo estaria comprometida e desapareceria o interesse do cunho empresarial. A constituição soviética de 1936 veio restabelecer o direito sucessório, sem maiores restrições.

    Esta introdução se torna mais importante pois iremos cuidar a seguir dos direitos trazidos pelo mundo digital, com reflexos diretos na sociedade e no ser humano, cada vez mais dele dependente.

    O direito das sucessões tradicional disciplina, portanto, as situações jurídicas do indivíduo no momento de sua morte. A primeira ideia é que o patrimônio seja aquinhoado à família. Daí decorre a excelência da ordem legal da vocação hereditária, a chamada sucessão legítima, atribuindo os bens ao cônjuge supérstite, descendentes, ascendentes e colaterais até o terceiro grau em nosso direito. O testamento concede amplas possibilidade de terceiros serem aquinhoados, respeitada a limitação de metade da herança quando existentes herdeiros necessários, cônjuge, descendentes e ascendentes.

    Nesse direito sucessório tradicional prepondera a ideia de transmissão da propriedade. Porém, há que se recordar que direitos materiais e imateriais são transmitidos, mas sempre como um corolário do domínio.

    Desse modo, a relação do direito das sucessões com o direito de família é uma constante, o que não excluí repercussões no direito tributário, direitos reais e direito obrigacional, além, evidentemente do direito processual que traça as normas do inventario.

    1.2 Noção de herança. Herança digital

    Embora se utilize, com frequência, o termo sucessão como sinônimo de herança, faz-se necessário distinguir, como vimos. A sucessão se refere ao ato de suceder, que pode ocorrer por ato, fato ou negócio jurídico entre vivos ou mortis causa.

    O termo herança é exclusivo do direito das sucessões. Assim, herança é o conjunto de direitos e obrigações que se transferem em razão da morte, a pessoa ou pessoas, que sobrevivem ao falecido.

    A expressão de cujus é consagrada no foro, decorrente de frase latina. O termo espólio é visto como simples massa patrimonial coesa do de cujus, utilizada sob o prisma processual, enquanto não houver a partilha.

    Assim, a noção de herança ingressa no conceito de patrimônio. Deve ser entendida como o patrimônio da pessoa falecida. Patrimônio é o conjunto de direitos reais e obrigacionais ativos e passivos, pertencentes a uma pessoa. Desse modo, a herança deve ser entendida como o patrimônio da pessoa falecida, também denominado autor da herança.

    Na contemporaneidade, grande parte da população mundial vivencia simultaneamente relações e bens corpóreos e incorpóreos, perante a constante digitalização em todas as esferas.

    Como daí decorre, o patrimônio consiste em bens materiais e imateriais, mas sempre algo avaliável economicamente. Porque em princípio se afasta da patrimonialidade os direitos da personalidade. Esse aspecto é importante para análise que faremos da herança digital. Há direitos personalíssimos que se extinguem com a morte, embora mantenham reflexos depois dela. Há outros que merecem estudo mais aprofundado.

    Destarte, se torna oportuno e necessário pensar numa herança digital, tantas as formas de sua utilização em aparatos postos nas nuvens, nos meios e instrumentos digitais, sempre em evolução. Não será raro alguém que venha a morrer sem patrimônio material, mas pleno de manifestações digitais.

    Cada vez mais são guardadas informações de todas as naturezas nos escaninhos digitais. Esse aspecto originou a terminologia herança digital, o que não se ajusta propriamente a todas as situações. Algumas disposições digitalizadas possuem induvidosamente conteúdo patrimonial que devem integrar o direito das sucessões. Cuida-se de artigos, opiniões, entrevistas, textos de todos os níveis, aulas, palestras, discursos etc. que certamente se inserem no patrimônio da pessoa falecida.

    O legislador já busca enfrentar essa problemática com projetos, porque normalmente se esbarra nos direitos alegados pelos dirigentes de redes sociais que se recusam a reconhecer o conteúdo sucessório do armazenamento automático de que são detentores, recusando a informação de senhas e seus conteúdos.

    Há um direito sucessório inarredável nas tarefas virtuais deixadas pelo de cujus, que deverão ser atribuídos, salvo vontade em contrário expressa do titular, aos herdeiros legais ou testamentários. Aliás, o testamento, mormente o ológrafo como destacam os italianos, deverá converter-se em importante instrumento nessa matéria, uma vez que o testador poderá proibir que certas matérias de seu acervo digital sejam divulgadas e esse será um critério somente do interessado, enquanto não tivermos ordenamento legal. Talvez seja esse último aspecto a maior problemática em torno da herança digital. Em princípio, contudo, caberá aos sucessores, legítimos e testamentários, definir o destino desses materiais.

    Os bens digitais com claro valor econômico seguirão, sem maior dificuldade, os princípios gerais do direito sucessório, com a saisine e demais consequências legais.

    A maior dificuldade surge nos inúmeros bens digitais insuscetíveis de valoração econômica, que atingem os direitos da personalidade, sob o prisma cultural, ético e moral, ou naquelas situações, ainda que patrimonialmente avaliáveis, implicam em violações póstumas de direitos personalíssimos. Nesta última hipótese, o testamento ou mesmo um codicilo será de grande valia. Na ausência da última vontade, presumir o desejo do morto será missão complexa.

    Esse acervo digital integra, por conseguinte, a universalidade da herança e deve ser mencionado nas declarações do inventário. Já se fala num ciberespaço e cibercultura, enquanto o patrimônio permanecer indiviso como espólio, cada herdeiro se porta como condômino da universalidade.

    Sob essa problemática, se pode afirmar que a vida e a morte se completam e se unem inevitavelmente em um "contínuo processo osmótico" (Monforte, 2020:11).

    1.3 Direitos da personalidade

    O ser humano, para satisfazer suas necessidades, posiciona-se em um dos polos de relação jurídica: compra, vende, empresta, contrai matrimônio, faz testamento etc. Desse modo, o indivíduo cria inúmeros direitos e obrigações em torno de sua pessoa, faz nascer o seu patrimônio.

    No entanto, há direitos que afetam diretamente a sua personalidade, os quais não possuem, ao menos diretamente, conteúdo econômico imediato. A personalidade não é propriamente um direito, mas um atributo que adere ao ser humano, representando um conceito básico sobre o qual se apoiam os direitos.

    Os direitos denominados personalíssimos incidem sobre bens imateriais ou incorpóreos. As Escolas do Direito Natural proclamam a existência desses direitos, por serem inerentes à personalidade. Cuidam-se dos direitos à própria vida, à liberdade, ao próprio corpo, à manifestação de pensamento, à intimidade, dentre tantos outros.

    Nossa Constituição enuncia longa série desses direitos e garantias individuais (art. 5º). São direitos privados fundamentais, que devem ser protegidos e respeitados como conteúdo mínimo para permitir a coexistência em sociedade. Muitas opiniões sustentam serem direitos inatos, que são ínsitos à pessoa humana, cabendo ao Estado reconhecê-los.

    É fato que em regimes totalitários, autoritários, esses direitos não são resguardados. A História e o presente são plenos de exemplos. Sua proteção somente se torna possível em regimes democráticos e liberais, o que torna seu reconhecimento e proteção complexos e controvertidos.

    O Código Civil de 2002 introduziu um capítulo sobre o tema, pela primeira vez de forma expressa e ordenada na legislação brasileira. Assim, temos a Constituição que aponta a base desses direitos, complementada pelo estatuto civil, que disciplina alguns dos seus aspectos.

    Progressivamente em nossa sociedade avulta a importância sobre a proteção à imagem, à privacidade, ao direito ao próprio corpo, assim como o controle da natalidade e discussão sobre possibilidades de aborto, dentre tantos outros aspectos de nossa vida, que tocam diretamente os direitos personalíssimos. A matéria é profunda, pois ingressa não somente nos princípios jurídicos, mas também na economia, filosofia, sociologia e religião.

    O universo digital em que o ser humano mergulhou nas últimas décadas aguçou toda essa problemática, com a ampla facilitação das comunicações, açulando incrédulos juristas e sociólogos na busca de novas soluções, perante as recentes e mutantes situações. Integrando os direitos da personalidade, os direitos fundamentais recebem novas fronteiras com as inovações tecnológicas. Os bens e dados digitais já integram a personalidade de milhares de pessoas. Tudo gira e torno da defesa e proteção da dignidade humana, como estampada na Constituição. Há tendência de se situar essas novas manifestações jurídicas em torno do direito constitucional, mormente enquanto não tivermos uma legislação própria. Desse modo, uma visão apenas privatística dos direitos da personalidade se mostrará insuficiente.

    Esses direitos personalíssimos relacionam-se intimamente com o Direito Natural, constituindo o mínimo necessário de proteção à pessoa. Diferem dos direitos patrimoniais porque nos direitos da personalidade o aspecto econômico é secundário e somente aflora quando da reparação de direito violado. Indenizar, por exemplo, por abuso na divulgação da imagem de alguém, representa mero lenitivo pela transgressão, nunca um equivalente ao dano.

    1.4 Direitos da personalidade. Características e enumeração

    Podemos apontar as características principais dos direitos da personalidade: i) são inatos ou originários porque se adquirem ao nascer, independendo de qualquer vontade; ii) são vitalícios, perenes ou perpétuos, porque perduram por toda vida. E como é sabido, muitos aspectos desses direitos perduram depois da morte. Pelas mesmas razões, são iii) imprescritíveis, uma vez que perduram enquanto perdurar a personalidade; (iv) são inalienáveis, ou mais propriamente, relativamente indisponíveis, pois em princípio estão fora do comércio, embora possam ser parcialmente negociados, porque a personalidade em si não possui valor econômico e são (v) absolutos, no sentido que podem ser opostos erga omnes.

    A verdade, porém, é que todas essas características, de uma forma mais ou menos ampla, não podem ser vistas como peremptórias, podendo ser contestadas perante o universo digital, em compartimento jurídico de estudos que está apenas começando. A internet se tornou local para infindáveis manifestações do ser humano, de forma muito mais ampla que se poderia imaginar não muito tempo atrás.

    Sustenta-se que os direitos da personalidade são extrapatrimoniais porque inadmitem avaliação pecuniária, ficando fora do patrimônio econômico. As indenizações, que ataques a eles possam acarretar, constituem um substitutivo de ordem moral, para um desconforto, contudo não se equiparam a uma indenização ou contraprestação.

    Apenas no sentido metafórico podemos nos referir ao património moral de uma pessoa. Esses direitos personalíssimos são irrenunciáveis porque pertencem à vida e, se pode acrescentar, à alma do ser humano, projetando sua personalidade. O seu elenco não permite uma enunciação completa, lembrando que os direitos puros de família, como filiação, paternidade e maternidade, pertencem a essa categoria.

    Somente nas últimas décadas do século XX os legisladores passaram a se preocupar com esse ramo jurídico e social, mormente porque sua base se situa comumente nas constituições.

    Nosso Código Civil trata desses direitos no Capítulo II (arts. 11 a 21). Esses princípios servem de base e fundamento para orientar a doutrina e os tribunais, mas longe estão de esgotar seu amplo elenco. O art. 11 abre a temática dispondo: "Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofre limitação voluntária". A lei refere-se apenas a três características desses direitos, entre as apontadas, intransmissibilidade, irrenunciabilidade e indisponibilidade.

    Os direitos da personalidade são os que resguardam a dignidade humana. Desse modo, ninguém pode, por ato voluntário, dispor de sua privacidade, renunciar à liberdade, ceder seu nome de registro para utilização por outrem, renunciar ao direito a alimentos no direito de família, por exemplo. Os programas televisivos, por exemplo, que se arvoram em mostrar a aparente vida íntima de pessoas, nada mais é que uma exibição cênica e teatral, regulada em contrato.

    Por seu lado, o fenômeno da herança dita digital se apresenta com elementos amplamente heterogêneos, representados não apenas por elementos escritos ou verbalizados, em sentido estrito, como arquivos típicos de texto e de outra natureza, com chaves e senhas para acessá-los (password, username, pin etc.). Esse é, sem dúvida, ponto saliente para acessar o patrimônio digital da pessoa falecida, nem sempre contando com a boa vontade dos provedores nacionais e internacionais para divulgá-los. É certo que a futura legislação sobre o tema deverá enfrentar abertamente essa problemática. Assim há que se atentar para as fotos digitais, vídeo, criações musicais, programas de software, em locais tais como web, blog, e-mail, dentro tantos outros. Como se percebe, o universo digital exige uma atenção hercúlea para permitir soluções, nem sempre possivelmente homogêneas. Na verdade, o mundo jurídico se vê atarantado em busca de caminhos nessa área.

    1.5 Do testamento analógico ao testamento digital

    Esse aspecto é fundamental para esse nosso tema.

    O testamento passa a ter relevância enorme quando se trata de disposição de última vontade para o patrimônio digital. Em todas as épocas históricas, desde o tradicional direito romano, o testamento oral nunca teve maior proeminência, salvo situações extremas como o testamento nuncupativo. Todos os ordenamentos preocuparam-se em estabelecer regras formais e solenes, como substrato para garantir a higidez da última vontade do disponente.

    O testamento em nosso Código Civil atual, apesar de diminuição das formas, continua a ser um ato escrito e solene, para garantir sua presença no tempo e a eficiência de suas disposições. Nossas formas ordinárias, que mais importam, testamento público, particular e cerrado, exigem a escrita.

    Nesta era extensiva de convivência digital, chega momento de reformular conceitos, sem abandonarmos e mantermos as ideias e formalidades básicas dos testamentos. Há uma evolução contextual e social no conceito de testamento. Tudo leva a concluir que a presente época está madura para a introdução do testamento digital. Assim, não se transgridem princípios quando se pretende adaptar o testamento à era digital. Há que se buscar, destarte, um novo formalismo digital, na busca de um grau de segurança efetivo, no mesmo nível ou mesmo mais amplo do testamento analógico, como instrumento de sucessão mortis causa.

    Em futuro não distante, dever-se-á enfrentar a questão sob o prisma normativo. Há que se adaptar as formas ordinárias de testamento conhecidas ao universo digital. Em qualquer situação, como é desejável, há que se preservar a vontade testamentária idônea e corretamente manifestada.

    Nesse sentido, as preocupações com um testamento digital não diferem substancialmente dos testamentos analógicos. Há que se garantir a manifestação de vontade e sua autoria, a liberdade de escolha das disposições testamentárias, sua autenticidade e preservação da vontade do testador.

    Sempre aduzimos em nossos estudos no sentido de que o jurista não deve raciocinar sob fraudes, porque nesse diapasão não sairá do lugar. Fraudes podem existir em todos os setores, mormente os jurídicos, dentro ou fora da informática. Cabe ao ordenamento estruturar meios para que falsidades sejam evitadas e coarctadas.

    Nosso clássico testamento analógico é redigido sobre um suporte material, escrito à mão ou por meios mecânicos ou eletrônicos. Não se esqueça que no passado até mesmo se discutiu se seria válido um testamento datilografado. Qualquer que seja a modalidade de escrita, deve ser alinhada e protegida a assinatura do testador, sua vontade e autenticidade.

    O testamento digital, diferentemente, será redigido sobre um suporte imaterial, ou, melhor, em um documento informático composto de bits. Não existirá uma pessoalidade de assinatura, como ocorre sobre o papel. Esse documento será subscrito por uma assinatura eletrônica, facilmente alterável e modificável, como sabemos, quando não protegida por criptografia ou outros meios.

    Estamos, indubitavelmente, caminhando nesse sentido, embora essas ideias possam parecer ainda prematuras. No entanto, a problemática da herança digital está diante de nossos olhos para ser resolvida em seus inúmeros aspectos. Como se percebe, a questão é mais cultural do que jurídica, nesse atual plano, e mais suas soluções se tornam necessárias quanto mais afetada é a sociedade pelo universo digital.

    As futuras disposições sobre esse testamento devem assegurar garantias de assinaturas eletrônicas avançadas. O testamento deverá estar inserido nas exigências cartoriais. Em nossa realidade atual ainda não podemos divisar um testamento redigido de próprio punho pelo testador, embora as possibilidades técnicas já existam. Alessandro d´Arminio Monforte, em obra monográfica sobre a matéria, assevera, conforme aduzimos "que essa questão é mais cultural do que jurídica: a tecnologia está em nível de satisfazer plenamente a exigência de paternidade e autenticidade seja da escritura seja da assinatura com um grau de certeza semelhante (senão superior) àquele que se poderia obter com a assinatura típica do testamento ológrafo" (tradução nossa, 2020:151).

    Recorde-se que é atualmente perfeitamente factível, e mesmo aconselhável, o testamento videoregistrado, com a gravação visual de todas as atividades que cercaram o testador durante seu ato perante o notário, ou mesmo perante as testemunhas se for testamento particular. Em pequenos arquivos, em usb ou equivalente e em outros locais, ficará assegurada a vontade e a autenticidade do testador, com muito maior eficiência do que o documento em papel. Certamente o vídeo-testamento deverá merecer a atenção do legislador, quando se debruçar mais profundamente sobre a matéria, mas mesmo hoje esse vídeo será valido e possível para o exame futuro de eventuais incertezas ou nulidades sobre o ato de última vontade. Mesmo o testamento secreto, regulado por nossa lei, poderá ser permitido por essa forma de vídeo, com a gravação de todas as atitudes e formalidades do testador e do escrivão e demais circunstantes até a entrega da cártula pelo notário ao testador.

    Há projetos embrionários para normatizar a matéria, mas ainda há muito a ser feito e meditado, pois a temática é por demais ampla.

    Aqui ficam algumas premissas para pensarmos mais profundamente sobre essa matéria que atualmente nos rodeia de forma inafastável, para normas e textos doutrinários que possam abarcá-las efetiva e progressivamente.

    REFERÊNCIAS

    BORDA, Guillermo. Tratado de derecho civil: parte general. 10 ed. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1991. V. 1 e 2.

    CADAMURO, Lucas Garcia. Proteção dos direitos da personalidade e a herança digital. Curitiba: Juruá Editora, 2019.

    ITEANU, Olivier. Quand le digital défie l’état de droit. Paris: Éditions Eirolles, 12. tir. 2017.

    MONFORTE, Alessandro D’Arminio. La successioni nel patrimonio digitale. Pisa: Industrie Graphiche Pacini, 2020.

    MOSSE, Cássio Nogueira Garcia (Coord.). Social media law. São Paulo: Ed. RT, 2021.

    PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 7 ed. São Paulo: Saraiva Jur.

    VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. Família e sucessões. 21 ed. São Paulo: Den-Atlas, 2021.

    1 Foi juiz no Estado de São Paulo por 25 anos. Aposentou-se como desembargador. Pós-graduado em Direito Civil. Lecionou Direito Civil em várias faculdades do Estado de São Paulo. Formado pela USP (Universidade de São Paulo) com pós-graduação em Direito Civil. Autor de inúmeras obras de Direito Civil, destacando a coleção completa em oito volumes, na 16ª edição (2016). A 17ª edição em 2017 será condensada para 7 volumes. Escreveu também obra de Introdução à Ciência do Direito, Código Civil Interpretado e Lei do Inquilinato Comentada, todas em sucessivas edições. Foi professor em diversas instituições de São Paulo. Consultor de vários escritórios jurídicos, parecerista e palestrante, em entidades no Brasil e no Exterior.

    Herança digital: reflexões sobre o presente e prospectos para o futuro

    Ana Carolina Brochado Teixeira

    ¹

    Cintia Burille

    ²

    Sumário: Introdução – 1. Bens digitais: patrimoniais, existenciais e híbridos – 2. Bens digitais hereditáveis e inereditáveis: correntes doutrinárias – 3. Nem tanto ao céu nem tanto à terra: a escolha pelo caminho da tutela à vida privada do de cujus e de seus terceiros interlocutores – 4. Planejamento sucessório da herança digital – 5. Conclusão – Referências.

    INTRODUÇÃO

    A herança digital é uma temática que entrou, definitivamente, para a agenda de estudos no âmbito do Direito. A pandemia da Covid-19 acelerou a percepção de que a vida não tem apenas uma dimensão offline, mas também, tem inegável projeção no âmbito virtual. Também incrementou a aquisição de ativos digitais e a vida humana global se tornou ainda mais online. O isolamento e o distanciamento social aceleraram a digitalização da vida: serviços bancários online, compras por aplicativos, e-commerce, reuniões online, ensino virtual foram alguns exemplos de situações que se tornaram corriqueiras na vida pandêmica. Com isso, o acervo digital cresceu e avolumou-se.

    Ao lado disso, também não se pode perder de vista a finitude humana. Se os debates sobre herança digital já eram importantes antes da pandemia, com ela, tomou o centro dos debates, em razão do expressivo número de mortes advindas do coronavírus. O aceleramento do número de mortes e o crescimento dos ativos digitais geraram uma intersecção que tornou inevitável a busca pela resposta à pergunta: para quem ficam todos esses ativos digitais após a morte do usuário?

    Como o tema é novo, não há, por ora, lei expressa que trate da matéria. No entanto, é importante saber se, ainda assim, não é possível uma compreensão sistemática do ordenamento que regule o assunto de forma satisfatória.

    O objetivo desse artigo é traçar um panorama crítico a respeito do assunto, partindo da compreensão do que são bens digitais, da investigação de instrumentos que suportam a transmissão do acervo hereditário no ordenamento jurídico, para, por fim, avaliar a importância do planejamento sucessório no âmbito da herança digital.

    1. BENS DIGITAIS: PATRIMONIAIS, EXISTENCIAIS E HÍBRIDOS

    No âmbito da tecnologia da informação e comunicação, destaca-se a tecnologia digital, que busca digitalizar informações, isto é, traduzi-las em números. Informações, sons, imagens, tudo pode ser digitalizado, reduzido a códigos binários. Esses números codificados em binário podem ser objeto de cálculos aritméticos e lógicos executados por circuitos eletrônicos especializados.³ Assim, o real pode tornar-se digital, para ser transmitido, armazenado, modificado e, eventualmente, traduzido novamente em real: textos, imagens, sons, ações de um robô etc. A tecnologia digital tem crescido e ganhado tanto espaço porque a digitalização permite um tipo de tratamento de informações eficaz e complexo, impossível de ser executado por outras vias.⁴ Essas informações podem ser armazenadas no dispositivo do usuário ou em servidores externos, como acontece com o armazenamento em nuvem.⁵

    O desenvolvimento da tecnologia caminha em passos largos e vem influenciando nos mais diversos aspectos da vida humana, principalmente após a internet, que revolucionou o quotidiano das pessoas, inserindo novos modos de relacionar e comportamentos⁶ e, por consequência, novos bens jurídicos, isto é, objeto de situações jurídicas subjetivas, termo de referência de todos os comportamentos que se inserem em relações jurídicas.⁷ Tem-se, no entanto, paradigmas antigos para tratar novos temas, um direito analógico que pretende dar conta dos novos desafios do mundo virtual.

    A tecnologia digital trouxe novas formas de se estabelecer relações e de viver, criando necessidades pessoais e oportunidades de mercado, que consubstanciam novos bens da vida. Com isso, criam-se centros de interesse que deverão ser disciplinados pelo Direito, a partir de novos paradigmas, interpretando-se essas relações jurídicas a partir da visão funcional, ou seja, os novos fenômenos requerem a busca pela função dos bens nas novas situações jurídicas nas quais eles estão inseridos no plano da realidade.

    Os bens digitais têm evidenciado que o direito de propriedade também está em modificação. Muitas das relações das pessoas com tais bens não são mais de titularidade, mas de acesso.⁹ São inúmeros os exemplos dessa mudança: serviços de streaming ligados a filmes, músicas, locação de imóveis de curta temporada, transporte em cidades, milhas aéreas etc.

    Bruno Zampier define bens digitais como bens incorpóreos progressivamente inseridos na Internet por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que lhe trazem alguma utilidade, tenham ou não conteúdo econômico.¹⁰ Por esse motivo, é primordial que se entenda o papel, a função do bem na específica situação jurídica em que ele se insere: o valor e tratamento normativo de um bem refere-se à função que ele desempenha em dada situação jurídica subjetiva.¹¹

    Assim, para se verificar o tratamento a ser dado ao bem digital, importa se verificar se ele desempenha função patrimonial ou existencial naquela referida situação. Por exemplo: um perfil de rede social pode ser existencial – para registro de momentos da vida do usuário – ou híbrido, se ele for monetizado. Por isso, é importante pensar os bens digitais sob 3 segmentos: situações jurídicas patrimoniais, existenciais e dúplices.¹²

    Os bens digitais patrimoniais desempenham função econômica, conversível em pecúnia, com escopo financeiro e lucrativo, razão pela qual atrai a tutela do art. 170 da Constituição Federal, aplicando-se os princípios do Direito Obrigacional e Contratual. Os criptoativos são exemplos dessa modalidade, pois têm eminentemente o objetivo de obter vantagens financeiras com esse tipo de moeda.

    Os bens digitais com função existencial estão diretamente ligados à projeção da personalidade humana que reclamam proteção, pois são muitos os aspectos pessoais inseridos no ambiente virtual. Eles atraem a tutela dos direitos da personalidade, fundados na dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, Constituição Federal. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) tutela os dados pessoais, exatamente em razão da relevância que eles assumem na proteção integral da pessoa humana – pois são projeções da personalidade –, uma vez que os riscos impostos pela internet podem eternizar danos que precisam ser evitados.

    Há também os bens digitais híbridos, ou seja, enquadram-se tanto em situações existenciais quanto patrimoniais. Há um misto das modalidades de situações, devendo-se verificar na situação concreta o que prevalece, sem descurar do necessário olhar para a personalidade humana. Um exemplo são os perfis de redes sociais monetizados: eles inserem dados pessoais nas redes, com escopo o lucro, que abarca exibição da vida privada, das preferências, escolhas, modos de vida, lugares em que frequenta... e quanto mais seguidores, mais engajamento e, por isso, maior valor econômico.

    Nem sempre é fácil ou óbvio classificar os bens digitais, por isso a importância de se estabelecer a análise funcional como critério classificatório. De todo modo, o mais importante é não perder de vista que a proteção da personalidade no ambiente digital é de suma relevância, em face da potencialidade dos danos.

    Assim, mesmo que esteja em debate os critérios para se implementar a transmissão dos ativos digitais após a morte do usuário, a personalidade humana deve ser protegida, ainda que post mortem, na linha do que dispõe os arts. 12 e 20 do Código Civil.

    Essa classificação é importante, pois impactará na construção do conteúdo da chamada herança digital, conforme se verá no próximo item.

    2. BENS DIGITAIS HEREDITÁVEIS E INEREDITÁVEIS: CORRENTES DOUTRINÁRIAS

    A problemática da sucessão causa mortis dos bens digitais, é identificar quais os bens digitais que se transmitem automaticamente aos herdeiros por força da herança, se há exceções a essa regra e por quê. Diante da inexistência de regulação específica sobre a matéria,¹³ este tópico busca apresentar as correntes doutrinárias, que se dividem em dois posicionamentos e que podem ser agrupados da seguinte forma: i) a regra da transmissão hereditária dos bens digitais que tenham conteúdo patrimonial e da intransmissibilidade de situações existenciais; e ii) a regra da sucessão universal dos bens digitais, de forma irrestrita e absoluta aos herdeiros.

    Inicia-se pelo entendimento doutrinário majoritário no Direito Civil Brasileiro, que defende que apenas os bens com conteúdo econômico transmitem-se automaticamente aos herdeiros do titular. Autores que sustentam esse posicionamento: Ana Carolina Brochado Teixeira e Carlos Nelson Konder,¹⁴ Bruno Zampier,¹⁵ Conrado Paulino da Rosa e Cíntia Burille,¹⁶ Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida,¹⁷ Livia Teixeira Leal,¹⁸ Maici Barboza dos Santos Colombo,¹⁹ Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,²⁰ Rolf Madaleno,²¹ Gabriel Honorato de Carvalho e Adriano Marteloto Godinho,²² Cristiano Colombo e Guilherme Damasio Goulart,²³ Flavio Tartuce,²⁴ Pablo Malheiros da Cunha Frota, João Ricardo Brandão Aguirre e Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto.²⁵

    Pode-se dizer, que os bens que cumprem função patrimonial e pressupõem a apropriação são, em princípio, transmissíveis e, por isso, presume-se que constituem o conteúdo do que se convencionou chamar ‘herança digital’, em razão da identidade, em substância, com o acervo hereditário no âmbito sucessório.²⁶ Dessa forma, para essa corrente doutrinária, os bens digitais que tiverem conteúdo patrimonial deverão ser transmitidos aos sucessores, integrando a herança, nos termos do artigo 1.784, do Código Civil.²⁷

    Contudo, aqueles bens digitais isentos de caráter patrimonial, isto é, que dizem respeito a informações pessoais (claramente de natureza existencial), não podem ser tomadas pelos sucessores, extinguindo-se, com o falecimento, em razão de seu caráter personalíssimo.²⁸ Em contraponto, portanto, aos bens digitais cujo conteúdo é patrimonial, os existenciais ou personalíssimos estão presentes de forma predominantemente no âmbito dos direitos da personalidade, em razão da sua ligação direta e imediata com a realização da dignidade humana.²⁹

    Nesse sentido, Rolf Madaleno ensina que os bens digitais personalíssimos ou existenciais são intransmissíveis, porque representam a extensão da privacidade do morto, a exemplo do WhatsApp, Facebook, Telegram, Dropbox, Twitter, e-mails e congêneres. Diante deles, a vontade dos sucessores pode colidir com aquela que seria a vontade do falecido, e por isto precisam ser protegidos como resguardo de sua personalidade e só poderiam ser transmitidos se o morto autorizasse por testamento ou de outra forma inequívoca em vida.³⁰

    Com isso, tem-se que não é indisponível a transmissão causa mortis de bens digitais existenciais ou personalíssimos aos sucessores. Nas lições de Pablo Malheiros da Cunha Frota, João Ricardo Brandão Aguirre e Maurício Muriack de Fernandes e Peixoto:

    Essa transmissibilidade seria aceita se o(a) autor(a) da herança autorizasse por testamento ou de outra forma em vida que um ou mais herdeiros, cônjuge ou companheiro(a) sobrevivente, legatário ou terceiro pudesse(m) custodiar e (ou) acessar integralmente ou parcialmente tais arquivos e contas digitais. Eventuais conflitos entre os herdeiros e ou terceiros sobre as mencionadas contas ou arquivos digitais intransmissíveis de titularidade do(a) autor(a) da herança ou transmitidas por ele a outrem poderão ser dirimidos judicialmente ou extrajudicialmente.³¹

    Contudo, parte da doutrina, entende que não basta o consentimento deixado em vida pelo titular, conforme pontuado pelos autores supramencionados; além disso, é preciso que esse consentimento não viole direitos de terceiros.³² Ou seja, a exigência de consentimento não implica atribuir livre e absoluta disponibilidade a tais situações.³³ Para os autores que defendem esse posicionamento, a regra de intransmissibilidade dos bens digitais personalíssimos busca evitar que a transmissão gere prejuízos à personalidade de terceiros ou a aspectos da personalidade do falecido que permaneçam sob tutela jurídica após a morte.

    Diferentemente dos bens digitais puramente existenciais ou personalíssimos, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald atentam:

    Lado outro, não se pode negar, outrossim, que algumas relações travadas pelo mundo digital geram clara vantagem econômica para certas pessoas. Basta imaginar o valor agregado em determinadas redes sociais que possuem dezenas ou centenas de milhares de seguidores, com divulgação de produtos e serviços, com conotação econômica. São verdadeiros patrimônios digitais, construídos através de network de seus titulares. Com o seu óbito, mesmo na ausência de deliberação volitiva, poderão, ao nosso sentir, os seus sucessores explorar as relações deixadas pelo morto – por conta de sua feição evidentemente patrimonial.³⁴-³⁵

    Referem-se os autores à categoria de bens digitais híbridos (patrimoniais-existenciais).³⁶ Nesse ponto, insta referir que, conquanto exista o caráter econômico dessas situações, há que se atentar para aqueles provedores que, além da postagem e do compartilhamento público, permitem que seus usuários conversem no privado, como é o caso do Instagram (no serviço denominado Direct) e do Facebook (denominado Messenger). Esse conteúdo é, inegavelmente, personalíssimo.³⁷

    Nessa perspectiva, Livia Teixeira Leal, embora sustente que alguns direitos são personalíssimos, e, portanto, intransmissíveis,³⁸ entende que determinadas situações existenciais podem integrar o conceito de herança quando manifestarem natureza dúplice, ou seja, além do caráter existencial, também aferirem patrimonialidade. Nesse caso, não haveria óbice para a transmissão automática do conteúdo patrimonial aos herdeiros, devendo apenas ser vedado o acesso ao conteúdo cuja ordem seja existencial ou que envolva direitos de terceiros (a exemplo das mensagens privadas trocadas pelo titular e seus interlocutores).³⁹

    Sob essa perspectiva, há que se refletir que o tratamento normativo dos bens digitais dúplices deve envolver um controle dos atos de sua disposição – e consequentemente, de sua comunicabilidade, transmissibilidade e renunciabilidade sensível à conjugação dos elementos patrimoniais com os existenciais, perseguindo a leitura mais adequada à realização da personalidade do seu titular.⁴⁰ É necessário, conforme sustentado pelos autores, assegurar a autonomia existencial do titular, mas também criar barreiras contra a mercantilização da pessoa humana.

    Em suma, seria possível afirmar que, de modo geral, aqueles bens digitais que envolvam situações jurídicas de natureza patrimonial integram o acervo hereditário, e essas situações serão regidas pela normativa sucessória existente; de modo contrário, aqueles bens que envolvam situação jurídica personalíssima se extinguem, pois são intransmissíveis por sua natureza.⁴¹ Contudo, Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida atentam que não se pode descurar que a ‘vida digital’ é plena de situações jurídicas extrapatrimoniais que permanecem ativas após a morte biológica de seu titular, devendo, portanto, "cada uma delas ser examinada de per si, para que se verifique o merecimento de tutela, mesmo morto seu titular.⁴² Aduzem os autores: o conteúdo inserido na rede por usuários em vida transborda os bens incorpóreos e direitos avaliáveis pecuniariamente e atinge nuclearmente a construção da sua subjetividade e, nessa senda, cuida-se do exercício dos direitos da personalidade, além de conter os registros das interações humanas e da criatividade autoral".⁴³ Por essa razão, diante da heterogeneidade do conteúdo do acervo digital, torna-se desafiadora sua destinação após a morte do titular.

    Discute-se, ainda, se haveria um direito póstumo à portabilidade de dados pessoais, considerando que estes compõem significativo aspecto da identidade da pessoa humana, desempenhando papel essencial para a preservação da memória da pessoa falecida.⁴⁴ Cristiano Colombo e Guilherme Damasio Goulart entendem que os dados pessoais patrimoniais que se configuram em herança digital (direitos autorais patrimoniais, por exemplo, sobre textos, imagens, de forma geral, trabalhos artísticos, que tenham conteúdo econômico), obedecem à vocação hereditária,⁴⁵ enquanto, no caso dos dados pessoais isentos de patrimonialidade, a portabilidade dos dados póstumos sofreria limitações. Nesse último caso, os autores apresentam o seguinte quadro:

    No silêncio quanto à destinação dos dados, inclusive sendo, ou não, portáteis, devem ser aplicados os princípios de proteção de dados. Nesse sentido, o parente deve justificar o pedido dos dados, apontando a finalidade, como por exemplo, guardar a memória de seu ente querido, quando em viagem que conjuntamente o morto e o peticionário realizaram, com o apontamento específico do que está a buscar. Nessa linha, os dados pessoais serão alcançados de acordo com a necessidade, ou seja, não se entregará todo o conteúdo armazenado, mas, por exemplo, aqueles em que está a estrutura facial do parente peticionário. Outro exemplo, seria o caso de um parente buscar a portabilidade póstuma de dados pessoais sensíveis do falecido. Aqui, mais uma vez, deverá ser analisada a finalidade, que não pode ser a curiosidade pura e simples, mas quem sabe venha o pedido fundado em quadro clínico que ajudará o parente em doença genética desenvolvida na família. Registre-se, outrossim, que a privacidade do falecido deve ser preservada, observando também o comportamento do falecido em vida, quando tratava de determinado assunto, que pode ser público, privado ou íntimo.⁴⁶

    Nesse sentido, arremata Flavio Tartuce que há necessidade de diferenciarem-se os conteúdos dos bens digitais que envolvem a tutela da intimidade e da vida privada da pessoa daqueles que não o fazem, a fim de possibilitar um caminho possível de atribuição da herança digital aos herdeiros legítimos. Segundo o autor, os dados digitais que dizem respeito à privacidade e à intimidade da pessoa, que parecem ser a regra, devem desaparecer com ela. Dito de outra forma, a herança digital deve morrer com a pessoa.⁴⁷

    Com isso, verifica-se que, para o entendimento majoritário da doutrina, nem todos os bens digitais cuidam de situações atreladas ao direito sucessório; alguns, notadamente aqueles cuja natureza é existencial ou personalíssima, dizem respeito à tutela póstuma dos direitos da personalidade, intimamente ligados à vida privada não apenas do de cujus, mas também de seus interlocutores. Por essa razão, não se adota a lógica da transmissão automática dessas situações, a um, porque fogem aos limites do conteúdo da herança, por não auferirem expressão patrimonial; a dois, porque tratá-los dessa forma implica, necessariamente, violar direitos fundamentais de terceiros e do morto. Isso não significa, contudo, que não poderá o titular de bens digitais existenciais transmiti-los aos herdeiros. Ao contrário, é perfeitamente possível, desde que estes expressem manifestação nesse sentido e que não violem direitos de terceiros.

    Sob outra perspectiva, o entendimento doutrinário minoritário no Direito Civil Brasileiro proclama pela aplicação da transmissão universal dos bens digitais como regra geral. Isto é, a transmissão irrestrita e absoluta dos bens digitais, salvo disposição testamentária em contrário, expressa ou implícita pelo titular. Autores que sustentam esse posicionamento: Karina Fritz e Laura Mendes,⁴⁸ Gustavo Tepedino e Camila Melchior,⁴⁹ Aline de Miranda Valverde Terra, Milena Donato Oliva e Filipe Medon.⁵⁰

    Note-se que a lógica desse entendimento é inversa à da corrente anterior, que, conquanto defenda a transmissão automática dos bens digitais patrimoniais, em relação àqueles que apresentam conteúdo personalíssimo, alude à regra da intransmissibilidade, exceto quando o titular dispuser o contrário, e tal disposição não viole direitos de terceiros, especialmente a privacidade. Para essa segunda corrente, todo o conteúdo que integra o patrimônio digital é passível de compor a herança, salvo disposição expressa em vida do titular em sentido contrário.⁵¹ Portanto, o ponto divergente dos posicionamentos doutrinários direciona-se aos bens digitais cuja natureza é existencial, isto é, se estes transmitem-se automaticamente aos herdeiros com a morte do titular ou não.

    Tal posicionamento passou a reverberar no Brasil após o julgamento do leading case do Bundesgerichtshof (BGH), na Alemanha, em 2018, que reconheceu, de forma inédita, a transmissibilidade da herança digital aos herdeiros dos usuários das redes sociais. No caso examinado pelo BGH, os pais de uma adolescente obtiveram êxito em demanda promovida em desfavor do Facebook, conseguindo acesso à conta da filha (falecida sob circunstâncias não esclarecidas) e a todo o conteúdo de comunicação trocado entre a adolescente e seus interlocutores.

    Em resposta ao que se busca tutelar na primeira corrente, para os autores que sustentam esse entendimento, adotado no leading case germânico, se o que se visa tutelar é o caráter existencial do conteúdo, protegendo-se a privacidade, intimidade e personalidade do morto ou de terceiros, essa tutela teria que ser feita independentemente do meio no qual esse conteúdo personalíssimo se materializa.⁵² Aduzem que seria incoerente permitir a transmissão de cartas, diários e informações confidenciais e vedar a transmissão daquelas armazenadas em nuvens ou nos servidores de plataformas digitais como o Facebook,⁵³ pois o caráter existencial ou dúplice do bem jurídico digital a justificar a tutela da privacidade não derivaria da forma como tais informações são preservadas (se por meio analógico ou digital), mas, antes, do seu próprio conteúdo. E, até o momento, nenhum ordenamento jurídico parece vetar os herdeiros de acessar cartas e fotos confidenciais guardadas no fundo do baú.⁵⁴

    Ademais, "tampouco se deve presumir, abstratamente e de forma absoluta, que haveria a expectativa de privacidade pelo de cujus no sentido de que aos herdeiros fosse interditado o acesso ao seu patrimônio digital".⁵⁵ Segundo os autores, a vontade do falecido deve ser soberana e respeitada, quando efetuada nos termos da lei;⁵⁶ todavia, diante da ausência de determinação por parte do titular, não seria possível intuir pressuposição, em termos abstratos e absolutos, de que ele tinha a expectativa de exclusão do acervo digital.

    Sob este aspecto, Aline de Miranda Valverde Terra, Milena Donato Oliva e Filipe Medon sustentam:

    Na ausência de determinação, não se pode pressupor que o de cujus preferiria que os herdeiros não tivessem acesso às mensagens mais do que se poderia pressupor que ele gostaria que tivessem acesso. E, na dúvida, deve-se franquear a permissão, porque, repita-se, continuando os herdeiros as relações jurídicas do de cujus, assumem sua posição, estando inclusive adstritos aos mesmos deveres do falecido, entre os quais a preservação da privacidade de terceiros, quando o caso. Os terceiros não ostentam legítima expectativa de que os herdeiros não terão acesso ao conteúdo que seja superior à legítima expectativa dos herdeiros de terem acesso ao conteúdo na hipótese de silêncio do falecido.⁵⁷

    Vale referir, ainda, que, para Karina Fritz, o usuário que celebra um contrato com uma plataforma de comunicação (rede social), pode legitimamente esperar que a plataforma não vá acessar, divulgar ou permitir que terceiros acessem indevidamente esse conteúdo. No entanto esse mesmo usuário "não pode ‘legitimamente’ esperar – se nada dispôs em vida em sentido contrário – que esse ‘sigilo’ tenha eficácia post mortem perante os herdeiros, que sucedem o falecido em suas relações jurídicas".⁵⁸

    Além disso, para os defensores dessa corrente doutrinária, há abusividade nos termos de uso de provedores que impedem o titular dos dados de escolher o destino de seus bens digitais por ocasião da sua morte, retirando-lhe a autodeterminação. Tal previsão, conforme Aline de Miranda Valverde Terra, Milena Donato Oliva e Filipe Medon:

    extrapola a natureza dos serviços prestados pela plataforma. As plataformas viabilizam a interação digital do usuário e o armazenamento de arquivos, e não devem ter ingerência sobre a destinação desse conteúdo após o falecimento do usuário, e muito menos excluir o acervo digital do de cujus.⁵⁹

    Portanto, segundo esse entendimento doutrinário, o direito à herança sobrepõe-se à vida privada do de cujus, de seus terceiros interlocutores e de qualquer disposição em termos de uso de provedores que vede a transmissão ou acesso dos herdeiros, salvo disposição em contrário do titular. Dito de outro modo, a expectativa de privacidade tanto para o titular dos bens digitais quanto para os terceiros interlocutores está condicionada ao ato de o titular realizar disposição de última vontade negando tal acesso.

    Nessa perspectiva, a doutrina alude que, em respeito aos princípios da autonomia privada e da autodeterminação, cabe ao titular decidir o destino da herança digital, podendo vedar sua transmissão ou indicar um responsável para ter acesso e dar destino ao conteúdo digital. Para Karina Fritz e Laura Schertel Mendes,⁶⁰ tal solução se apresenta não apenas como o meio mais adequado e eficiente para tutelar a vida privada – com a preservação da lógica do Direito Sucessório –, mas também o menos restritivo aos direitos fundamentais em colisão.

    Assim, pode-se afirmar que o ponto pacífico nas correntes doutrinárias se dá em relação aos bens cujo conteúdo é meramente patrimonial, no sentido de que devem seguir as regras gerais do direito sucessório, projetando-se do morto para os herdeiros através dos trâmites de inventário.⁶¹ De outra forma, verifica-se que o ponto de divergência não apenas na doutrina brasileira permeia, precipuamente, na possibilidade ou não de transmissão dos chamados bens digitais com conteúdo existencial, assim considerados os bens de caráter exclusivamente existencial, bem como aqueles de caráter híbrido (patrimoniais-existenciais).

    3. NEM TANTO AO CÉU NEM TANTO À TERRA: A ESCOLHA PELO CAMINHO DA TUTELA À VIDA PRIVADA DO DE CUJUS E DE SEUS TERCEIROS INTERLOCUTORES

    Não há dúvidas de que bens digitais, dados sensíveis, privacidade do morto, são novos temas que batem às portas do direito sucessório.⁶² Nessa esteira, conforme bem apontado por Everilda Brandão Guilhermino:

    O direito das sucessões precisa enfrentar novos parâmetros de tutela. Antes, em um ordenamento voltado para o patrimônio físico, o capítulo das sucessões só tinha um tema a tratar. Agora, em um Código Civil inserido em um ordenamento que tutela a pessoa humana acima do patrimônio, com uma interpretação funcionalizada dos institutos e com novas expressões de riqueza, é preciso ampliar a esfera de tratamento do direito sucessório. Há muito mais que o patrimônio a ser zelado pelo direito.⁶³

    Eis que surge a seguinte reflexão: será mesmo que bens digitais existenciais, dados sensíveis e privacidade do morto – e, por que não, de terceiros –, são situações que dizem respeito ao direito sucessório?

    Nesse aspecto, cumpre relembrar o que

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