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Transculturação e região nos projetos intelectuais de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre
Transculturação e região nos projetos intelectuais de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre
Transculturação e região nos projetos intelectuais de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre
E-book622 páginas8 horas

Transculturação e região nos projetos intelectuais de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre

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Sobre este e-book

Em Transculturação e região nos projetos intelectuais de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre é costurada uma comparação improvável entre dois cientistas sociais latino-americanos. Em vez de se deter na heterogeneidade étnica e cultural como parâmetro comparativo, o livro mobiliza a ideia de projeto intelectual como uma categoria analítica que incorpora diversas facetas do empenho desses cientistas sociais. Considera, portanto, a produção bibliográfica, o papel desempenhado em instituições, as atividades de promoção artística e científica, o entrelaçamento com agentes que fornecem recursos ao trabalho intelectual. Região e transculturação se revelam como as perspectivas analíticas de Freyre e Ortiz. A construção dessas perspectivas foi feita, segundo os próprios autores, para se conformarem como resistência aos imperialismos culturais, econômicos e políticos das grandes potências. No entanto, a análise demonstra que, apesar de semelhança no sentido, as propostas sugeridas nesses projetos intelectuais, seus efeitos sociais e possíveis legados são bastante divergentes.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de jan. de 2023
ISBN9786525031408
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    Transculturação e região nos projetos intelectuais de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre - João Francisco de Oliveira Simões

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    Transculturação e região

    nos projetos intelectuais de

    Fernando Ortiz e Gilberto Freyre

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2022 do autor

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    João Francisco de Oliveira Simões

    Transculturação e região

    nos projetos intelectuais de

    Fernando Ortiz e Gilberto Freyre

    APRESENTAÇÃO

    No ano de 2020, comemorou-se o 120º aniversário de natalício de Gilberto Freyre. Em 2021, completaram-se 140 anos do nascimento de Fernando Ortiz. As duas datas foram marcadas por eventos científicos que discutiram a pertinência dessas obras atualmente. "La obra de Gilberto Freyre en el marco de las Ciencias Sociales y Humanas contemporâneas", na Universidad de Salamanca, reuniu pesquisadores de instituições brasileiras, espanholas, portuguesas e americana. De forma semelhante, Fernando Ortiz: una obra de fundación – aniversario 140 de su natalício foi um colóquio internacional organizado pela Fundación Fernando Ortiz, reunindo pesquisadores ligados a instituições de Cuba, México, Costa Rica, Estados Unidos, Canadá, Brasil e Espanha. Esses eventos acadêmicos demonstram a circulação internacional das ideias desses cientistas sociais.

    Apesar de ser uma pequena amostra, é possível perceber como as ideias de Freyre trafegam em um circuito mais regional, apoiando-se nos centros irradiadores do que ele chamou de tradição luso-brasileira¹. A circulação do pensamento de Ortiz, por outro lado, aparenta maior amplitude, como se buscasse constantes fluxos de trocas culturais. Essas suspeitas talvez sejam ressonâncias de categorias centrais em suas obras: a região e a transculturação. A primeira, como perspectiva analítica de Freyre, é ponto de partida e ponto de chegada do sociólogo pernambucano, o que o torna um homem situado na região. A segunda, a transculturação, é a perspectiva analítica de Ortiz, que amplia sua concepção sobre os processos culturais e a formação social em Cuba.

    Como se percebe, pensar as ressonâncias e as circulações das produções científicas de autores clássicos do pensamento latino-americano é uma chave para incitar outros questionamentos. Por exemplo: como as produções sociológicas impactam as forças sociais que participam da dinâmica política de uma sociedade? Como as condições sociais e históricas de uma época se relacionam com as produções intelectuais? Quais as estratégias mobilizadas pelos intelectuais para participarem da vida política? De que maneira as ideias desses autores clássicos estão presentes nas mentalidades, nos pensamentos, como assombram os vivos? Como podem contribuir para a compreensão da realidade e na ação sobre ela? Essas questões dizem respeito aos efeitos sociais e políticos das produções intelectuais. Efeitos que se ampliam nos países que passaram pelo processo de colonização, em que o processo de formação da cultura foi concomitante ao processo de formação da nação. Sem a pretensão de respondê-las de forma cabal, este livro abre caminhos para uma reflexão sobre elas.

    Fruto de uma pesquisa de doutorado, os objetivos deste livro estão circunscritos às obras e atuações de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre. Assim, analisa as alianças e os projetos intelectuais desses autores, considerando o sentido (ou significado) desses projetos, as perspectivas analíticas que os balizam, suas propostas normativas e seus efeitos sociais.

    Estudar Fernando Ortiz e Gilberto Freyre nos permite acessar concepções que se enraizaram como representações populares da realidade. De tal forma que compreender a construção dessas concepções, o sentido político em seus contextos e seus possíveis efeitos, é uma forma de entender como as ideias se tornam forças sociais e como podem ser mobilizadas para a manutenção ou para a transformação social. A comparação permite avaliar a força dos ajustamentos sociais nas interpretações sociológicas ou nos projetos intelectuais. Ademais, a comparação contribui para identificar com mais clareza as estruturas mentais arraigadas que são mobilizadas como perspectivas políticas, jogando novas luzes aos dilemas culturais e políticos dessas sociedades. Assim, como ensina Gildo Marçal Brandão, a reflexão sobre modos intelectuais de se relacionar com a realidade que contribuem para [...] o esclarecimento das lutas espirituais do passado acaba se revelando um pressuposto necessário à proposição de estratégias políticas para o presente (BRANDÃO, 2010, p. 29).

    PREFÁCIO

    Casa-Grande y Senzala, y el Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, constituyen paradigmas creativos para comprender y explicar las realidades coloniales de Brasil y Cuba. En ambas narraciones, debatidas entre las fronteras del discurso literario, histórico y antropológico, Gilberto Freyre y Fernando Ortiz estudian el latifundio, el monocultivo, la esclavitud africana, la plantación azucarera, los factores etnográficos de la música, el baile o el canto. Freyre introduce el concepto de mestizaje como principio conciliador y de organización social en la casa-grande señorial y lo hace extensivo a todo la cultura identitaria brasileña. Ortiz crea el concepto de transculturación y advierte los contrastes de los intrincadísimos contactos culturales que se producen en la historia social de Cuba.

    En Transculturación y región en los proyectos intelectuales de Fernando Ortiz y Gilberto Freyre, João Francisco de Oliveira Simões nos ofrece un estudio original y comparativo entre estos dos grandes fundadores de la antropología latinoamericana, muestra cómo la circulación de ideas en primera mitad del siglo XX, en contextos históricos marcados por la esclavitud y el colonialismo, produjeron diferentes modos de interpretación de la realidad cubana y brasileña. Tanto Ortiz como Freyre arribaron a conclusiones diferentes en sus proyecciones políticas, perspectivas analíticas y proposiciones normativas.

    Dos puntos de vistas diferentes. Fernando Ortiz parte de la articulación de una cultura mestiza, nueva, cubana, depositaria de la herencia indioantillana, africana e hispana, representada en la iconografía de la Virgen de la Caridad del Cobre y sus tres Juanes que navegan en las aguas del mar Caribe. Gilberto Freyre, sondea la tradición luso-brasileña como matriz identitaria, a la que habría que volver y salvar como componente fundamental de la nación brasileña, expresada gráficamente en la Casa-grande.

    Joao introduce un contrapunteo imaginado y real en cuanto a las proyecciones políticas de estos dos antropólogos. Indaga en sus obras fundamentales, hilvana los contextos sociohistóricos y los discursos políticos. El estudio es casi quirúrgico, se detiene en la producción intelectual de Gilberto Freyre y Fernando Ortiz, a la vez que analiza el contexto histórico en América latina, signado por la modernidad de las ideas, la industrialización y el progreso de la sociedad. Es interesante como Joao Francisco de Oliveira Simões, tras una investigación de archivos y el uso de una amplia bibliografía, muestra los debates que se originaron sobre el flujo migratorio tanto en Cuba como en el Brasil en cuanto a la introducción de manos de obra blanca civilizada, la cuestión racial, la política y la cultura.

    Las nuevas sociedades poscoloniales nacieron marcadas por la polifonía cultural, que a modo de resistencia, sobrevivía a la dominación colonial y ahora en el nuevo escenario social, los intelectuales se preguntaban cómo debían integrarse los negros y mulatos a la república. Cómo debían ser asimilados, blanqueados, o coexistir amparados por el mestizaje de razas y culturas. Esta etapa histórica a la que se refiere Joao Francisco, es también de renovación artística, de cambios de los cánones estéticos y de crítica del pasado colonial.

    Es muy significativo lo que ocurría en el Caribe. El antropólogo Price Marc, en su ensayo Así habló el tío, enaltece la mitología y el folclor del campesino haitiano; J. Roumain, en su poesía y la novela Gobernadores del rocío, aclama la vida comunitaria: el cumbite; el escritor de Trinidad y Tobago, C. L. R. James exalta la capacidad revolucionaria de los negros en Los jacobinos negros (1938). En este mismo periodo Eric Williams revisaba los fondos bibliográficos de bibliotecas en Inglaterra, Estados Unidos y La Habana, para culminar su acuciosa investigación sobre la génesis del capitalismo inglés en las Antillas, que publicará bajo el título Capitalismo y esclavitud en 1944.

    Estos autores caribeños conocieron y se vincularon con los estudios de Ortiz y Freyre. Sus inquietudes marcan una etapa importante de conexiones políticas, literarias, económicas y culturales en la proyección del Caribe en el siglo xx.

    Fernando Ortiz apreció, en tiempo real, la obra de Gilberto Freyre. En carta fechada el 22 de octubre de 1948, comenta: Aunque hace tiempo que no tengo el placer de comunicarme con usted, lo sigo siempre y aprovecho sus enseñanzas y exposiciones que afirman una vez más lo relevante de su alta personalidad.² Atento a las investigaciones en el Brasil, el sabio cubano indaga y prepara su ensayo Los bailes y el teatro de los negros en el folklore de Cuba,³ e introduce citas y observaciones de Gilberto Freyre tomadas de Casa-Grande y Senzala, en busca de puntos de referencia que le permitan entender la expresividad plástica, la sandunga, el diálogo social, la improvisación de los bailes transculturados tanto en la sociedad brasileña como en la cubana.

    Con diferentes maneras de recuperar el pasado, Freyre evoca la España monárquica y católica, concuerda con la propuesta del hispanismo, defiende la memoria histórica de la aristocracia brasileña; en cambio Ortiz escribe un libro contra el panhispanismo, el racismo blanco, se opone a la reconquista de América. En otro aspecto y con el ánimo de recuperar el pasado, crea la Colección de Libros Cubanos para sacar a la luz autores cubanos censurados por el colonialismo español. Su recuperación de la memoria histórica se orienta hacia el pensamiento humanista de José Antonio Saco y José Martí.

    Con el ánimo de recuperar las coordenadas culturales y políticas de una antropología local que ofrece modelos originales y alternativos, João Francisco de Oliveira traza diferentes y novedosos caminos para reinterpretar las obras de estos dos polígrafos. Desde una visión creadora y fecunda, y sin perder de vista la crítica contextualizada e histórica, nos enseña como extraer los soplos radicales, los puntos de avance en el pensamiento social latinoamericano. Este contrapunteo imaginado entre Gilberto Freyre y Fernando Ortiz nos alerta y recuerda los orígenes de nuestros pueblos, los factores que revelan el presente social y cultural de Brasil y Cuba.

    José Antonio Matos Arévalos

    Professor e pesquisador – Universidad de la Habana y de la Fundación Fernando Ortiz

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    PARTE I

    FORMAÇÃO E PRIMEIROS TRABALHOS

    CAPÍTULO 1

    O PRIMEIRO PROJETO INTELECTUAL DE FERNANDO ORTIZ

    1.1. Cuba em inícios do século XX

    1.2. Regenerar la mala vida cubana

    1.3. Crises em Cuba e protagonismo político de Fernando Ortiz

    1.4. Renovação transatlântica: cubanos e universais

    1.5. A Sociedad del Folklore Cubano

    1.6. Um novo olhar sob a cultura afro-cubana

    CAPÍTULO 2

    DELINEANDO PROJETOS: OS TRABALHOS DE GILBERTO FREYRE NA DÉCADA DE 1920

    2.1. Brasil, 1920

    2.2. A recuperação do passado

    2.3. Democracia e alfabetização: males modernos

    2.4. Escravidão, raça e melhoramento étnico

    2.5. Centro Regionalista do Nordeste e Livro Do Nordeste

    2.6. O regionalismo de Freyre nos anos 20

    2.6.1. O passado nas famílias aristocráticas

    2.6.2. A plasticidade

    2.6.3. A sociabilidade de Freyre na região e seu regionalismo

    CAPÍTULO 3

    BEGINNINGS E A ELABORAÇÃO DE PROJETOS INTELECTUAIS

    PARTE II

    REGIÃO, TRANSCULTURAÇÃOE PROJETOS INTELECTUAIS

    CAPÍTULO 4

    A INTERPRETAÇÃO SOCIOLÓGICA DE FERNANDO ORTIZ

    4.1. Fernando Ortiz e o ambiente cubano nos anos 30

    4.1.1. Fernando Ortiz nos Estados Unidos

    4.1.2. A Emenda Platt

    4.1.3. Um plano para a reorganização política

    4.2. A cubanidade

    4.2.1. Heterogeneidade étnica e mistura cultural em Antillas

    4.2.2. Cubanidade e cubanía

    4.2.3. Evolução da cubanidade

    4.2.4. As comparsas afro-cubanas

    4.3. Transculturação e contrapontos da cultura nacional

    4.3.1. Transculturação: conceito e perspectiva analítica

    4.3.2. História do açúcar e transculturação do tabaco

    4.3.3. La clave xilofónica

    CAPÍTULO 5

    A INTERPRETAÇÃO SOCIOLÓGICA DE GILBERTO FREYRE

    5.1. Gilberto Freyre e os anos 30 no Brasil

    5.1.1. O contexto da Revolução de 1930

    5.1.2. Gilberto Freyre nos anos 30

    5.2. Raça, meio e cultura em Casa-grande & senzala

    5.2.1. O sistema patriarcal como mecanismo de seleção racial-cultural

    5.2.2. Indígenas, raça, cultura e meio

    5.2.3. Negros, raça, cultura e meio

    5.2.4. Portugueses, raça, cultura e meio

    5.2.5. Patriarcalismo em Casa-grande & senzala

    5.2.6. A região em Casa-grande & senzala

    5.3. Patriarcalismo e regionalismo em Sobrados e mucambos e Nordeste

    5.3.1. Decadência do patriarcalismo

    5.3.2. Mestiço, mulato, meia-raça

    5.3.3. A região em Sobrados e mucambos e Nordeste

    CAPÍTULO 6

    COESÃO SOCIAL E PROPOSTAS NORMATIVAS

    6.1. Coesão social em Fernando Ortiz

    6.1.1. Raças e culturas

    6.1.2. Transculturações e evolução

    6.1.3. As propostas normativas de Fernando Ortiz

    6.2. Coesão social em Gilberto Freyre

    6.2.1. Raças e culturas

    6.2.2. Região e nação, o diverso e o universal

    6.2.3. A forma sociológica e as propostas normativas de Freyre

    CAPÍTULO 7

    CONTINUIDADE E DECLÍNIO DOS PROJETOS INTELECTUAIS

    7.1 A fuga do conflito em Fernando Ortiz

    7.2. A aliança com o autoritarismo em Gilberto Freyre

    7.3. Legado dos projetos intelectuais

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    Primero fue Colón descubriendo los contornos de la isla, luego llegó el sabio Humboldt y catalogó la naturaleza. Pero faltaba por descubrir lo principal: el hombre, el cubano, Fernando Ortiz fue el descubridor – Miguel Barnet (1969).

    Os homens que estão hoje um pouco para cá ou um pouco para lá dos cinquenta anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em termos de passado em função de três livros: Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre [...]; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda [...]; Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior [...]. São estes os livros que podemos considerar chaves [...]. – Antonio Candido (1967).

    Fernando Ortiz e Gilberto Freyre são reconhecidos pela contribuição significativa de suas pesquisas relativas à Cuba e ao Brasil. Como se observa nos excertos citados, trata-se de dois clássicos das Ciências Sociais. São referências basilares para a reflexão sobre a formação sócio-histórica desses países, bem como para a compreensão do pensamento social e político latino-americano. Além de seus trabalhos científicos voltados a conhecer as manifestações, os processos, a dinâmica e as interrelações culturais, desempenharam papel importante em instituições científicas e atuando como promotores culturais. Não por acaso, seus repertórios sociológicos são retomados quando se discutia o papel de Cuba e Brasil frente à disputa entre capitalismo e socialismo, suas estratégias em relação ao desenvolvimento e ao subdesenvolvimento.

    Esses dois cientistas sociais produziram nos anos de 1930-1940 interpretações sociológicas sobre a formação nacional, condensando propostas normativas que visavam solucionar impasses aos processos de modernização. Esses impasses diziam respeito às tensões entres grupos étnico-raciais, entre os setores industriais e agrários, entre blocos regionais e as tensões que envolviam as relações de trabalho. Apresentavam-se, assim, como obstáculos a uma unidade nacional e à inserção desses países em um suposto trajeto progressivo à civilização ocidental, como se dizia à época.

    Os trabalhos de Ortiz e Freyre propõem uma concepção de cultura nacional que busca integrar agentes sociais antagônicos, o que, para os autores, conformaria uma ordem social harmônica e democrática. Ao caracterizar essas culturas nacionais, Ortiz e Freyre consideram a mistura racial e cultural como um aspecto virtuoso das dinâmicas sociais em Cuba e Brasil. De tal sorte que os bens culturais, biológicos, psicossociais e a organização social formadas a partir do entrelaçamento étnico ocorrido nesses países, sinalizavam a uma identidade e a uma unidade nacionais em que a modernidade seria um processo viável.

    Observa-se, portanto, uma afinidade no sentido, no significado, na motivação que os levam a estudar as formações sociais e culturais em seus países. Esse sentido comum seria exatamente o de compreender os caminhos para a harmonia social. Caminhos para se construir uma nação harmônica em países latino-americanos, que passaram pela experiência do colonialismo e da escravidão.

    A constatação de afinidade no sentido nos leva a indagações sobre os efeitos, as intenções e finalidades dos referidos intelectuais e o papel que desempenharam em seus contextos. Ou seja, considerando que Fernando Ortiz e Gilberto Freyre elaboraram propostas normativas a suas respectivas sociedades com conteúdo semelhantes, pergunta-se: essas propostas guardariam também correspondência em relação aos efeitos sociais e impactos políticos produzidos no contexto em que estavam inseridos?

    Responder essa pergunta torna necessário analisar a dinâmica entre contexto histórico e produção intelectual. Dinâmica perpassada pelas forças sociais que disputam o poder ideológico. Ressalto, ainda, que refletir sobre essas questões contribui para compreender como as produções científicas se fazem presentes na realidade social. No momento atual, de ressurgimento de uma onda conservadora e de um avanço da política externa norte-americana à América Latina, essas reflexões podem contribuir para compreender e atuar no jogo das forças sociais em disputa.

    Como será feita essa comparação?

    Para tal intento, em vez de recorrer a aproximações entre determinados conceitos, a propostas específicas, a algumas temáticas ou entre suas obras principais, proponho uma abordagem analítica que considere o conjunto de atividades e obras desempenhadas por esses intelectuais que expressam ações racionais fundamentadas no exercício do poder ideológico, que ao serem sistematizadas se configuraram como um projeto intelectual.

    Um projeto intelectual passa por contínuos processos de ajustamento ao meio social, adequando-se a exigências normativas, intelectuais e políticas. Entretanto, podem ser assim chamados por manterem diretrizes fundamentais. No caso dos projetos intelectuais de Ortiz e Freyre formulados nos anos de 1930-1940, observa-se a continuidade de três aspectos: a perspectiva analítica, as significações e propostas normativas e o sentido desses projetos.

    O sentido dos projetos intelectuais de Ortiz e de Freyre, elaborados nas décadas de 1930-1940, é o mesmo: inventar uma cultura nacional capaz de harmonizar os conflitos sociais⁴. Entretanto, partem de perspectivas distintas, exatamente por estarem inseridos em condições sócio-históricas específicas. Assim, diferem também as proposições normativas. A meu ver, a região, em Freyre, e a transculturação, em Ortiz, sintetizam as perspectivas analíticas que balizam seus projetos intelectuais elaborados nos anos de 1930.

    A região e a transculturação enquanto categorias que balizam as perspectivas dos projetos intelectuais de Freyre e Ortiz, elaborados nas décadas de 1930-1940, foram mobilizadas por uma motivação semelhante entre os autores: arregimentar uma perspectiva analítica capaz de se contrapor às imposições culturais advindas com o avanço da modernidade para inventar uma cultura nacional capaz de harmonizar os conflitos sociais. Entretanto, o efeito dessas perspectivas analíticas foi diferente. Em Ortiz, a construção de uma nação republicana, para a qual seriam fundamentais a integração de raças e culturas e o fortalecimento nacional nas relações externas (ou seja, maior coesão interna). Assim, coloca a necessidade de se pensar as culturas a partir de intercâmbios contínuos, como procurou fazer nas diversas instituições em que atuou (por exemplo, na Sociedad del Folklore Cubano; Institución Hispanocubana de Cultura; Sociedad de Estudios Afrocubanos; e Instituto Cultural Cubano-Soviético). Em Freyre, a região restringe seu horizonte de pesquisa à tradição portuguesa, a qual o autor entende ser o fundamento específico da organização social brasileira, que se realizaria nas regiões e resultaria, segundo o autor, em relações étnicas e sociais democráticas.

    A comparação entre os projetos intelectuais dos dois cientistas sociais é realizada analisando o significado de suas interpretações sociológicas e as atividades que desenvolveram para sustentar, divulgar ou dar continuidade às suas ideias. Assim, além de compararmos suas interpretações sociológicas dos anos 1930, examina-se algumas atividades que desempenharam em instituições científicas e culturais, produções posteriores a esses período e possíveis vínculos com lideranças políticas. Em relação a Fernando Ortiz, por exemplo, pude constatar que muitas de suas atividades intelectuais foram possíveis devido a relações que estabeleceu por meio de sua atuação em instituições, como a Sociedad de Amigos del País, a Sociedad del Folklore Cubano, a Institución Hispanocubana de Cultura e a Sociedad de Estudios Afrocubanos. No que tange a Gilberto Freyre, suas relações com uma elite regional nos anos 1920, representada sobretudo nas figuras de Oliveira Lima e Estácio Coimbra, permitiu-lhe um protagonismo no movimento regionalista do Nordeste. Em seu livro de memórias, De menino a homem, afirma que por meio de seu prestígio intelectual, Getúlio Vargas lhe teria concedido alguns favores, convidando-o inclusive a assumir um cargo de ministro em seu governo. Esses elementos apontam a presença de uma rede de relações perpassando as produções intelectuais, tanto as produções no âmbito artístico-cultural como as produções sociológicas estrito senso.

    Destarte, procura-se comparar como o conteúdo interno de cada uma dessas interpretações relaciona-se com o contexto sócio-histórico de sua produção. Esquematizando, serão analisadas a construção das interpretações sociológicas, a adequação das obras aos condicionantes sociais e sua intervenção neles, o sentido dos projetos intelectuais, a construção das perspectivas analíticas que orientam esses projetos (as concepções de região e transculturação), as propostas ou significações pragmáticas e normativas, os efeitos sociais e/ou implicações políticas desses projetos.

    Em que consiste um projeto intelectual?

    Para analisar de forma aprofundada a construção de categorias analíticas e as interpretações sociológicas em Ortiz e Freyre, o sentido político em seus contextos e seus possíveis efeitos, proponho o uso do termo projetos intelectuais como um recurso de metodologia analítica para pensar o empenho intelectual de Fernando Ortiz e de Gilberto Freyre, que além da bibliografia contemple também suas atividades enquanto intelectuais.

    Um projeto pode ser entendido como um planejamento de ações com um sentido subjetivamente visado, ou com uma intenção definida, que busca uma permanência temporal e que se estrutura em procedimentos delineados para alcançar determinados objetivos. O adjetivo intelectual especifica que essas ações se baseiam no exercício do poder ideológico, ou seja, são direcionadas para atuarem [...] sobre as mentes pela produção e transmissão de ideias, de símbolos, de visões de mundo, de ensinamentos práticos, mediante o uso da palavra (BOBBIO, 1997, p. 11).

    A construção da categoria projetos intelectuais se fez pela associação entre as concepções que fundamentam a Sociologia do conhecimento de Karl Mannheim e a noção de beginnings de Edward Said.

    Para Said, beginning é o início no tempo e no espaço e, ao mesmo tempo, princípio, preceito, fundamento, base que sustenta o processo de construção do conhecimento. "Beginning" seria uma ação ou atividade intencional com um objetivo visado, localizada no tempo e no espaço, associada a normas específicas de uma determinada área e a condições para sua realização. Escolher um beginning, ou seja, escolher um começo, um princípio para se alcançar um objetivo significa escolher também um método que viabiliza a construção de novos significados, novas formas de ver o mundo. Nesse sentido, a escolha de um começo já significa a efetivação de um projeto. Além disso, salienta Said, a formulação de um "beginning" por um indivíduo combina elementos tradicionais com novas criações, considerando seu envolvimento com a realidade sócio-histórica.

    Um beginning é formado, de acordo com Said, por dois aspectos complementares: um aspecto transitivo que consiste na vontade ou intenção de se chegar a um objetivo, e um aspecto intransitivo, desconhecido do sujeito, mas presente em sua mente, funciona como uma inspiração, a busca por ideias e por uma forma apropriada para se começar. O lado intransitivo de um "beginning seria o espaço do imponderável na criação, mas formado pelas lembranças e vivências do indivíduo. It is perhaps our permanent concession as finite minds to an ungraspable absolute" (SAID, 1985, p. 77) ⁵.

    Entendo que os projetos intelectuais, como pensado neste trabalho, podem ser analisados considerando seus beginnings transitivos e intransitivos. Ou seja, considerando o empenho individual como uma ação intencional e planejada, portanto, metódica. Ação que se realiza em determinado contexto, no qual os autores estão em diálogo com as referências intelectuais da época, com seus leitores e críticos. Considerar os beginnings na análise de projetos intelectuais é uma forma de perseguir o significado, o sentido desses projetos para seus formuladores.

    Como Said, Karl Mannheim entende que uma produção intelectual está imbuída de uma forma de ver o mundo e que, portanto, o agir e conviver no mundo social é um elemento fundamental para a construção do conhecimento nas ciências humanas. Enquanto Said volta-se à percepção do indivíduo, à sua experiência direta com o mundo, Mannheim procura compreender a vinculação de formas de pensamento, de apreensão do mundo com grupos sociais específicos. Nesse sentido, entende que toda produção intelectual está imbuída de uma forma de ver o mundo condizente com a posição social e as práticas experienciadas por determinado grupo. Assim, o pensamento teria uma origem coletiva, e mais do que isso, social.

    Recorremos a Mannheim, portanto, para reforçar as relações entre conhecimento e existência, os vínculos sociais entre as teorias e os modos de pensar. Para esse autor, os fatores existenciais, extrateóricos, influenciam não somente o surgimento de um pensamento, mas também sua forma e conteúdo, sendo determinante para o alcance e a intensidade da experiência e da observação do sujeito. A sociologia do conhecimento, proposta por Mannheim, conforma-se como uma teoria da determinação social ou existencial do conhecimento (MANNHEIM, 1941, p. 233). Destarte, a produção do conhecimento nas ciências sociais ocorre a partir da infiltração da posição social do pesquisador na própria análise social, de tal modo que o conhecimento, nessa área da ciência, realiza-se a partir da perspectiva do sujeito.

    «Perspectiva», en este sentido, significa la forma en que contemplamos un objeto, lo que percibimos de él, y cómo lo reconstruimos en nuestro pensamiento. Por tanto, la perspectiva es algo más que una determinación meramente formal del pensamiento. Se refiere también a los elementos cualitativos de la estructura del pensamiento, elementos que forzosamente debe dejar pasar por alto la lógica puramente formal. Precisamente esos factores son responsables del hecho de que dos personas, aun cuando apliquen en idéntica forma las mismas leyes de lógica formal, es decir, el principio de contradicción o la fórmula del silogismo, pueden juzgar el mismo objeto de un modo enteramente distinto.

    Entre los rasgos que pueden caracterizar la perspectiva de una afirmación, y los criterios que nos permiten atribuirla a determinada época o situación, citaremos sólo unos cuantos ejemplos: el análisis del sentido de los conceptos que se usan; el fenómeno del contraconcepto; la falta de ciertos conceptos; la estructura del aparato categorial; los modelos dominantes del pensamiento; el nivel de la abstracción, y la ontología que se presupone. (MANNHEIM, 1941, p. 238).

    Para Mannheim, cabe à Sociologia do conhecimento a tarefa de demonstrar que pessoas em posições sociais diferentes pensam de forma diferente e, sobretudo, [...] hacer inteligibles las causas por las cuales categorías diferentes atribuyen un orden distinto al material de su experiencia (MANNHEIM, 1941, p. 240). Nesse sentido, a Sociologia do conhecimento revela que toda perspectiva é uma perspectiva parcial, pois o conhecimento nas ciências sociais

    [...] sólo surge en cuanto él mismo es acción y dentro de ese límite, es decir, cuando la acción está impregnada de la intención (intendere) de la mente, en el sentido de que los conceptos y todo el aparato del pensamiento están dominados por esa su orientación activa y la reflejan. (MANNHEIM, 1941, p. 258).

    Para Mannheim, essa consideração buscava reconhecer que em determinadas áreas do conhecimento é inevitável a presença de traços da posição do sujeito, o que não significa uma fonte de erro e nem a abertura da ciência ao juízo de valor e à propaganda.

    Al contrario, cuando hablamos de intención (intendere) fundamental del espíritu (intento animi), que es inherente a toda forma de conocimiento y que afecta a la perspectiva, aludimos al residuo irredutible en el conocimiento del elemento que entraña un propósito, y que perdura aun cuando se haya eliminado toda valoración consciente y explícita y toda parcialidad. Aunque no cabe duda de que la ciencia (en cuanto no pronuncia ningún juicio de valor) no es un medio de propaganda, ni se propone comunicar valoraciones, sino más bien determinar hechos. Lo que la sociología del conocimiento se esfuerza en revelar es, meramente, que después que el conocimiento se ha liberado de los elementos de propaganda y valoración, contiene aún un elemento de actividad que, en su mayor parte, no se ha vuelto explícito, y que no es posible eliminar, pero que, en el mejor de los casos, puede llegar a la esfera de lo controlable (MANNHEIM, 1941, p. 258).

    Considerando o caráter parcial do conhecimento nas ciências sociais há a necessidade, coloca Mannheim, do mesmo passar por um processo de controle e desenvolvimento que requer uma apreensão de seus ajustamentos às situações específicas, de suas substituições e aperfeiçoamentos às condições sócio-históricas, do processo de diálogo com outras formas de pensar, até se realizar um processo de fusão e interpenetração entre os estilos de pensamento. Assim, afirma o autor: El pensamiento es un proceso determinado por fuerzas sociales concretas, que continuamente pone en tela de juicio sus descubrimientos y corrige sus métodos (MANNHEIM, 1941, p. 93).

    As reflexões de Karl Mannheim e de Edward Said sobre o papel dos intelectuais e a produção do conhecimento nas Ciências Humanas foram fundamentais para se pensar em projetos intelectuais como uma categoria analítica que valoriza a contribuição individual e o aspecto criativo na construção do pensamento, ao mesmo tempo que salienta seu caráter social, a perspectiva e as intenções do sujeito produtor do conhecimento. Este trabalho, portanto, parte do entendimento que os intelectuais e suas obras são agentes diretamente relacionados ao meio social, de forma que se encontram delimitados pelas condições sócio-históricas e, ao mesmo tempo, interferem nesse meio contribuindo para sua reprodução ou para sua transformação. Ou seja, ao mesmo tempo que constroem a realidade social são constituídos por ela, tanto em termos objetivos como subjetivos.

    A partir dessas considerações, entendo que existe um projeto intelectual quando o empenho de um sujeito forma um conjunto sistemático de ideias e ações voltadas a exercerem o poder ideológico (transmitindo ideias, ensinamentos, visões de mundo) com o intuito de intervir na sociedade, seja por meio de proposições pragmáticas ou normativas, seja no sentido de conservar, ou no de transformar as estruturas sociais. Destarte, é necessário examinar de forma conjugada a produção bibliográfica, as atividades de promoção artística e científica, o papel desempenhado em instituições e o entrelaçamento com agentes que fornecem recursos ao trabalho intelectual para verificar se expressam ideias e ações racionais sistematizadas e fundamentadas no exercício do poder ideológico.

    A expressão projetos intelectuais sugere a possibilidade de se examinar o sentido do empenho intelectual de um ou mais agente social, quando se considera de forma conjugada esse empenho (produção científica, atividades desenvolvidas nas esferas artística, estatal e acadêmica, a busca por recursos). Entendendo que os ajustamentos ao contexto formatam o sentido político dos projetos intelectuais e atuam de forma incisiva na construção de categorias analíticas, considera-se que os projetos intelectuais passam por um processo de maturação, sua elaboração é gradativa e seu desenvolvimento ocorre em consonância com as experiências de sujeitos situados em determinadas condições sócio-históricas. Estão suscetíveis, portanto, a mudanças e adequações que vão se delineando com seu desenvolvimento e com a própria dinâmica sócio-histórica em que estão inseridos.

    Dessa forma, a busca em compreender os projetos intelectuais de Ortiz e de Freyre não se constitui em uma tentativa de conferir previsibilidade ao pensamento, às suas ideias e propostas normativas, muito menos às suas ações. O que se procura é o sentido, o princípio do pensamento. E, ao mesmo tempo, a compreensão das finalidades das ações e dos efeitos da obra. Entende-se, portanto, como Hannah Arendt (2014), que as ações humanas são dotadas de impredizibilidade, o que não exclui a possibilidade de se considerar os sentidos, os desígnios superiores, na palavra da autora, que orientam o pensamento e os princípios que inspiram as ações. Tomando o cuidado de não transformar os sentidos em fins ou apontar uma relação imediata entre eles⁶.

    Um elemento fundamental aos projetos intelectuais são as alianças tecidas entre seus agentes, visto que para a elaboração e execução desses projetos, os intelectuais precisam angariar os recursos — econômicos, culturais e políticos — disponíveis em seu meio social. Ou seja, necessitam entrar em relação com distintas formas de poder, com diversos agentes e instituições sociais para operacionalizarem o desenvolvimento de seus projetos. Partindo do pressuposto de que as alianças intelectuais se configuram como relações associativas fundamentadas, enquanto tipos puros, num ajuste ou numa união de interesses racionalmente motivados (com referência a valores ou fins) (WEBER, 2012, p. 25), considera-se que as alianças são firmadas entre agentes que guardam entre si algum tipo de afinidade: entre as posições que ocupam em determinada estrutura; em relação às intenções e/ou métodos subjacentes a seus projetos intelectuais. Nesse sentido, as alianças que estabelecem com esses agentes e com essas instituições podem contribuir para elucidar as estratégias mobilizadas em torno desses projetos, frente às lutas em que se envolvem e sobre as propostas em vista.

    O livro está dividido em duas partes. Na primeira, analisamos as trajetórias de Fernando Ortiz e Gilberto Freyre antes dos projetos intelectuais que construíram nos anos de 1930-1940. O primeiro capítulo analisa o primeiro projeto intelectual de Fernando Ortiz, quando seus estudos se embasavam na Antropologia criminal. Durante as três primeiras décadas do século XX, a análise de Ortiz vai se modificando lentamente até sua ruptura mais radical com a Criminologia, em 1929. O capítulo aborda as obras de Ortiz, sua atuação em instituições, o diálogo com o contexto da época que foram modificando seu olhar. O capítulo 2 aborda o início da trajetória intelectual de Freyre, voltando-se a seu mestrado, aos artigos publicados nos anos 1920, à sua participação no Centro Regionalista do Nordeste, elaboração do Livro do Nordeste e suas expectativas profissionais. No capítulo 3, busca-se demonstrar como a produção científica, as alianças, os posicionamentos desses autores foi se delineando como um projeto intelectual, que se consolidam na década de 1930.

    A parte II do livro examina os projetos intelectuais de 1930-1940 de Freyre e Ortiz. Os capítulos 4 e 5 concentram-se em estudar de forma exaustiva o conteúdo sociológico das obras desses autores que fundamentam seus projetos intelectuais. Aborda-se, também, a construção das respectivas perspectivas analíticas que constroem. O capítulo 6 tem como objetivo demonstrar as propostas normativas presentes nos projetos intelectuais. Essas propostas estão envolvidas na concepção de Ortiz e Freyre sobre como se realiza a sequência dos processos históricos e como se conforma a coesão social nas respectivas sociedades. Nesse sentido, aprofundando a compreensão sobre esses fenômenos, que perpassam pela discussão sobre raça e cultura, é possível identificar as propostas de seus projetos intelectuais. No sétimo capítulo, demonstro o empenho dos referidos intelectuais em darem continuidade a seus projetos intelectuais, sobretudo por meio de suas instituições de pesquisa. Aponto para o definhamento de sentido dos projetos centrados na harmonização social quando se acentuavam as tensões sociais devido o desenvolvimento da industrialização e acirramento dos conflitos de classes. Ao final, traço uma reflexão sobre o legado desses projetos intelectuais e as possibilidades teórico-práticas que podem ser pensadas a partir deles.


    ¹ Inclusive, o seminário organizado em Recife pela Fundação Joaquim Nabuco — Gilberto Freyre: 120 anos de pioneirismo — foi majoritariamente composto por personalidades locais (somente um interlocutor, dos 11 presentes, era de outro estado brasileiro).

    ² Carta de Fernando Ortiz a Gilberto Freyre, 22 de octubre de 1948. Correspondencia de Fernando Ortiz. 1940-1949. Iluminar la fronda. Compilación y notas Trinidad Pérez Valdés (FUNDACIÓN FERNANDO ORTIZ, 2016, p. 462).

    ³ Fernando Ortiz, Los bailes y el teatro de los negros en el folklore de Cuba. Habana, Ministerio de Educación, Dirección de Cultura, 1951.

    ⁴ Ao falar em invenção das tradições, refiro-me à ideia de Hobsbawm e Ranger (1984) como um processo de formalização e ritualização de novos padrões sociais, quando as velhas tradições não são mais compatíveis com a situação sócio-histórica de uma sociedade.

    ⁵ Nossa tradução: É talvez nossa permanente concessão como mentes limitadas para uma incompreensão absoluta (SAID, 1985, p. 77). O excerto seguinte esclarece a explicação de Edward Said: The point of departure, to return to it now, thus has two aspects that animate one another. One leads to the project being realized: this is the transitive aspect of the beginning – that is, beginning with (or for) an anticipated end, or at least expected continuity. The other aspect retains for the beginning its identity as radical starting point: the intransitive and conceptual aspect, that which has no object but its own constant clarification. [...] These two sides of the starting point entail two styles of thought, and of imagination, one projective and descriptive, the other tautological and endlessly self-mimetic (SAID, 1985, p. 72-73). Nossa tradução: "O ponto de partida, para retomar isso agora, tem dois aspectos que se implicam reciprocamente. Um orienta a execução do projeto: esse é o aspecto transitivo do beginning — isto é, começar com (ou para) um fim antecipado, ou ao menos com expectativa de continuidade. O outro aspecto retém para o beginning a sua identidade como ponto inicial radical: os aspectos intransitivos e conceituais, os quais não têm objeto, mas suas próprias e constantes clarificações. [...] Estes dois lados do ponto inicial desencadeiam duas formas de pensamento, e de imaginação, uma projetiva e descritiva, a outra tautológica e infinitamente automimética" (SAID, 1985, p. 72-73).

    ⁶ Reproduzo duas passagens da autora que fundamentam essas considerações: A ação humana, projetada em uma teia de relações onde fins numerosos e antagônicos são perseguidos, quase nunca satisfaz sua intenção original [...]. Quem quer que inicie um ato deve saber que apenas iniciou alguma coisa cujo fim ele não pode nunca predizer, ainda que tão-somente por seu próprio feito já alterou todas as coisas e se tornou ainda mais impredizível (ARENDT, 2014, p. 120).

    A ação, na medida em que é livre, não se encontra nem sob a direção do intelecto, nem de baixo dos ditames da vontade – embora necessite de ambos para a execução de um objetivo qualquer –; ela brota de algo inteiramente diverso que, seguindo a famosa análise das formas de governo por Montesquieu, chamarei de um princípio. Princípios não operam no interior do eu como o fazem os motivos – a minha própria perversidade, ou meu justo equilíbrio –, mas como que inspiram do exterior, e são demasiado gerais para prescreverem metas particulares, embora todo desígnio possa ser julgado à luz de seu princípio uma vez começado o ato. Pois, ao contrário do juízo do intelecto que precede a ação e do império da vontade que a inicia, o princípio inspirador torna-se plenamente manifesto somente no próprio ato realizador, e contudo, ao passo que os méritos do juízo perdem sua validade e o vigor da vontade imperante se exaure, no transcurso do ato que executam em colaboração, o princípio que o inspirou nada perde de vigor e em validade através da execução (ARENDT, 2014, p. 198-199).

    PARTE I

    FORMAÇÃO E PRIMEIROS TRABALHOS

    A parte I deste livro será dedicada a analisar as produções científicas de Fernando Ortiz e de Gilberto Freyre que precederam os projetos intelectuais elaborados nos anos de 1930-1940. O objetivo de compreendermos a formação desses autores, a elaboração de suas concepções teóricas, o modo de se relacionar com o meio social e as estratégias que mobilizaram para captar recursos e constituir alianças durante esse período inicial. Entendendo que a construção de projetos intelectuais ocorre em um contexto histórico e, ao mesmo tempo, no interior de estruturas ordenadas por regras e disputas internas referentes a um grupo específico, é necessário analisar as relações dos referidos intelectuais com as problemáticas próprias de seus países, os contornos que essas assumem em suas obras, as continuidades e rupturas com o pensamento científico nacional da época e as alianças que estabeleceram com universidades, institutos, centros de pesquisas, grupos sociais e com intelectuais.

    Nesta parte, a intenção é demonstrar o processo de construção de uma visão sobre a nação que antecedera suas propostas dos anos 1930. Em Fernando Ortiz, a inserção nas discussões sobre as questões raciais ocorrera por meio da Antropologia Criminal no início do século XX. Esses estudos de Ortiz estavam envolvidos em um projeto de regeneração nacional. Destaca-se que suas

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